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Entrevista Especial

- Publicada em 24 de Abril de 2016 às 22:47

Impeachment não é golpe, afirma Eduardo Carrion

A gestão petista comprometeu o ideário libertário e de esquerda, diz Carrion

A gestão petista comprometeu o ideário libertário e de esquerda, diz Carrion


FREDY VIEIRA/JC
O advogado constitucionalista Eduardo Carrion discorda da tese dos apoiadores da presidente Dilma Rousseff (PT), que sustentam que o processo de impeachment contra ela é um "golpe", pois as pedaladas fiscais principal argumento para o pedido de cassação não configurariam crime de responsabilidade.
O advogado constitucionalista Eduardo Carrion discorda da tese dos apoiadores da presidente Dilma Rousseff (PT), que sustentam que o processo de impeachment contra ela é um "golpe", pois as pedaladas fiscais principal argumento para o pedido de cassação não configurariam crime de responsabilidade.
Segundo Carrion, embora seja possível discutir juridicamente se as pedaladas são crime de responsabilidade, não se trata de golpe. "Apesar de as hipóteses de crime de responsabilidade serem vagas na Constituição, em compensação, existem requisitos legais e constitucionais ao longo do processo. Portanto, não me parece que se possa dizer que o impeachment seja uma tentativa de golpe", argumenta.
Contudo, nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o advogado constitucionalista afirma que, para ele, a solução ideal seria a renúncia de Dilma e do vice-presidente Michel Temer (PMDB), para a convocação de eleições presidenciais diretas até o final do ano. Ou então a implementação de um governo de transição conduzido pela presidente, mas com membros de perfil técnico e ilibado, até as eleições de 2018. No entanto, é realista: "Não há desprendimento político para isso no Brasil".
Além disso, analisa que os 13 anos de gestão petista no governo federal da maneira como foi conduzida, "fazendo concessões ao que há de mais atrasado e conservador na política nacional" prejudicou um projeto de governo esquerdista no futuro. Diante deste cenário, Carrion projeta que, a curto prazo, se restabelecerá no País a hegemonia de um projeto liberal conservador.
Jornal do Comércio - Os apoiadores da presidente Dilma dizem que o impeachment é um golpe. Os opositores dizem que impeachment é constitucional. Na sua avaliação, o impeachment é golpe ou constitucional?
Eduardo Carrion - Tanto a ideia de que o impeachment é golpe quanto a de que houve estelionato eleitoral nas eleições presidenciais de 2014 são uma tentativa de cada uma dessas forças políticas de fazer sua própria narrativa. No caso de entender o impeachment como golpe, trata-se de uma tentativa de se colocar de maneira mais favorável no cenário que se abre em um eventual pós-impeachment. De qualquer forma, creio que não podemos qualificar o atual processo de impeachment, decorrente de crime de responsabilidade, como tentativa de um golpe de novo estilo, por assim dizer. O impeachment é um instrumento que faz parte da vida política, é um instrumento extraordinário para ser implementado em situações especiais.
JC - A justificativa para o pedido de impeachment são os decretos orçamentários e principalmente as pedaladas fiscais. Os governistas dizem que as pedaladas não configuram crime de responsabilidade. Os oposicionistas dizem que sim. A Constituição especifica se as pedaladas fiscais são ou não crime de responsabilidade?
Carrion - As hipóteses previstas na Constituição e na lei que a regulamenta, por vezes, são muito vagas, imprecisas. Isso acontece com os crimes de responsabilidade, que possuem uma natureza híbrida, ao mesmo tempo jurídico e política. É justamente por isso que o ordenamento jurídico prevê alguns requisitos para o julgamento dos crimes de responsabilidade. Por exemplo, a decisão de dois terços da Câmara dos Deputados para abrir processo de impeachment; e dois terços dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para condenar a presidente na sessão de julgamento dos crimes de responsabilidade. Então, apesar de as hipóteses de crime de responsabilidade serem vagas na Constituição, em compensação, existem requisitos legais e constitucionais ao longo do processo. Portanto, não me parece que se possa dizer que o impeachment seja uma tentativa de golpe.
JC - Os apoiadores da presidente dizem que a tentativa de cassá-la esconde a intenção de acabar com a Operação Lava Jato. Qual a importância da Lava Jato?
Carrion - Temos que dar toda a força à Operação Lava Jato, porque, em grande medida, é a responsável pelo desnudamento de práticas da elite política brasileira que desmerecem à população, como o clientelismo, o mandonismo e o patrimonialismo. Desvelar essas práticas é o primeiro passo para a mudança dos paradigmas políticos. O grande risco hoje, na minha opinião, é de que o impeachment, sobretudo do ponto de vista das forças de oposição ao governo federal, seja uma tentativa de dar satisfação à opinião pública e procurar interromper esse processo de desnudamento e responsabilização dos maus políticos e maus empresários. Por outro lado, há também um risco de um grande acordão entre as elites políticas, envolvendo lideranças das atuais forças governistas, inclusive do PT, na tentativa de dificultar o avanço das investigações. Contudo, não sei se vão conseguir prejudicar a Lava Jato, porque hoje a Polícia Federal, o Ministério Público e o Poder Judiciário têm mais autonomia em face do poder político e econômico, além de estarem melhor instrumentalizados para enfrentar os crimes de corrupção.
JC - Acredita que o processo de impeachment pode deixar sequelas ou benefício à democracia brasileira, independentemente do governo que esteja no poder?
Carrion - Um processo de impeachment sempre é traumático para a experiência democrática, porque, de uma forma ou de outra, significa afastar um presidente eleito pelo voto popular. Mas, no atual momento político, que engloba inclusive o atual processo de impeachment, não vejo só aspectos negativos. Embora não haja como negar a crise econômica, política e moral, não vejo elementos de uma crise institucional. Pelo contrário, as instituições de fiscalização e responsabilização estão atuantes. Circunstancialmente, os poderes Executivo e Legislativo estão parcialmente deslegitimados. Mas isso é um momento de um processo de avanço institucional e democrático. Além disso, há uma maior e melhor instrumentalização do Poder Judiciário, a responsabilização da alta classe política e de setores da elite empresarial, uma sociedade mais atenta, meios de comunicação mais investigativos etc. Claro que existe um clima tenso, dividindo os brasileiros, o que não é positivo, pois dificulta a construção. Mas acredito que seja momentâneo. Creio que o fundamental, independentemente da consumação ou não do impeachment, é que estamos nos dando conta, de forma generalizada, do que é a nossa política.
JC - Diante da crise política no Brasil, existe a possibilidade de o governo reverter o impeachment? Há alguma alternativa a esse processo que, na sua visão, solucione a crise política?
Carrion - Uma forma de resgatar uma maior sintonia com a sociedade talvez fosse as eleições presidenciais diretas, antes de transcorridos dois anos do exercício do mandato, porque, por dispositivo constitucional, se o presidente deixa o cargo nos dois últimos anos, a eleição do sucessor tem que ser indireta. Não estou defendendo uma proposta de emenda constitucional reduzindo o mandato presidencial da Dilma, porque isso seria inconstitucional. A hipótese que defendo é a renúncia tanto da presidente quanto do vice, o que ocasionaria, nesse momento de crise política, a retomada do contato com o soberano, que é o povo. Uma outra possibilidade (em caso de o impeachment não se consumar) seria a presidente se pronunciar no início do próximo ano, reconhecendo os erros da gestão, assumindo a responsabilidade, afastando-se do PT, e propondo um governo de austeridade, composto por personalidades e políticos legitimados perante a sociedade. Tudo isso com o objetivo de fazer um governo de transição, com o compromisso de não interferir na sucessão presidencial de 2018. Isso seria bom para o País, a República e a sociedade. Mas não há desprendimento político para isso no Brasil.
JC - O senhor mencionou antes as práticas corruptas da elite política brasileira. Alguns analistas acreditam que o presidencialismo de coalizão, com a necessidade de formar maioria no Parlamento depois das eleições, é um formato democrático que facilita negociatas na formação da maioria parlamentar. Concorda?
Carrion - O presidencialismo de coalizão se revela no Brasil o "presidencialismo de corrupção". Basta observar as alianças partidárias sem princípios, salvo o objetivo de autopreservação e preservação do poder. Por exemplo, um partido como o PT, que tem por origem uma proposta generosa de transformação da realidade sem ruptura revolucionária, resgatando a chamada dívida social com as classes mais desfavorecidas... esse partido foi facilmente cooptado ao chegar no poder pelo que existe de mais atrasado na política brasileira. Esse partido que defendia um projeto libertário acabou por reproduzir os hábitos, os paradigmas e as práticas dos partidos mais conservadores.
JC - No presidencialismo de coalizão, algum partido conseguiria governar sem concessões?
Carrion - Sim. É possível romper o cerco do conservadorismo. A corrupção é incompatível com qualquer mudança significativa na vida política, social e econômica do Brasil. Não pode um partido ligado a um projeto de esquerda compactuar com a corrupção e com o que existe de mais atrasado na política. É em função dessas concessões, dessa falta de ideário republicano, embora eu reconheça os avanços sociais, que a gestão do PT no governo federal se contaminou com práticas retrógradas. E vou mais além: a gestão petista, ao longo dos 13 anos, possivelmente comprometeu o ideário libertário e de esquerda para o futuro. Teremos, no futuro próximo, uma hegemonia de um projeto liberal conservador, que é a nossa prática histórica. Num certo sentido, parece ter havido a falência do projeto de governo de uma pretensa esquerda.
JC - Acredita que o governo petista pode ter inviabilizado um projeto de esquerda pelos próximos anos?
Carrion - "Inviabilizado" seria uma expressão forte. O projeto de esquerda sai prejudicado e, em grande parte, desqualificado por práticas pretensamente de esquerda, que significaram concessões ao que há de mais atrasado na política brasileira. Uma liderança como o Lula, comparada a uma liderança como Getúlio Vargas, no palco da história, fica pequena. Afinal, a era getulista, inclusive com o Estado Novo, propiciou as maiores mudanças de paradigmas na nossa vida política. Foi quando transitamos de uma economia agroexportadora para uma economia propriamente industrial, quando houve a ampliação dos direitos sociais e a criação do Departamento Autônomo do Serviço Público, que procurava dar racionalidade à administração pública. A gestão do Lula, ao contrário da experiência getulista, não quebrou paradigmas. Pelo contrário, fortaleceu paradigmas de atraso. Aliou-se ao que existia de mais atrasado na política brasileira, tentando construir de maneira artificial uma maioria parlamentar. Artificial, porque não tinha nenhuma coesão política ideológica. Nesse contexto, a corrupção se transformou em um instrumento de governo para sustentar esse tipo de aliança frágil. Basta ver o caso do mensalão, quando o governo do PT comprou votos para ter maioria no Congresso.
JC - O que pensa dos outros pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados, como o da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)?
Carrion - A solicitação da OAB enumera inúmeras outras hipóteses de crime de responsabilidade, presumivelmente cometidos pela presidente. Tem elementos extraídos da delação premiada do senador Delcídio Amaral (ex-PT-MS), da própria tentativa de indicação do ex-presidente Lula para a chefia da Casa Civil. Então, mesmo que as pedaladas e os decretos orçamentários apreciados no atual processo de impeachment não configurem crime de responsabilidade, há outras hipóteses. Além disso, na deliberação que já houve na Câmara dos Deputados e na que irá ser tomada no Senado Federal, os parlamentares estão levando em conta as circunstâncias da política nacional e o sentimento da opinião pública. Esses são elementos que vão pesar afinal, pois fazem parte, em grande parte, da natureza do procedimento.

Perfil

Eduardo Kroeff Machado Carrion, 67 anos, é natural de Porto Alegre. Formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 1971, fez pós-graduação em Direito Constitucional na Universidade Paris I Pantheon-Sorbonne. Professor titular de Direito Constitucional da Ufrgs, dirigiu a faculdade no ano do centenário da instituição. Aposentado da universidade federal, hoje leciona na Fundação Escola Superior do Ministério Público. Paralelamente, atua como pesquisador do CNPq na área de Direito Constitucional, consultor ad hoc de diversas agências de fomento à pesquisa e consultor jurídico. Carrion é autor de inúmeros artigos científicos e de uma dezena de livros, entre eles Apontamentos de Direito Constitucional (Livraria do Advogado, 1997). Em 2009, foi agraciado com a mais alta distinção da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Comenda Oswaldo Vergara.