"Eu sou preto", afirmava com convicção Luiz Carlos da Rosa Lopes, de 57 anos. Morador da Restinga há mais de 30 anos, o funcionário dos Correios foi um dos participantes de uma ação de estímulo à autodeclaração de raça-cor em atendimentos em saúde realizada ontem na esplanada do bairro. A mobilização foi promovida pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Hoje, há subnotificação desse quesito nos dados colhidos, por exemplo, para a confecção do cartão do Sistema Único de Saúde (SUS). As informações contribuem para a qualificação do atendimento e a organização de políticas públicas.
Para Lopes, é importante não haver vergonha na hora de declarar sua raça. "Brasileiro é tudo misturado, ninguém é puro, mas a minha origem é africana. As pessoas se confundem na hora de dizer qual sua origem e acabam falando a cor que querem, e não a que são de fato", pontua.
A ação envolveu o registro de fotografias de pessoas com placas dizendo a cor com que se identificam - preto, branco, pardo, indígena ou amarelo. Durante todo o mês de junho, a gerência distrital Restinga Extremo-Sul também realizará encontros de formação com as equipes das unidades de saúde, a fim de sensibilizar os servidores sobre a importância de perguntar aos pacientes qual consideram sua raça-cor. O quesito raça-cor existe desde 2009 nas políticas de saúde.
O jardineiro Oni Matos Alves, de 52 anos, foi fotografado se autodeclarando indígena. "É difícil falar sobre a sua própria raça, mas é necessário se autodeclarar, porque pode fazer diferença no diagnóstico", observa. Em seu registro de nascimento, no entanto, Alves consta como branco.
O mesmo ocorreu com a aposentada Dejanira Correia da Conceição, de 63 anos. "Eu me considero parda, mas sou registrada como branca. Minha mãe era loira de olhos azuis e meu pai era negro, aí o dono do cartório onde foi feito o registro, que era primo-irmão da minha mãe, colocou que eu era branca e tirou os nomes do meu pai, só deixou o 'Conceição'", conta. O racismo fez com que a família materna rompesse relações com a mãe de Dejanira depois do casamento.
A aposentada considera o Brasil um "país de cínicos", que dizem não ter preconceito, mas têm. "Na minha casa, todo mundo diz que meu pai era moreninho, e não negro. Era vergonhoso antigamente se autodeclarar negro. É algo enraizado, que exige muita luta para mudar", comenta.
Como a minoria se declara negra, números são distorcidos
Segundo Márcia Noronha, coordenadora do Comitê da Saúde da População Negra da Restinga, a população negra é mais propensa a ter diabetes, hipertensão arterial, anemia falciforme, tuberculose e miomas. Além disso, há maior incidência de mortalidade materna, infantil, ausência em consultas pré-natal e são mais vítimas de homicídios.
A taxa de pessoas que se autodeclaram negras, contudo, é baixa. "Pelos números oficiais, apenas cerca de 30% da população da Restinga é negra e o resto é de brancos, mas esses são falsos dados, pois, se circularmos pelo bairro, veremos uma maioria negra", destaca Márcia.
Ainda há pouca consciência entre os servidores da saúde de que é necessário informar como o paciente se identifica, conforme a coordenadora. "Eles acham que não é necessário perguntar sobre a autodeclaração. Mas, se existe essa política, deve ser cumprida. Por que é normal perguntar a data de nascimento, mas não a raça-cor?", questiona.
De acordo com Luís Eduardo Nunes, assessor da área técnica da Saúde da População Negra, é preciso sensibilizar servidores e população sobre a vulnerabilidade da população negra. "No caso da mulher negra, por exemplo, quando chega grávida para atendimento, o profissional precisa ter um olhar diferenciado, pois há toda uma realidade diferenciada para o nascimento daquele bebê", explica.
O principal foco não é em doenças que atacam negros por motivos genéticos, e sim as que surgem por motivos sociais. "A criança negra entra na creche e já é vista de forma diferente do que a branca. É só andar pelo Centro de Porto Alegre que podemos ver que a maioria das pessoas em situação de vulnerabilidade social, morando na rua, é negra. Elas estão ali por conta de um descaso da sociedade, que as coloca em um estágio que causa transtornos mentais como alcoolismo e dependência de drogas", ressalta Nunes.