Desigualdade está nas origens do preconceito no Brasil
Marshall, Maynard e Tadeu César apontam razões para casos de radicalismos crescerem no Brasil
FOTOS FREDY VIEIRA, ARQUIVO PESSOAL E CLAITON DORNELLES/JC
Último país do continente a dar fim à escravidão, o Brasil ainda colhe em 2017 os frutos plantados em séculos de exclusão de grupos sociais. Historicamente alijados das instâncias de poder, pobres e negros sofrem hoje em dia com as mais diversas formas de preconceito.
Para o historiador Francisco Marshall, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), a polarização política e cultural tem como marco de anterioridade a condição de desigualdade social que permeia toda a história brasileira. Conforme o estudioso, por trás do atual ambiente político-social do Brasil, há uma polarização entre a defesa de um projeto social e a de um projeto de capital.
A crise cultural, porém, não é exclusividade brasileira, destaca o historiador. "Nos Estados Unidos, a eleição do Donald Trump provocou uma onda de irracionalidade etnocêntrica, de atitudes de obscurantismo ético, de nacionalismo exacerbado, de xenofobia", salienta. Essa onda, segundo Marshall, está por trás de outro fenômeno, o de "uma certa irracionalidade disseminada", que tem como amparo a pós-verdade difundida por políticos que se movimentam nesse território de formulações irracionais.
A posição é compartilhada pelo doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Benedito Tadeu César. Para ele, a explicação para o extremismo no campo político passa intrinsecamente pela desigualdade extrema existente no País.
Crise política
Afora o fator socioeconômico, historicamente desigual e multiplicador de problemas no Brasil, o momento atual apresenta a maior crise no campo político desde a redemocratização, após os 21 anos (1964-1985) de regime militar. O sistema de poder representativo, no qual o povo escolhe os governantes por meio de eleições diretas, fraqueja em um ambiente em que nenhum partido político consegue tomar para si os anseios da sociedade e, tampouco, apresentar respostas e caminhos a serem trilhados para que a crise chegue ao fim.
Inundado em um cenário de corrupção espraiada horizontal e verticalmente, em todos os níveis, o Brasil parece ter entrado em um vórtice de caótica volatilidade nas instâncias de poder. Assim, sem mais enxergar nas instituições políticas a representatividade que lhes havia sido atribuída, o cidadão perdeu a crença de que a política era o caminho para a resolução das dificuldades nacionais. Ser político - profissional ou ocasional - ou estar, de alguma forma, envolvido em atividades políticas passou a ser visto como um atestado de desonestidade.
O pós-doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Dilton Cândido Santos Maynard destaca que os ataques sofridos pela política como forma de articulação e organização social se originam em uma confusão entre o político - um cidadão que chega às instâncias de poder - e a política, aquilo que torna viável a vida em sociedade, que faz suportável o convívio entre povos diferentes sem que seja necessária a guerra. "Nos anos 1920, o fascismo ganhou força justamente criticando a política. Os primeiros sinais de que uma sociedade caminha para um ambiente de atos extremos é a desqualificação da política como ato cotidiano, ato ordinário da nossa vida", avalia.
No caso brasileiro atual, o descrédito é generalizado. Não há sigla política que escape, independentemente da linha ideológica que siga. A esquerda não presta para quem é de direita, e a direita não presta para quem é de esquerda. O que sobra? O centro. Historicamente fiel da balança nos governos de coalização do País, os partidos que não se vinculam a nenhum dos lados opostos - ao menos não publicamente - acabavam equilibrando a disputa entre discursos. Esse cenário, porém, já não existe mais. Para Tadeu César, no campo da Ciência Política, tem-se visto que, nos momentos em que o centro político perde força, os extremos se digladiam. "Acho que foi o que aconteceu aqui no Brasil", diz.
Busca por culpados
Quando a ordem social está em desequilíbrio, a reboque da polarização das opiniões, surge a busca por culpados. Maynard acredita que, no momento em que a sociedade começa a retirar de si a responsabilidade por certos acontecimentos e passa a apontar bodes expiatórios, entra-se no caminho da intolerância. O historiador aponta o conceito do "outro inconveniente", criado pelo teórico alemão Peter Gay (1923-2015). A definição diz respeito a uma ou mais figuras apontadas como culpadas por problemas que atingem determinada sociedade.
A História comprova a observação de Gay. O caso mais célebre e de maiores consequências foi o da Alemanha em crise após a derrota na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Em um país que se sentia injustiçado pelos acordos de paz, a ira da busca por responsáveis recaiu sobre os judeus - e sobre todos que, de algum modo, poderiam representar resistência ao regime nazista.
A figura do "outro inconveniente", de certa maneira, sempre esteve presente no imaginário moderno brasileiro. "A sociedade brasileira é assim, por conta da colonização portuguesa. Nós, enquanto cidadãos, não temos nada a ver com o que é feito. Culpa-se a colonização, uma outra sociedade pelo que estamos vivendo. O indivíduo não se assume como cidadão. Isso é sempre perigoso", observa Maynard.