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Publicada em 22 de Agosto de 2017 às 08:31

Diminuir a tensão social passa por mudança sistêmica

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Juliano Tatsch, Laura Franco e Suzy Scarton
Juliano Tatsch, Laura Franco e Suzy Scarton
O Jornal da Lei ouviu, durante quatro meses, um total de 20 especialistas de, ao menos, oito áreas do conhecimento - Psicologia, História, Ciência Política, Educação, Direito, Sociologia, Teologia e Filosofia - para tentar entender a onda de intolerância que assola o Brasil, os motivos, o surgimento, o desenvolvimento e a consolidação de um ambiente de polarização social.
Entre as várias abordagens da questão, todas convergem em alguns pontos. Ausência de diálogo, crise econômica e política, desesperança no futuro, falta de representatividade nas esferas de poder, ausência de educação para o convívio, desconhecimento dos limites legais, incompreensão do uso das redes, entre outros.
O problema é conhecido e reconhecido por todos. Cabe, agora, dar o passo seguinte. Quais são os caminhos a serem trilhados para que esse quadro seja superado e fique apenas como lembrança de um momento perigoso para o País?
Um famoso adágio - atribuído a Renés Descartes (1596-1650) - diz que "não existem soluções simples para problemas complexos". Tendo ou não sido dita pelo filósofo e matemático francês, a frase se encaixa perfeitamente na análise sobre a situação atual do Brasil. Não se pode imaginar uma saída fácil para um ambiente de crise generalizada.
Com os poderes da República abalados - Executivo e Legislativo contaminados pela corrupção, e Judiciário lento, ineficiente e se deixando influenciar por interesses políticos -, nenhuma resposta açodada e simplista irá resultar em mudanças concretas e com bases sólidas.
O caminho da mudança passa por diversas áreas, com ações coordenadas e comprometimento dos atores sociais. Apaziguar os ânimos não significa dar fim aos debates, às discussões e às oposições. Ao contrário. Distensionar a sociedade é fomentar e dar condições para que as opiniões opostas possam conviver em harmonia, e para que as diferenças sejam valorizadas e respeitadas.

Pacto nacional deveria ser visto como prioridade

Sociedade protesta em Brasília contra corrupção e o que envolve no Brasil

Sociedade protesta em Brasília contra corrupção e o que envolve no Brasil

/EVARISTO SA/AFP/JC
A proposta de um pacto nacional, cujo interesse culmine em uma despolarização gradual da sociedade, não poderia abranger somente setores representativos, deixando de fora a sociedade, principal ator e vítima do ambiente de radicalismo. Uma das mais fortes críticas feitas por quem estuda os processos democráticos diz respeito à ausência de espaços de articulação e participação social nas instâncias tomadoras de decisão no Brasil.
Entre as metrópoles brasileiras, Porto Alegre foi pioneira na inclusão do cidadão na decisão de como e onde parte dos recursos municipais seriam investidos por meio do programa Orçamento Participativo. Envolver a população na escolha das prioridades de investimento é uma iniciativa salutar, mas não a única. A participação popular em uma democracia sadia vai além da definição dos destinos do dinheiro público.
O doutor em Sociologia pela Ufrgs Marcos Rolim aponta a ausência de espaços de deliberação coletiva na sociedade como um ponto nevrálgico da questão. Segundo ele, o desprezo por parte dos governantes à possibilidade de construção de fóruns democráticos de debate alija a população do papel de protagonista do próprio destino. "Temos raríssimas experiências, no Brasil, de constituição de políticas públicas que, de fato, foram abertas à opinião pública. Isso é ruim, porque as pessoas não se apropriam dos dados a respeito do interesse público, não sabem qual é o orçamento da cidade, por exemplo, ficam completamente alheias a isso", diz. Para ele, o processo de formação de uma sociedade mais informada deveria envolver a possibilidade do debate público em torno de iniciativas políticas, de definições importantes sobre o futuro de uma cidade, que não envolvem um ou outro governo, e sim uma geração.
Rolim indica a impossibilidade do debate respeitoso como um sinal preocupante de uma polarização social extrema. O sociólogo identifica esse momento no Brasil atual, onde são poucas as pessoas que se colocam no espaço público com a pretensão de falar e de escutar os outros. "Estamos perdendo a capacidade de escutar, porque estamos reproduzindo o tempo inteiro chavões e frases feitas que são, na verdade, anestésicos do pensamento. Em um debate na rede social que trata sobre maus tratos a um preso e o sujeito escreve embaixo 'tá com pena, leva para casa', ele está interditando o debate e, portanto, o pensamento", enfatiza. Esses chavões se tornam, então, instrumentos de intolerância, porque impedem que haja discussão.
Maynard vai além. Para o historiador, o quadro de intolerância atual aponta para a formação de uma sociedade fascista. "Você passa a conviver com uma sociedade em que as leituras extremadas e a ideia de uma injustiça frequente de um grupo frente a outro é cada vez mais comum. No Brasil, fica mais corriqueira a ideia de que um grupo está sempre sendo injustiçado e, consequentemente, esse grupo pode ser radical nas suas ações, pois só está se defendendo", alerta.
O recente caso do jovem que foi vítima de tortura ao ter sua testa tatuada após uma suposta tentativa de roubo no interior de São Paulo - e as reações à atitude - são um exemplo de como o pensamento radical se transforma, fácil e rapidamente, em atos fora da lei. Para Maynard, esses atos se baseiam no discurso de que os bons estão com os dias contados, de que existem pessoas que os ameaçam, e que, por isso, é preciso revidar. "É um sinal de uma sociedade que caminha para celebrar práticas cada vez mais extremadas", aponta o professor da Universidade Federal de Sergipe.
Diante desta constatação, é necessário um questionamento: quais seriam os meios de estimular o pensamento reflexivo? Frente a um cenário de uma tecnologia recente do ponto de vista histórico e em constante mutação, a compreensão do fenômeno cultural não virá de uma hora para a outra, e o melhor caminho para isso está na educação. E, sendo a educação um dever do Estado, como diz a Constituição Federal, cabe ao Estado se fazer presente e ativo nesse cenário, buscando saídas e propondo meios de formação de uma sociedade menos radical.
O filósofo Roberto Romano, porém, não acredita em uma educação para a tolerância, mas para o convívio. "Se você não faz isso por meio da educação, não há como modificar as relações dos humanos entre si. Para Platão, os humanos são seres violentos que precisam ser amansados. Esse processo de amansamento é a educação."

Disputa política abriu caminho para a radicalização

24/05/2017- Brasília- DF, Brasil- Centrais sindicais realizam manifestação em Brasília. .Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil protestos Brasília

24/05/2017- Brasília- DF, Brasil- Centrais sindicais realizam manifestação em Brasília. .Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil protestos Brasília

MARCELO CAMARGO/MARCELO CAMARGO/ABR/JC
No atual cenário brasileiro, a polarização política cresceu nas eleições presidenciais de 2014 e foi ganhando corpo, passando pelo processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, pelo surgimento de grupos organizados compostos majoritariamente por jovens das classes média e alta - inicialmente da sociedade civil, mas que acabaram guinando para o campo político -, e culminando, atualmente, no processo de reformas propostas pelo presidente Michel Temer, fortemente combatidas pelas centrais sindicais que representam os trabalhadores.
No futuro, 2014 talvez venha a ser conhecido como "o ano que não acabou". A campanha política mais agressiva do período pós-redemocratização gerou uma oposição que não aceitou a derrota - pedindo recontagem dos votos - e articulou um movimento de desestabilização do governo recém-eleito. Sem base política, atolado no maior escândalo de corrupção da história do País e pressionado por grupos organizados que foram às ruas, o governo caiu e foi substituído por outro, de viés ideológico bastante diverso, com força política, mas também profundamente envolvido no mesmo caso de corrupção.
Em meio a isso, os termos das discussões mudaram. "O meu político é honesto, o seu, não" deu lugar a "o meu político corrupto é melhor do que o seu". Os argumentos perderam espaço para a defesa cega de um lado. O objetivo da ação política mudou. Mais do que angariar aliados, o foco passou a ser criar, alimentar e fazer multiplicar os inimigos.
A estratégia não é nova. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) já havia falado sobre ela há quase 130 anos, no livro Crepúsculo dos Ídolos, publicado em 1888. "Cada partido compreende que interessa a sua própria conservação não permitir que se esgote o partido contrário; o mesmo sucede com a alta política. Uma nova criação, como o império alemão, por exemplo, tem mais necessidade de inimigos do que de amigos, pois em virtude do contraste começa a se sentir necessário, fazer-se necessário."
O professor de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Francisco Marshall aponta que esse quadro amplia as condições de adversidade e de desconforto, refletindo na tensão social, que se mostra presente nos ambientes micro e macro. "No macro estão as questões de Estado, planejamento, estratégia. No micro estão os posicionamentos ideológicos e políticos, que vão desde o convívio familiar aos conflitos na rede, intolerâncias que crescem e são frutos de uma falta de clareza, de lucidez na esfera pública", observa.
O historiador acredita que, enquanto a sociedade brasileira não superar esses litígios e colocar na mesa metas de bem comum, sem imposição violadora de uma tese sobre a outra, essa tensão não vai se dissolver. "Isso exigirá um esforço grande de diálogo, de estender pontes de parâmetros, e também de movimentos políticos em direção a um pacto, a uma repactuação. Porque, como está agora, é um ambiente de triunfo de classe, e isso não tem vida longa, é uma ilusão de poder. É uma aposta insensata na supremacia de classe. E lá está o problema de desigualdade, totalmente abandonado."

Interlocução aberta com a sociedade pode ser a alternativa

Diante desse cenário nebuloso, no qual caminhos se entrecruzam sem que um horizonte claro se apresente, o historiador Francisco Marshall indica que, sem um pacto - que envolveria um processo eleitoral saudável, uma regulação da comunicação com o objetivo de evitar "excessiva manipulação midiática", e a união das elites acadêmicas, jurídicas, políticas, empresariais, de governo e partidárias -, o Brasil caminha para episódios de conflito cada vez mais graves.
A pactuação proposta pelo pesquisador poderia partir do próprio governo, por meio da criação de um ambiente de interlocução. A ideia parte do princípio de que o Congresso não é legítimo o suficiente para isso devido à corrupção disseminada entre seus integrantes. "Em um regime político saudável, esse acordo poderia se encaminhar por meio do Congresso, mas não é o que está havendo agora. Teria que haver um outro cenário de interlocução, que inclui um amplo espectro de forças", afirma Marshall.
A intervenção estatal em situações sociais pode suscitar receios e críticas a respeito de uma postura de cunho autoritário incompatível com um estado democrático de direito. Para Dilton Cândido Santos Maynard, pós-doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, tudo dependeria do modo como o Estado viesse a intervir. A educação, por exemplo, exerce papel fundamental para que uma sociedade tenha chance de sair de uma leitura polarizada. Por ter o papel fundamental de educar, e de, assim, garantir a grupos que historicamente sofreram e sofrem preconceito tenham amparo, o Estado teria a obrigação de se fazer presente.
"O Estado não pode, no receio de parecer autoritário, deixar que o preconceito ganhe espaço", afirma Maynard. "A nossa legislação é muito clara no que diz respeito a isso. É preciso haver respeito aos povos indígenas, à população afrodescendente, aos deficientes, e o Estado é a instituição que a sociedade elegeu para fazer essa regulação. Isso não é autoritarismo", completa.
Um dos fundadores da sociologia como ciência acadêmica, o francês Émile Durkheim (1858-1917) já apontava, em um texto de 1911 publicado no livro Educação e Sociologia, que o Estado não pode se eximir de responsabilidades em relação aos caminhos que a sociedade trilha. Ele defende que a ação do Estado não pode ficar restrita e que, se a educação tem por fim adaptar a criança ao meio social para o qual se destina, é impossível que a sociedade se desinteresse desse trabalho.
Para Durkheim, cabe à sociedade lembrar aos educadores quais são as ideias e os sentimentos a serem impressos no espírito da criança, a fim de que o futuro cidadão possa viver em harmonia com o meio. "Se a sociedade não estiver sempre presente e vigilante para obrigar a ação pedagógica a exercer-se em sentido social, essa se colocará ao serviço de interesses particulares e a grande alma pátria se dividirá, esfacelando-se em uma multidão incoerente de pequenas almas fragmentárias, em conflito umas com as outras", pontua.
 

Saída do desequilíbrio social passa por resposta coletiva

MARCELO G. RIBEIRO/JC
Diante de um ambiente de conflagrado conflito social, a pergunta que surge é a seguinte: é possível sair dessa situação? A resposta não vem a partir de um momento de iluminação ou em uma conversa de mesa de bar. A construção da resposta tem de ser coletiva, assim como a execução da solução.
O psicanalista Alfredo Jerusalinsky acredita que, sim, é possível se desvencilhar do quadro atual de desequilíbrio social. Entretanto, ele não vê uma solução em curto prazo. “Algo precisaria mudar, uma mudança de tal tipo que afetaria todos os sistemas de poder. E, entre a ética e o poder, o sujeito costuma escolher o poder.”
Qual seria, assim, o caminho mais eficiente para se distanciar do extremismo? A filósofa alemã Hanna Arendt (1906-1975) pode ter apontado uma direção ao acompanhar de perto o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann (1906-1962), em Jerusalém, em 1961. O tenente-coronel do grupo paramilitar ligado ao partido nazista foi o principal operador logístico do Holocausto judeu na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Hanna cobriu o julgamento do criminoso de guerra – preso na Argentina em uma espetacular ação do Mossad (serviço secreto de Israel) em maio de 1960.
A filósofa observou que Eichmann não era um homem intrinsecamente mau em sua natureza, mas um sujeito incapaz de refletir a respeito dos seus atos. Apesar de corroborar atitudes de sadismo cruel, ele não era um sádico com problemas mentais. Era um homem simplório que cumpria ordens dedicadamente sem questioná-las, sem reagir a elas.
Hanna Arendt, então, levanta uma hipótese a respeito da questão: não será o mal uma decorrência da ausência de reflexão? Para ela, a resposta é sim, pessoas incapazes do pensamento estariam mais propensas à prática do mal.
Diante desta constatação, outra pergunta surge: quais seriam os meios de se estimular o pensamento reflexivo? Frente a um cenário de uma tecnologia recente do ponto de vista histórico e em constante mutação, a compreensão do fenômeno cultural não virá de uma hora para a outra e o melhor caminho para isso está na educação. E, sendo a educação um dever do Estado, como diz a Constituição Federal, cabe ao Estado se fazer presente e ativo nesse cenário, buscando saídas e propondo meios de formação de uma sociedade menos radical.
O filósofo Roberto Romano, porém, não acredita em uma educação para a tolerância, mas para o convívio. “Se você não faz isso por meio da educação, não há como modificar as relações dos humanos entre si. Para Platão, os humanos são seres violentos que precisam ser amansados. Esse processo de amansamento é a educação”, pensa.
Alternativas ao Estado
Se democrático, o Estado não só pode como deve atuar para promover o respeito às diferenças. Isso pode ser feito fortalecendo os sistemas educacional, de saúde e de execução política da segurança. Outro braço do poder estatal é, obviamente, o Judiciário, que deve agir sempre que provocado em defesa da paz em sociedade. "Isso não tem nada a ver com autoritarismo, mas com a promoção do convívio plural das diferenças”, explica o desembargador federal e professor do Centro Universitário Ritter dos Reis (Uniritter) Roger Raupp Rios.
Considerando que seja interesse do Estado apaziguar os ânimos, uma intervenção por parte dos poderes públicos deveria ser feita com cautela, sem correr o risco de jogar o mesmo jogo do adversário. “Como sabemos, os fins não podem justificar todos os meios, e os limites democráticos se impõem ao próprio Estado e às instituições”, pondera Licínio Lima, professor catedrático da Universidade de Minho, em Portugal. 
O diálogo e uma cultura de negociação são alternativas à manutenção de recursos violentos, como guerras, terrorismo e destruição – mas deve ser um diálogo verdadeiro, que busque decisões participadas e negociadas. “Se nenhuma das partes tem capacidade de se descentrar da sua posição inicial, ou a considera definitiva, tudo se tornará mais difícil”, considera Lima.
Não é por falta de comunicação que os conflitos não são resolvidos. No entanto, uma atitude de diálogo verdadeiro implica a construção de um clima mínimo de confiança, de empatia, e a rejeição de uma concepção de poder do tipo “soma-zero” ou “soma-nula”, em que qualquer ganho por uma das partes seria visto como uma perda pela outra. “Tal posição, se repetida, pode piorar a situação e acirrar os ânimos, e isso tende a ser ampliado quando a sociedade é profundamente marcada por desigualdades sociais, econômicas e culturais”, explica o acadêmico português.
O matemático vencedor do Nobel de Economia em 1994, John Nash (1928-2015), tratou disso em sua tese de doutorado na Universidade de Princeton (EUA), em 1950. A proposta de Nash aponta que, em um cenário de disputa no qual dois ou mais jogadores estão envolvidos, nenhum irá triunfar se tomar atitudes unilaterais. Assim sendo, ele aponta que, para que todos saiam vencedores, as escolhas não podem ser tomadas apenas em benefício dos indivíduos ou do grupo. Nash institui um equilíbrio não cooperativo, no qual somente decisões em benefício do indivíduo e do grupo resultarão em resultados positivos para todos. Ou seja, o indivíduo A deve fazer o seu melhor em função do que o B está fazendo, que, por sua vez, é o melhor que ele pode fazer em função do que o A está fazendo. Assim, todos fazem o seu melhor individualmente e o grupo também acaba triunfando.
A intervenção estatal em um cenário polarizado nem sempre é negativa. O ideal é que o Estado aja por meio das instituições públicas, cumprindo as regras estabelecidas. Se as regras são desrespeitadas de maneira sistemática, cria-se o caminho da violência. "Você sufoca uma rebelião, mas não resolve o problema”, explica o cientista político Benedito Tadeu César. O Estado toma, nesse caso, atitudes com postura autoritária, usando força para impor a ordem, quando teria de usar os instrumentos institucionais.

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