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Entrevista especial

- Publicada em 08 de Outubro de 2017 às 21:36

Governos devem induzir boas práticas ambientais, diz Nascimento

'Desenvolvimento não é o mesmo que crescimento; desenvolver deve ser um aprimoramento', diz Nascimento

'Desenvolvimento não é o mesmo que crescimento; desenvolver deve ser um aprimoramento', diz Nascimento


CLAITON DORNELLES /JC
O poder público deve ser um indutor fundamental das inovações surgidas na sociedade civil, academia e empresas, na visão de Luis Felipe Machado do Nascimento, professor da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Nascimento é pioneiro na introdução do conceito de sustentabilidade na academia - foi ele quem criou, há 20 anos, a disciplina de Gestão Socioambiental na Empresa, e também foi responsável pela introdução da primeira incubadora de empresas de base tecnológica do Estado (o Ietec), em 1991, durante o governo de Olívio Dutra (PT) na Capital.
O poder público deve ser um indutor fundamental das inovações surgidas na sociedade civil, academia e empresas, na visão de Luis Felipe Machado do Nascimento, professor da Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Nascimento é pioneiro na introdução do conceito de sustentabilidade na academia - foi ele quem criou, há 20 anos, a disciplina de Gestão Socioambiental na Empresa, e também foi responsável pela introdução da primeira incubadora de empresas de base tecnológica do Estado (o Ietec), em 1991, durante o governo de Olívio Dutra (PT) na Capital.
Para o professor, licitações de produtos devem levar em conta, mais do que o preço, o custo global representado pela durabilidade e o gasto com o descarte. "Se eu compro um produto que dura seis meses e outro que dura um ano, tenho que ver o custo nesse período. Um pode ser o mais barato, mas dura a metade do tempo", exemplifica.
A mesma consciência, segundo Nascimento, deve permear o poder público na concessão de licenças ambientais. Ele entende que o processo é burocrático e precisa ser aprimorado e agilizado. No entanto "as empresas que fazem bons projetos não têm dificuldade em aprová-los", defendeu o professor nesta entrevista ao Jornal do Comércio.
Apesar do incentivo, Nascimento entende que a outra ponta - o consumidor - tem de exercer o papel de pressão. "Não deixar de consumir, mas consumir de uma maneira mais inteligente". Com isso, segundo ele, as empresas entendem e correm atrás da mudança.
Jornal do Comércio - A pressão da sociedade civil funcionou no caso da Renca (Reserva Nacional do Cobre e Associados, que o presidente Michel Temer, PMDB, tentou extinguir), fazendo o governo voltar atrás. Mas, de uma certa maneira, o Brasil não é um país propício para outros países que buscam uma legislação mais permissiva no aspecto ambiental?
Luis Felipe Machado do Nascimento - Isso ocorre até internamente no Brasil. Anos atrás, os curtumes gaúchos que poluíam os rios passaram a ser controlados e a se exigir tratamento (de afluentes). Alguns se adequaram, e outros foram para o Mato Grosso. Vão para um lugar onde não cobram, aí quando aperta, vão para outro lugar, como o Paraguai. Vão para onde é mais barato operar, mas o barato sai caro. Por isso a indústria pode fugir do controle, indo para lugares menos exigentes, mas como você consegue barrar isso? Tem que controlar na outra ponta. Quando um consumidor fala que não quer comprar da empresa que está desmatando para criar gado. Quando o Ministério Público começa a exigir esses controles, começa a valorizar isso, não vale mais a pena você fazer esse tipo de coisa. A empresa mesmo vai procurar se mostrar mais responsável. Acho que é preciso ligar as duas pontas, a produção e o consumo; e, no meio disso, têm que ter os órgãos de controle, a Justiça, e muito mais, fazendo seu papel.
JC - Mas, olhando para o aspecto político, há movimentações no Legislativo Federal que estão fazendo com que nosso cenário retroceda bastante. Como vê essa questão?
Nascimento - Neste momento político, (a questão ambiental) não está favorável, há outras questões consideradas mais urgentes...
JC - Mas tem havido ativamente um retrocesso.
Nascimento - Claro, na questão da Amazônia, a Renca. Eu acho que estão aproveitando, entre outras coisas, para favorecer interesses econômicos, liberar a exploração de minérios... Sobre essa questão da flexibilização da legislação ambiental, as empresas que fazem bons projetos não têm dificuldade em aprová-los. Claro que existe muita coisa que tem que aprimorar no sistema, no controle, rapidez...
JC - É muito burocrático?
Nascimento - É burocrático. Esse processo precisa ser revisto, aprimorado, agilizado, mas quem vai fazer um empreendimento tem que saber que existem externalidades. Se eu vou construir uma empresa, um prédio ou um condomínio, eu vou causar impacto na região, e tenho que compensar de alguma forma esse impacto.
JC - A empresa que busca agilização ou flexibilização para concessão de uma licença está interessada em acabar com a burocracia ou em não cumprir o devido em vista do impacto que o empreendimento possa gerar?
Nascimento - Têm empresas que querem fazer as coisas corretamente e enfrentam burocracia, mas muitas vão atrás do atalho, de como fazer para não pagar, para não precisar fazer o que estão pedindo. Acho que esse momento em que estamos vivendo mostra como está funcionando a sociedade. Tenho a esperança, a partir de agora, que vamos passar para outro nível.
JC - Em que patamar enxerga as empresas brasileiras no que tange a boas práticas ambientais atualmente?
Nascimento - Há empresas que estão muito avançadas, que têm ISO 14.000, produção mais limpa, e outras que ainda estão pensando se devem ou não jogar o resíduo no lugar adequado. Só faz quando tem controle, quando é multada, coisa assim. Quando a gente fala da realidade das empresas, não dá para generalizar.
JC - Mas, de uma maneira geral, isso deveria estar mais consolidado?
Nascimento - Sim, o mínimo que deveríamos ter está baixo. Numa sociedade minimamente esclarecida, (boas práticas ambientais) não deveria ser mais um tema que deve se discutir, se deve ou não separar resíduos. Não é falta de informação, é falta de vontade, de conscientização. É elementar fazer campanha para desligar a luz quando se sai da sala ou não deixar a água correndo após usar. Isso mostra como estamos atrasados. Qualquer pessoa deveria saber. Eu diria que, no Brasil, há empresas bem avançadas, e existem essas empresas...
JC - Quais os setores mais avançados nesse aspecto?
Nascimento - As empresas mais visadas, as potencialmente mais poluidoras - o que envolve a questão das petroquímicas - oferecem um risco. Por esse risco que elas apresentam, foi tomada uma série de medidas. O setor químico foi visado e desenvolveu boas práticas. O setor de mineração, também. Acontecem essas tragédias, como Mariana, quando relaxa o controle ou tem corrupção no sistema. Se você pegar o setor de alimentos, cosméticos, coisas que impactam diretamente no consumidor, (as pessoas) se preocupam muito mais do que quando é para terceiros. Setores como cosméticos, quando lançam um produto natural, orgânico, que faz bem para a saúde, a aceitação é muito maior. E para essas empresas é fundamental ter credibilidade.
JC - Então quais os principais desafios hoje?
Nascimento - O grande desafio é o consumo. Não deixar de consumir, mas consumir de uma maneira mais inteligente. E aí também vai depender da opção das pessoas, vai ter quem queira simplesmente não comprar um produto que foi feito por crianças ou mão de obra escrava; ou haverá quem se preocupará de como se pode ter o conforto sem precisar elevar o consumo, como na substituição de produtos por serviços, como usar Uber e deixar o carro em casa, ou o BikePoa (serviço de bicicletas compartilhadas). Isso tem um impacto muito grande, porque o produto começa a ser mais bem utilizado. Na medida em que eu posso chamar um carro para me levar aonde quero, aquele carro está trabalhando e não precisa haver tantos carros na rua. É uma solução mais inteligente, que é boa para todo mundo.
JC - Vê o poder público permeável a essa mudança de paradigma?
Nascimento - Sim, ele tem papel fundamental também, porque é o indutor. Como também tem o poder de compra, em uma questão como a merenda escolar, pode exigir que tenha produtos orgânicos. Isso cria um mercado de orgânicos, principalmente de agricultura familiar. Eu até participei de um evento em que se discutia o porquê de não comprar produtos com apelo ambiental. E o argumento é que, numa licitação, tem que comprar o mais barato, e então tem que comprar a "porcaria". Mas muitas coisas você pode, no próprio processo licitatório, já estabelecer que o mais barato não significa o que custa menos na hora da compra. Se eu compro um produto que dura seis meses e outro que dura um ano, tenho que ver o custo nesse período. Um pode ser o mais barato, mas dura a metade do tempo", exemplifica. Ou na hora de descartar, se sobra algo que se tem que pagar para descartar, se um outro (fornecedor) aceita devolução. Tudo isso para verificar qual é o mais barato. Mas, neste momento, em que há suspeita de tudo, o funcionário responsável não quer se arriscar, e então deixa como está, sempre foi assim. Eu acredito que, quando tivermos um cenário mais claro e mais limpo, vai ser mais fácil implantar esse tipo de coisa.
JC - Um avanço na área ambiental depende de uma ação conjunta entre sociedade e governo?
Nascimento - Sim, e envolve muita gente nesse processo. Primeiro, tem que haver uma política que invista na divulgação (de uma nova prática) para que as pessoas passem a participar mais efetivamente.
JC - Que demandas a sociedade civil poderia trazer?
Nascimento - Acho que a questão do transporte público, por exemplo. Vê-se a bicicleta como modal complementar, tendo um papel maior. (Mas) esse sistema do BikePoa (de bicicletas compartilhadas) vem se reduzindo, tem hoje um terço das bicicletas que tinha no início. Significa que não se está investindo, e têm várias ideias e bons projetos que não têm acompanhamento e manutenção necessária, então regridem. Há uma série de muitas outras coisas que se poderia avançar mais em Porto Alegre, porque a cidade tem muitos movimentos e iniciativas que são pouco conhecidos; mas, quando se começa a pesquisar, vê-se, em termos de casas colaborativas, empresas inovadoras, startups, uma série de coisas que não aparecem e que estão fervilhando.
JC - E o que o senhor poderia destacar?
Nascimento - Tem uma experiência da Zona de Inovação Sustentável (Zispoa), que é uma experiência inovadora, e que não tem apoio de governo e empresas; é uma iniciativa da sociedade, de pessoas que têm um ideal de transformar Porto Alegre na cidade mais sustentável da América Latina. Também empresas que trabalham para dar um destino adequado ao resíduo orgânico. São estudantes que criam empresas para solucionar os problemas, são iniciativas pequenas, dezenas de empresas que tendem a crescer e a produzir um impacto maior na cidade.
JC - O respeito ao meio ambiente ainda é antítese do desenvolvimento?
Nascimento - Não. A palavra desenvolvimento tem uma discussão mais teórica. O prefixo "des" seria o não envolvimento. Talvez o correto seria dizer "envolvimento sustentável". Desenvolvimento não é o mesmo que crescimento; desenvolver deve ser um aprimoramento. E aí acho que o consumo, por exemplo, pode ser reduzido e oferecer as mesmas condições. Buscar outras formas de consumo que atenda às necessidades sem ter desperdício, como se tem hoje. Na questão da moda, há um movimento hoje que questiona: "Quem é que fez a tua roupa? Onde foi feita, em que condições foi feita?". Você começa a assumir a responsabilidade por aquilo. Quando se começa a ter essa consciência, vai se modificando a forma de consumo também. As pessoas começam a comprar roupas mais duráveis, a fazer trocas. Isso, por incrível que pareça, dá um ganho econômico. Dá para atender à necessidade de se diferenciar, satisfazer as necessidades de usar uma roupa legal sem a necessidade de comprar.
JC - Mas a indústria se alimenta dessa questão, de estar sempre produzindo, crescendo.
Nascimento - Mas existem exemplos de empresas que oferecem um serviço em vez de vender produto; muda sua forma de operar. Há empresa que não vende mais o pneu, mas aluga o pneu para o caminhoneiro. Ela vai controlar: toda vez que o pneu estiver gasto, ela dá um pneu novo e vai recuperar aquele pneu, então vende o serviço de (garantir) que teu caminhão vai andar sempre com pneu bom. Isso tem um custo. Se ela não vende pneu, está preocupada em tornar o produto durável. Várias oportunidades vão surgir com essa nova reconfiguração.

Perfil

Luis Felipe Machado do Nascimento, 58 anos, é natural de Tupanciretã. Fez graduação em Engenharia Elétrica, mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); e doutorado em Economia e Meio Ambiente pela Universität Gesamthochschule Kassel, da Alemanha, cujo título obteve em 1995. Em 2003, concluiu pós-doutorado na University of Massachusetts (EUA). Em Porto Alegre, atuou, em 1989 e 1990, na antiga Secretaria Municipal da Indústria e Comércio (Smic) na gestão de Olívio Dutra (PT), quando implantou uma incubadora de empresas de base tecnológica. A partir de 1995, ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) como pós-doutorando, onde criou, há 20 anos, a disciplina Gestão Socioambiental na Empresa. Tem como temas de interesse de pesquisa a Educação para sustentabilidade e Sustentabilidade em cadeias de suprimento. Recebeu, em 2004, o Premio Sudamericano Labor Académica en Sustentabilidad Empresarial, em Buenos Aires, Argentina; e em 2005, o Faculty Pioneer do World Resources Institute e Aspen Institute, em Nova Iorque (EUA). É professor titular na Escola de Administração da Ufrgs e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).