Uma resolução próxima de ser aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pode ampliar a cidadania para pessoas trans, transexuais e travestis nos ambientes ligados ao Judiciário. A partir dela, o uso do nome social - pelo qual a pessoa prefere ser identificada e que reflete sua identidade de gênero - passa a ser regulamentado em foros, varas, tribunais e cartórios de todo o Brasil. O texto passou por um processo de sistematização, após consulta popular entre os meses de junho e julho.
No momento, a proposta está com votação pela metade no plenário do CNJ. No final de agosto, quatro conselheiros, incluindo o relator Carlos Eduardo Dias, votaram de forma favorável à versão mais recente do texto - mas o corregedor João Otávio de Noronha pediu vistas, o que interrompeu a sessão. Com o prazo regimental para que o texto seja devolvido já quase encerrado, caberá à nova presidente do CNJ, Carmen Lúcia, pautar a questão em uma das próximas sessões.
De acordo com Dias, a natureza da resolução fazia com que fosse especialmente importante realizar uma consulta pública. Foram cerca de 80 contribuições, vindas de entidades ligadas a demandas LGBT, servidores, advogados e psicanalistas. "A receptividade ao texto original foi muito boa, e foi possível fazer um aprimoramento grande a partir das sugestões recebidas", acentua. Segundo o conselheiro, já há um "esclarecimento grande" dentro do CNJ sobre a questão. "Acredito que o assunto será enfrentado sem dificuldades", reforça.
A resolução garante a possibilidade de uso do nome social a "pessoas trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários, aos magistrados e magistradas, aos estagiários, aos servidores e trabalhadores terceirizados do Poder Judiciário em seus registros, sistemas e documentos". A adoção do nome social será prioritária em quase todas as esferas do Judiciário, com exceção de comunicações a órgãos externos onde a não utilização do nome de registro possa causar problemas na obtenção de direitos por parte do requerente. No caso de magistrados, servidores, estagiários ou terceirizados, a solicitação de uso do nome social pode ser feita por escrito no ato da posse ou em qualquer momento posterior.
Pela norma, fica garantido o uso de banheiros, vestiários e demais espaços separados por gênero de acordo com a identidade de gênero e não do sexo de cada pessoa. Também estão previstos esforços de formação continuada sobre o tema pelas escolas nacionais da magistratura, bem como pelo Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário, em cooperação com as escolas judiciais.
Além de normatizar o uso do nome social por parte de magistrados, servidores e terceiros, Dias defende que a nova regra terá efeito positivo sobre os usuários do sistema judiciário. "Não é raro acontecer de chamarem uma testemunha com nome masculino e ingressar na sala uma pessoa com aparência de mulher, por exemplo. Isso causa um embaraço tanto para a própria testemunha quanto para os servidores, que ficam sem saber como dirigir-se a essa pessoa, se devem perguntar o nome feminino... A principal ideia é que, a partir da resolução, possamos eliminar esses constrangimentos."
A iniciativa do CNJ dialoga com outras medidas que vêm sendo adotadas por órgãos públicos estaduais e federais. Em abril deste ano, foi editado pela então presidente Dilma Rousseff o Decreto nº 8.727, que dispõe sobre o emprego do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais na administração pública federal. Em 2014 e 2015, a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) também editou duas resoluções sobre o tema. Uma delas, de nº 11/2014, criou parâmetros para a inclusão dos itens "orientação sexual", "nome social" e "identidade de gênero" em boletins de ocorrência policial, enquanto a Resolução nº 12/2015 trata do reconhecimento da identidade de gênero em instituições de ensino.
Medida deve criar 'efeito cascata' positivo
Mulher transexual e militante de direitos humanos, a advogada Luisa Stern acredita que, uma vez lançada, a resolução pode causar um "efeito cascata" benéfico à causa das pessoas trans. Ela lembra o trajeto seguido por outra conquista importante dentre as demandas LGBT: o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
"Após as decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o CNJ aprovou uma resolução (em 2013) impedindo que cartórios se recusassem a firmar o casamento igualitário. Foi uma medida que consolidou uma conquista", explica.
De acordo com Luisa, existe uma barreira social que dificulta o acesso de transexuais e travestis ao ambiente judiciário, e que tende a ser aliviada na medida em que a resolução seja aprovada. "São pessoas muito maltratadas, e que acabam deixando de reivindicar direitos por terem medo de serem maltratadas novamente dentro do serviço público. São agredidas, roubadas e preferem não ir na delegacia, por medo de serem tratadas como se fossem elas as criminosas. A partir dessa decisão, talvez isso vá deixando, aos poucos, de ser um receio."
A ativista participou ativamente das discussões do Decreto Estadual nº 49.122, de 2012, que instituiu a emissão e o uso da carteira de nome social para travestis e transexuais no Rio Grande do Sul. Segundo ela, mesmo sendo uma medida "intermediária", ela continua tendo força simbólica na conquista de direitos em escala nacional. "Mesmo que a carteira não tenha valor fora do Estado, foi a primeira vez no País que um órgão emissor atendeu à identidade de gênero."
Expectativa de vida trans é menos da metade da média nacional
A situação envolvendo pessoas trans no Brasil é extremamente grave. Segundo dados da Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra), a expectativa de vida de uma pessoa transexual ou travesti no País é de cerca de 35 anos - bem abaixo da média nacional, estimada pelo IBGE em 75,2 anos. Além disso, 40% de todos os assassinatos de pessoas trans registrados no mundo ocorrem em solo brasileiro. Ainda segundo a Antra, 90% das travestis e transexuais brasileiras vivem da prostituição.
Na medida em que ações voltadas a essa população vão sendo adotadas por órgãos públicos, também ocorrem reações contrárias. Em maio deste ano, deputados de dez partidos protocolaram projeto que pretende revogar o Decreto Presidencial nº 8.727. Os parlamentares alegam que a alteração ou abreviatura de nomes deve ser alvo de lei, não estando dentro do alcance de um decreto. Entidades ligadas a causas LGBT criticam a proposta, alegando que o nome social não causa mudança no registro civil.