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Entrevista Especial

- Publicada em 03 de Janeiro de 2016 às 22:01

Fórum Social Mundial transcende à oposição a Davos, diz Whitaker

 ABERTURA DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL(FSM) 10 ANOS DEPOIS GRANDE PORTO ALEGRE E MESA DE ABERTURA COM O BALANÇO DE 10 ANOS DO FSM   FRANCISCO WHITAKER/CBJP

ABERTURA DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL(FSM) 10 ANOS DEPOIS GRANDE PORTO ALEGRE E MESA DE ABERTURA COM O BALANÇO DE 10 ANOS DO FSM FRANCISCO WHITAKER/CBJP


CLAUDIO FACHEL/ARQUIVO/JC
O Fórum Social Mundial (FSM), realizado pela primeira vez em Porto Alegre no ano de 2001, completa seus 15 anos e aporta, pela primeira vez, no hemisfério Norte, sediado em Québec no mês de agosto. Também haverá uma edição comemorativa na Capital gaúcha, de 19 a 23 de janeiro.
O Fórum Social Mundial (FSM), realizado pela primeira vez em Porto Alegre no ano de 2001, completa seus 15 anos e aporta, pela primeira vez, no hemisfério Norte, sediado em Québec no mês de agosto. Também haverá uma edição comemorativa na Capital gaúcha, de 19 a 23 de janeiro.
Um dos fundadores do evento, o arquiteto Francisco Whitaker, acredita que o fórum transcendeu a mera contraposição ao Fórum Econômico de Davos, na Suíça, também realizado em janeiro, e o próprio debate entre políticas de esquerda e direita. "A estratégia de tomar o poder tem dado demonstrações de que não funciona. Em quantos lugares os governantes entram e depois decepcionam? A começar pelo Brasil", questiona.
Portanto, para Whitaker, apesar de ainda valer a máxima de que "um outro mundo é possível" mote do FSM desde a sua primeira edição , o propósito do evento é mais um espaço de reconhecimento mútuo do que um movimento novo. "A descoberta foi que podemos trabalhar juntos e, juntos, somos mais fortes."
A premissa vale justamente na realização do FSM no Canadá. "O que se descobriu é que os problemas são exatamente os mesmos. O que se passa atualmente com a pobreza, o clima, as armas, acontece tanto nos países do Norte quanto do Sul. Onde se pode discutir o problema das imigrações? É no Norte", defende Whitaker.
Jornal do Comércio - Que balanço o senhor faz destes 15 anos de existência do Fórum Social Mundial?
Francisco Whitaker - O fórum, em primeiro lugar, foi uma bruta de uma inovação, no sentido da sua metodologia. Ele tem uma outra proposta, pois não se organizava se cima para baixo. Então, por exemplo, ele não tem um tema. O tema é "um outro mundo é possível". E em torno disso, convidamos pessoas e, principalmente, organizações que estão atuando para mudar o mundo, para tratar dos temas que elas julgassem importantes. Inclusive, até hoje, muita gente não entende. Nós mesmos fomos descobrindo com o tempo qual era a especificidade de nossa proposta, e era essa de fazer um fórum que não é, nem pretendia ser, uma organização ou um movimento novo. Pretendia ser um espaço. No fundo, estávamos abrindo um espaço para as pessoas se encontrarem. Muita gente que vinha para o fórum achava que era a grande oportunidade para se criar um novo movimento. Inclusive trotskistas, que criaram as quatro internacionais, diziam que estávamos criando a quinta. Mas nós, que estávamos nessa organização, achávamos que por aí não se chegaria a nada. Principalmente pelo fórum ser um espaço no qual as pessoas poderiam se reconhecer mutuamente. O fórum foi feito em um momento em que Davos estava em imensa expansão, como a única alternativa para dizer o que fazer no mundo. E nós dizíamos que não, que existem alternativas diferentes e gente que já mudava as coisas. Era muito interessante, ao longo do processo, quando alguém vinha e dizia "escuta aqui, vocês não estão tratando do tema mulheres". Se você não veio propor, nunca será tratado. Só é tratado aquilo que as pessoas trazem. Isso mostra o processo do fórum ao longo dos 15 anos.
JC - Era uma horizontalidade que as pessoas não conheciam ainda.
Whitaker - E não conhecem até hoje. Até hoje dou entrevistas e o pessoal pergunta "quais foram os temas que vocês escolheram?". Nós não escolhemos nada. Na verdade, é a soma dos temas que são trazidos que conduz o conteúdo. Isso fez com que, ao longo dos anos, novos temas emergissem de forma muito líquida. O fórum de 2009, por exemplo, que foi em Belém, foi o centro de uma problemática ecológica. Lá na Tunísia, foi muito em torno da democracia e da dignidade. Era um lugar que, em si mesmo, era o centro da mudança e derrubada de ditaduras na construção de uma democracia que respeitasse as pessoas. Isso surgiu por efeito local. Ou seja, era evidente que, no Norte da África, estavam se passando coisas muito importantes. A Primavera Árabe estava em plena eclosão.
JC - Esses desdobramentos são frutos do fórum? O que os movimentos como Ocuppy ou a própria Primavera Árabe devem ao FSM?
Whitaker - Não só a este fórum. As eleições no Brasil também foram ganhas pela dinâmica criada pelo fórum. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve o apoio muito grande das pessoas que participavam desse processo. A descoberta foi a seguinte, podemos trabalhar juntos e, juntos, somos mais fortes. O fórum cria essa oportunidade e a ocasião. Eu gosto muito da ideia de "reconhecimento mútuo". Se há uma coisa que enfraquece a chamada esquerda é a divisão dela, a lógica da conquista da hegemonia. O que eles (Occupy e Primavera Árabe) pegaram do fórum? A horizontalidade, que é uma das propostas fundamentais. Ou seja, nenhuma atividade ganha caráter de atividade central, seja ela feita por uma enorme organização mundial ou por um grupinho que está trabalhando uma temática completamente nova. Todos têm o mesmo tempo e espaço. Às vezes, o mais importante é uma coisa totalmente nova, como a temática dos bens comuns, que identifica que o que é de interesse geral não pode ser controlado por uma pequena parcela da sociedade.
JC - O primeiro fórum era um contraponto a Davos. Ao que o Fórum Social Mundial se contrapõe agora?
Whitaker - Cada vez mais, o sistema neoliberal está forte. A lógica econômica do sistema capitalista está contaminando o mundo todo, principalmente após a queda do muro de Berlim, que encerrou a experiência socialista. O consumismo, por exemplo, é o mecanismo fundamental do sistema, que depende totalmente de que a gente consuma.
JC - Mas isso está sendo bastante contestado atualmente.
Whitaker - Esse é o nosso trabalho. Uma das coisas mais tristes que aconteceram no Brasil foi que o Bolsa Família tirou muita gente da miséria, mas os colocou como consumistas. No fundo, isso tinha que ser acompanhado por uma revolução cultural. Agora, não precisa que o fórum faça isso. A humanidade vai tomando uma tamanha consciência, que surge uma reação a isso. Temos que mudar nosso sistema de consumo. Se o mundo inteiro, ou mesmo só a China, entrar no modelo norte-americano de consumo, a Terra se transforma em um grande latão de lixo, e se acabam com os recursos da humanidade. Isso tudo foi a consciência que se tomou em Paris, na COP-21. A novidade dela é que temos de mudar nosso sistema, nosso modelo de produção, pois, se isso não acontecer, a mudança climática destruirá um monte de lugares e criará um monte de problemas. Mas, no fundo, às vezes, as pessoas ficam com nostalgia. "Poxa, nós éramos a antítese da Davos e agora não somos nada." Mas o Fórum Social Mundial tem sido um processo cavalar de expansão dessas ideias, da revisão de tudo.
JC - O FSM mudou muito para além do debate sobre esquerda e direita. Além da questão ambiental, que outras variantes entraram?
Whitaker - Acho que a variante da democracia, também. A ideia de democracia somente representativa, com a limitação que ela tem. A questão dos partidos. No mundo inteiro, partidos estão em uma baixa desgraçada. A credibilidade do sistema político é zero, atualmente. Isso está sendo levantado no fórum. Discutiremos isso em um seminário que será feito em Marrocos, independentemente do FSM. Que estratégias temos que pensar para realmente podermos mudar esse mundo? Até agora, estamos perdendo, mas alguns passos estão sendo dados. A COP-21 é um deles, com todas as limitações. A questão das migrações é outro tema que começou a se levantar nos três fóruns que houve na África. A nostalgia de se ter um fórum que seja a cabeça de um movimento novo, isso acabou. Inclusive a estratégia de tomar o poder tem dado demonstrações de que não funciona. Em quantos lugares os governantes entram e depois decepcionam? A começar pelo Brasil. O que aconteceu nos países latino-americanos? O Rafael Correa (Equador), o (Hugo) Chávez (Venezuela)? O próprio Evo Morales (Bolívia) disse que é um filho do fórum. E agora ele está sendo obrigado a fazer coisas para que o sistema não engula ele de uma vez, e fazendo o quê? Mantendo o sistema, sendo levado a abrir usinas nucleares na Bolívia. Na França, o Partido Socialista é eleito para mudar o sistema e passa a ser o governante típico do outro lado.
JC - Pela primeira vez, o FSM será realizado em um país considerado desenvolvido, no Canadá. Como essa mudança marca o evento?
Whitaker - Os primeiros fóruns, que aconteceram em Porto Alegre, eram para dizer que essa é uma luta do terceiro mundo, do mundo subdesenvolvido. O que se descobriu, ao longo desses anos todos, é que os problemas são exatamente os mesmos e são totalmente interligados e dependentes. Ou seja, o que se passa atualmente com a pobreza, o clima, as armas, acontece tanto nos países do Norte quanto do Sul. É preciso que um monte de gente de lá (Norte) descubra a realidade que se está vivendo. E é maravilhoso que o fórum vá para o Canadá, já que Occupy foi um movimento de jovens que aconteceu lá também. Então foram dois coelhos com uma cajadada só. Primeiro, mudamos para o Norte com a problemática de imigração. Segundo, o fórum está sendo tocado não por grandes organizações internacionais, mas por jovens que organizaram os Ocuppy do Canadá. Havia gente tanto com grandes argumentos para dizer que não podia ir para lá, quanto havia para dizer que pode. Mas o problema é o mesmo. Onde se pode discutir o problema das imigrações? É no Norte. Onde as pessoas que migram não são aceitas, são rejeitadas e discriminadas? A Europa e outros países se tornam fortalezas.
JC - A questão do extremismo religioso também tem ligação com o tema da migração e permeou o último FSM, na Tunísia, que foi precedido de um atentado a bomba. Como isso será abordado no FSM em 2016?
Whitaker - Uma semana antes do fórum, fizeram esse atentado. Fizeram isso para arrebentar a economia do único país na região que conseguia manter a democracia. E eles estavam em um processo bonito. Isso poderia ter gerado também a suspensão do fórum, mas as organizações que participaram da preparação do evento acharam que tinham que realizá-lo assim mesmo. Foi uma decisão unânime, e foi um dos fóruns mais bonitos que já tivemos. E durante aquele fórum, houve um monte de oficinas discutindo o Islã político, que não é só religião, é também partido. O número de muçulmanos, no mundo todo, que estão tentando diferenciar a sua religião disso (extremismo) é enorme. Esse tipo de assunto vai ser discutido no Canadá também. Fica cada vez mais claro que a estratégia de tomar o poder pelas armas já passou. Quem mais ganha com as guerras e revoluções são os fabricantes de armas, é um sistema em que não há condições de sair. Países como a Suécia, que todos citam como um país maravilhoso, é um dos grandes fabricantes de armas do mundo.
JC - O Brasil pode voltar a abrigar o fórum principal?
Whitaker - É melhor que o Fórum Social Mundial seja feito em outro país. Foi um processo que todos preferimos não fazer mais no Brasil, pois sentimos que já era um processo mundial. Nos fóruns, 80% dos participantes são pessoas da região onde ele se realiza. Só 20% vêm de fora. Então, a percepção de realizar o FSM em países como Tunísia e Índia era para criar essa dinâmica. Entretanto, a partir do primeiro fórum, muita gente percebeu a riqueza da dinâmica e foi fazer fóruns regionais, nacionais, locais. Em 2013, foram realizados 40 fóruns de tipos diferentes. Estou participando atualmente da organização de um fórum temático sobre energia nuclear, que vai acontecer no Japão no ano que vem.
JC - É um lugar onde essa realidade está pungente.
Whitaker - As próprias pessoas do lugar é que propõem. Os japoneses se deram conta de que estavam fragmentados e querem reencontrar convergências entre eles. Em todos esses lugares, como Japão, Chernobyl, ou na França, é preciso criar uma rede mundial de gente que luta contra a questão nuclear, e em todos esses lugares os movimentos são divididos.

Perfil

Francisco Whitaker Ferreira, conhecido também como Chico Whitaker, nasceu em São Paulo em 1931. É formado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo. Durante a ditadura, exilou-se por 15 anos no Chile e na França. No Brasil, foi assessor da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, trabalhando com Dom Paulo Evaristo Arns. Foi membro do Plenário Pró Participação Popular na Constituinte, cuja ação levou às Emendas Populares à Constituição de 1988. Foi vereador por dois mandatos em São Paulo, pelo PT. É membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz e do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral. Foi cofundador, em 2001, do Fórum Social Mundial, e atualmente é membro do seu Conselho Internacional. Recebeu em 2006, na Suécia, o Premio Nobel Alternativo (Right Livelihood Award). Em maio de 2012, foi incluído na Lista Anti-Forbes, das "100 pessoas que mais enriquecem o mundo". É membro da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares.