Novas tecnologias s�o terreno f�rtil para fanatismos
Teólogo Jung Mo Sung identifica em interpretações equivocadas pontos de intolerância em textos religiosos.
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Quanto mais a religião tenta se sistematizar, maior é a tendência de se tornar intolerante, diz Ricardo Gondim.
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Para o psicanalista João Angelo Fantini, na intolerância, o ponto de partida para reconhecer o outro é sempre negativo.
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Filósofo Roberto Romano observa que o escravismo e as desigualdades sociais são fatores de preconceito.
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Inclusão aumentou o preconceito de classe, diz historiador Dilton Cândido Santos Maynard.
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Alfredo Jerusalinsky: radicalização de posições passa pela ausência de representatividade do indivíduo na teia social.
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Bolhas de opinião produzem engrandecimento sistêmico, afirma o sociólogo Marcos Rolim.
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Não há quem não tenha presenciado ou participado de algum debate ríspido, às vezes agressivo, sobre um assunto qualquer. O embate de ideias é a base de uma democracia livre, e, assim sendo, deve ser fomentado. Quando esse enfrentamento, porém, ultrapassa o limite da civilidade e das opiniões, e se transforma em uma troca vazia de ataques sem argumentos, de ofensas sem pensamento reflexivo a respeito da questão, o que antes era o oxigênio de uma sociedade democrática vira o laço que a enforca.
É possível que o surgimento da internet tenha ocasionado a mais impactante transformação nos modos de comunicação, se não de vida, no último século. Os conceitos de distância e tempo foram ressignificados por meio das redes. O que era distante, agora, está ao alcance de um clique. O que demorava dias, semanas, meses para chegar, agora, é recebido instantaneamente.
A internet, com seus incontáveis benefícios, porém, é apenas uma ferramenta. E, assim como qualquer outra, pode ser usada para fazer o bem ou para fazer o mal. Se, desde o seu surgimento, ela já foi espaço propício para a disseminação da maldade, foi, mais recentemente, com o surgimento e posterior disseminação do uso das chamadas redes sociais, que a propagação do discurso de ódio, da intolerância, do extremismo chegou ao ápice.
Revolução recente
Para o filósofo Roberto Romano, ainda é cedo para se fazer uma análise definitiva sobre o papel da internet na formação de uma sociedade que não respeita o diferente. Segundo ele, toda grande inovação cultural leva muito tempo para ser assimilada e, antes de ser totalmente, já surgiu outra inovação mais avançada do que ela. "A humanidade precisa de certo tempo para digerir o que de mais profundo a revolução tecnológica produz. No caso da internet, das redes sociais, estamos apenas no começo. Não há, ainda, uma maturação, sequer tecnológica. Por enquanto, é um instrumento de ataque de todos contra todos", afirma.
Romano salienta o fato de que boa parte das pessoas que fazem uso de redes sociais, como Facebook e Twitter, não possui base da cultura anterior à revolução tecnológica. "Não tem a base da História, da Economia, da Matemática, por exemplo. A grande maioria não conseguiu dominar completamente essa cultura anterior. A humanidade ainda não conseguiu isso com o Renascimento (período compreendido entre os séculos XV e XVI)", aponta.
Falso anonimato
A novidade que as redes sociais representam também é ressaltada como um fator importante pelo psicanalista João Angelo Fantini. Ele alerta que, mesmo não existindo mais, o sentimento imaginário de anonimato que as redes proporcionam permanece. Assim, é possível pensar que as redes funcionam na mesma lógica da experiência dos indivíduos na massa (como em um estádio de futebol, por exemplo). "Ela oferece um falso anonimato e a possibilidade de imersão e de perda de limites, isto é, de o sujeito agir em público como se estivesse individualmente fora do alcance dos outros, revelando os segredos sujos que evitaria mostrar em sociedade", afirma.
Assim, se vendo em um espaço onde tudo é permitido, no qual não há limites nem regras, o indivíduo se comporta sem saber muito bem para onde ir, dançando conforme a música. Fantini salienta que o espetáculo nas redes sociais pode ser "um teatro onde cada um tenta defender - mais que suas ideias políticas - a sua própria crença". No campo da política, isso pode significar uma forma de defesa de crença pessoal que, não raramente, resulta em uma posição que ultrapassa os fatos, vindo a ser entendida mais como uma garantia à integridade do próprio indivíduo, uma forma de defesa narcísica. "Essa situação não atinge somente 'ignorantes', 'fascistas', 'comunistas' ou tantos outros significantes utilizados nos posts agressivos encontrados nas mídias sociais. Atinge qualquer um", afirma o pesquisador, lembrando a lição freudiana de que a informação e a educação não necessariamente afetam o modo como os indivíduos percebem o mundo. "Nosso inconsciente afeta nossa percepção de mundo, e nossos preconceitos podem nos levar a conclusões independentes da veracidade ou não das mensagens."
Bolhas de opinião
Caminhando por um terreno que não conhece bem, o indivíduo acaba por ser um ator pouco consciente do papel que interpreta, sendo, em boa parte das vezes, levado pela força do movimento de arrasto das redes. As redes sociais também provocam a formação de "bolhas", nas quais o indivíduo se isola de quem pensa diferentemente de si. O fenômeno é fator importante na formação da narrativa de pensamento único.
O papel que as "bolhas" possuem também é salientado pelo doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Marcos Rolim. Por se aproximar e se ver cercado de pessoas que pensam como ele, o indivíduo passa seus dias dialogando com seus iguais. "Isso produz engrandecimento sistêmico. Perco a diferença, que só me pode ser oferecida pelo estranho, por quem vê o mundo diferente. E, quando há um contato, uma fricção entre as bolhas, isso só produz descarga elétrica", diz.
Debate cego
Por fim, a perda de espaço por parte da imprensa tradicional na formação de narrativas, que deveria atuar como mediadora e contraponto ao quadro de desinformação consciente - ou pós-verdade -, incrementa o cenário de radicalização dos discursos. "Com frequência, o resultado disso é um esgarçamento dos laços sociais em que, não raro, não apenas inimigos ou desconhecidos, mas mesmo velhos amigos param de trocar ideias e se entrincheiram junto a outros que - aparentemente - compartilham seus pontos de vista, passando a fazer fila com aqueles que, às vezes, têm apenas uma opinião em comum, mas outras não necessariamente compartilhadas", observa Fantini.
Dessa forma, o debate se desvirtua em seu sentido - de troca de ideias e pontos de vista -, passando a ser um ringue de imposição de visões. "Há uma diferença essencial entre um debate em busca de uma verdade e um confronto dirigido à imposição de convicções. O primeiro requer o reconhecimento de um limite de todo e qualquer saber e a existência de um vasto território de ignorância. O segundo somente requer domínio das artimanhas de uma grande habilidade retórica", aponta o psicanalista e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano Alfredo Jerusalinsky.
O estudioso ressalta que toda a ilusão de ser detentor de uma verdade total é fértil para o surgimento de posições extremistas, pois se tratam de discursos que suprimem a dúvida e a interrogação. "A liberdade consiste no exercício das diferenças. As diferenças não cabem onde somente há certezas", diz.
O individual e o coletivo
A polarização das discussões no campo político é influenciada pela relação entre fatores de cunho individual e de cunho coletivo. Jerusalinsky afirma que, quando uma pessoa ataca outra para fazer a defesa de um ponto de vista, o que ela esconde, na verdade, é o desejo de defender a si própria. Conforme o psicanalista, em termos de discurso e linguagem, o sujeito é o ponto de intersecção entre o individual e o coletivo. "Ele tem uma série de significações que o singularizam e o permitem saber quem é. Com essa bagagem de significações, ele vai em direção ao coletivo", explica.
De acordo com o pesquisador, que é mestre em Psicologia Clínica, quando o cidadão não se vê representado no campo do discurso - que compreende, entre outros, as políticas de Estado e de governo, os sistemas de poder, as leis escritas, que substituem as leis simbólicas -, começa a pedir que alguém resolva esse dilema. Assim, em desespero, o sujeito vai em busca de algo que represente alguma solução. Nessa busca, ele se torna passional, pois é a vida dele que está em jogo. "Ele não pode discutir isso com calma. Essa é a razão de a discussão não ser muito sensata."
Na análise do psicanalista, a radicalização das posições passa umbilicalmente pela ausência de representatividade do indivíduo na teia social, pois, quando o discurso social se torna totalitário, como atualmente, ele reduz o leque de alternativas de representação para o sujeito. Sem se ver representado por quem comanda o discurso social, a busca de novos traços identificatórios se amplifica. É aí que a internet ganha espaço. "A rede pode servir para criar grupos. Esses pequenos núcleos permitem viver na ilusão de que, pelo menos, não se está só. Não há para onde ir, mas, pelo menos, não se está só", conclui Jerusalinsky.