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crimes de trânsito

- Publicada em 04 de Dezembro de 2017 às 22:42

Legislação branda é estímulo para impunidade

Nesta segunda reportagem da série sobre crimes de trânsito, o Jornal do Comércio conversou com responsáveis pela fiscalização, aplicação e penalização dos delitos cometidos nas vias. Na procura por respostas para saber o porquê de os protagonistas das tragédias no asfalto ficarem tão pouco tempo detidos, o que se ouve, sem exceção, converge no mesmo sentido: a legislação é branda e há necessidade da reinterpretação de algumas leis para que os infratores passem mais tempo presos. Outras conclusões foram unânimes: o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) evoluiu ao longo desses 20 anos; é preciso mais consciência ao volante; e a punição no bolso ainda é uma das principais armas para enfrentar essa guerra.
Nesta segunda reportagem da série sobre crimes de trânsito, o Jornal do Comércio conversou com responsáveis pela fiscalização, aplicação e penalização dos delitos cometidos nas vias. Na procura por respostas para saber o porquê de os protagonistas das tragédias no asfalto ficarem tão pouco tempo detidos, o que se ouve, sem exceção, converge no mesmo sentido: a legislação é branda e há necessidade da reinterpretação de algumas leis para que os infratores passem mais tempo presos. Outras conclusões foram unânimes: o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) evoluiu ao longo desses 20 anos; é preciso mais consciência ao volante; e a punição no bolso ainda é uma das principais armas para enfrentar essa guerra.

Carlos Butarelli, delegado da Divisão de Crimes de Trânsito da Polícia Civil

Carlo Butarelli, titular da Delegacia de Homicídios de Trânsito de Porto Alegre

Carlo Butarelli, titular da Delegacia de Homicídios de Trânsito de Porto Alegre


MARCO QUINTANA/JC
A dificuldade na tipificação dos crimes. Em boa parte dos delitos de trânsito, os aplicadores das leis esbarram na dificuldade de enquadrar o infrator em categorias de crime que preveem punições mais rígidas. "O crime culposo parte da negligência, da imprudência ou da imperícia, ao contrário dos crimes dolosos (quando a pessoa desejou o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo), em que a pena é bem mais grave. O que se tem construído em alguns casos de crimes de trânsito é o dolo eventual - aquele que a pessoa não quer o resultado, mas assume qualquer risco que possa provocar tal resultado. É o caso da embriaguez, da condução com a habilitação suspensa, da alta velocidade ou da prática do racha. O dolo eventual é a maneira que a Justiça encontrou para que o infrator vá a júri popular. É raro, mas alguns casos que passaram aqui pela Divisão de Crimes de Trânsito levaram pessoas à prisão, e elas ainda estão detidas."
Legislação branda. Mesmo que tenham evoluído, as leis de trânsito ainda carecem de um maior rigor no que diz respeito aos infratores. "Na parte da punição, que pode levar à prisão, ela é branda. Existem outras punições, como a suspensão da habilitação e a cassação do direito de dirigir, e esses são pontos bem evoluídos. Por exemplo, a participação da Polícia Civil nas operações Balada Segura, juntamente com a Empresa Pública de Transporte e Circulação e o Detran, tem reduzido bastante o número de acidentes graves. A pessoa que é pega nessas blitze, comprovado o consumo de álcool, passa um ano sem poder dirigir. Precisamos trabalhar mais a conscientização. O trânsito e os veículos são seguros, o grande problema é a conduta do motorista."
A punição. A falta de uma definição clara no texto legal permite uma diversidade de interpretações judiciais. "Cada juiz tem um pensamento. Alguns entendem que cabe o dolo eventual, mas tem juiz que acredita que não. Assim, o dolo eventual surge como uma construção, alicerçada em diversas provas, que comprovem o delito. Os presos em crimes de trânsito não são aqueles criminosos contumazes. Qualquer pessoa, por alguma circunstância, pode se envolver em um crime desta natureza."
 

Keila Catta-Preta, juíza da Vara de Delitos de Trânsito do TJ-RS

Juíza Keila Catta-Preta

Juíza Keila Catta-Preta


/CLAITON DORNELLES /JC
A dificuldade na tipificação dos crimes. A qualificação de um delito, visando a uma pena maior ao infrator, não é algo simples de ser construído. "Em um homicídio culposo, se todas as provas apontarem pela condenação - o que é difícil de se reunir -, o réu, sendo primário, terá uma pena de dois anos. Dependendo das circunstâncias, terá a pena substituída por duas restritivas de direito. Ou seja, nem preso será. Caso o crime seja enquadrado como dolo eventual, ele vai a júri, cabendo prisão preventiva, já que a pena pode ir de seis a 20 anos. Mas em que hipóteses posso ter um homicídio doloso no trânsito? Normalmente, quando o infrator estiver embriagado. A definição do crime ser culposo ou doloso parte de como o juiz de plantão vai interpretar e se irá manter a prisão."
Legislação branda. Embora as leis castiguem os infratores no campo administrativo, por outro lado, na parte criminal, muita coisa deve ser revista. "Houve conquistas e evoluções ao longo desses 20 anos do CTB. No aspecto administrativo, é muito eficaz. Por exemplo, se o condutor é flagrado dirigindo embriagado, terá sua habilitação suspensa por um ano, pagará uma multa de R$ 2.934,00, e o carro será apreendido. Essas penas pesam, às vezes, mais que uma condenação. Nas audiências, é o que mais amedronta os infratores. Já a parte criminal tem punições muito brandas. Outra falha do CTB é não diferenciar as lesões leves das graves e gravíssimas. Diferentemente do que ocorre com o Código Penal, que vai aumentando a pena de acordo com a gravidade, o CTB ainda garante benefício aos réus."
A punição. As penas muito baixas fazem com que a impunidade cresça e os condutores não sejam devidamente enquadrados no crime praticado. "Muitas pessoas falam que a polícia prende e o juiz solta, mas não é assim. O defeito da lei é ter uma pena baixa, porque, via de regra, o homicídio de trânsito é culposo. Agora, quando o caso estarrece muito pela maneira como foi cometido, às vezes, a Justiça vai um pouco além para se ter uma pena maior. Sempre que prendo alguém, vislumbro que o caso tenha sustentação para uma condenação. E o que acontece? O delegado fixa a fiança, o condutor paga e é solto. Caso o réu não tenha como pagar, passa uns três dias no Presídio Central e pronto."
 

Lúcia Callegari, promotora do Tribunal do Júri de Porto Alegre

Lúcia Helena Callegari, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado

Lúcia Helena Callegari, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado


MPRS/DIVULGAÇÃO/JC
A dificuldade na tipificação dos crimes. O Judiciário ainda é refém da interpretação de cada magistrado, independentemente das circunstâncias do crime de trânsito. "Os elementos fazem com que um juiz defina se é culposo ou doloso. Para identificar a culpa, parte-se de três precedentes: negligência, imprudência e imperícia. Já para identificar o dolo, depende do 'querer' e do 'assumir' o risco. Se a pessoa bebeu e foi dirigir, pegou o carro para participar de um racha ou conduziu em alta velocidade, ela assume riscos. Uma coisa é a pessoa bater por falta de habilidade ou porque o sinal mudou e ela não viu. Existem posicionamentos jurisprudenciais e doutrinais que dizem que não é possível dolo no trânsito. No entanto, não é o meu posicionamento, nem da maioria. A pessoa que assume esse risco tem que ser punida de forma muito mais severa."
Legislação branda. O CTB evoluiu bastante ao longo dessas duas décadas, entretanto, a revisão de condutas do Judiciário se faz necessária a cada novo capítulo de infratores inocentados. "Acredito que devemos ter uma postura ainda mais rígida com os crimes de trânsito, até para que possamos mudar a cultura da população. Algumas coisas já começaram a mudar, principalmente no comportamento do condutor. Se não houver uma punição severa, vai passar a ideia de que está tudo bem. É preciso um código mais severo, já que, para quem fica, é muito difícil conviver com a dor."
A punição. A revisão de conduta dos atores da infração poderá tornar a penalização mais adequada e menos omissa em relação à vítima. "Com certeza, ainda temos penas muito leves. Para quem descumpre normas e leis, é necessária maior severidade. Para um crime culposo, a pena mínima é de dois anos, com a possibilidade de uma série de benefícios. No final, a pessoa não cumpre efetivamente nada. Com isso, vivemos uma sensação total de impunidade. Se algumas condutas não tiverem uma postura rigorosa, jamais serão punidas na nossa sociedade. Normalmente, os envolvidos em delito de trânsito não têm antecedentes, e os juízes acabam não mantendo as prisões. Particularmente, acredito que os juízes, via de regra, não mantêm as prisões porque esses réus não representam ameaça de reiteração delitiva."
 

Edes Ferreira dos Santos Cunha, promotor de trânsito do Ministério Público do Rio Grande do Sul

A dificuldade na tipificação dos crimes. Por mais que as evidências indiquem, não é fácil reunir provas para que um crime seja enquadrado como doloso. "O dolo é a vontade, é querer. No trânsito, há imprudência, imperícia, negligência na manutenção do automóvel. Ocasionalmente, um motorista atropela pessoas em cima da calçada, excede a velocidade. É uma série de detalhes que leva alguém a assumir o risco de causar um acidente de trânsito. É difícil entender que uma pessoa quer matar, mas ela pode assumir esse risco. Toda pessoa embriagada atropela alguém? Não. Uma em cada mil que bebe, talvez, atropele alguém. Todo motorista embriagado é um assassino em potencial? Acho que não. Já no culposo, a condenação pode ser substituída por penas alternativas, para não mandar uma pessoa para a cadeia."
Legislação branda. A revisão das leis é necessária para que o Judiciário possa analisar como o infrator deverá ser punido de acordo com o crime cometido. "A legislação poderia ser aprimorada, mas um crime de trânsito não deixará de ser um crime culposo, ou seja, é algo que qualquer pessoa de bem pode cometer. Temos que pensar como queremos punir cidadãos de bem. Qualquer pessoa que dirige corre o risco de cometer delito de trânsito. Tirar uma vida é uma situação gravíssima, mas também jogar na prisão alguém por um delito culposo é complicado. Poderia haver uma exasperação das penas, especialmente nos delitos menores, como dirigir sem carteira, por exemplo."
A punição. Diferentemente do Código Penal, as penas não são qualificadas pela gravidade no CTB. "Talvez o código devesse repensar a pena de uma lesão gravíssima, sendo maior que uma leve, ainda que culposa. A questão é que o Código de Trânsito analisa a vontade da pessoa. Ele não quis matar, não quis lesionar, foi imprudente. Ele trata a conduta, e não o resultado. Para a família de uma vítima de atropelamento que ficou paraplégica, com todas as consequências, é difícil de explicar isso. É difícil a pessoa entender. Enfim, a lei tem que ser cumprida por todas as partes. Não se pode escolher uma lei que se goste de cumprir. A sociedade só consegue conviver organizadamente se houver o cumprimento da legislação."