Ex-Google e Microsoft, nova secretária de Inclusão Digital do RS quer trazer experiência do privado para o governo

Lisiane Lemos une inclusão digital a políticas de equidade em pasta inédita do Palácio Piratini

Por Diego Nuñez

Lisiane Lemos - secretária estadual de Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade - entrevista especial -
À frente de uma pasta inédita no Palácio Piratini, a nova secretária de Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade, Lisiane Lemos, quer implementar seus anos de experiência no setor privado para o ambiente interno do governo do Estado.
Ex-Google e Microsoft, ela quer aliar sua expertise em inovação e tecnologia ao seu ativismo nas causas raciais e de gênero em uma secretaria, apesar de enxuta, transversal.
Hoje, aos 33 anos, a nova secretária já foi definida como uma das jovens mais promissoras do País pela revista Forbes. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Lisiane disse que tem como prioridade tornar o Rio Grande do Sul um Estado maduro digitalmente.
Jornal do Comércio - Quais são as funções dessa nova pasta?
Lisiane Lemos - Quando conversei com o governador Eduardo (Leite, PSDB), uma das coisas que me conquistou foi justamente poder criar algo novo. Pensei: tenho autonomia para criar uma secretaria. Quero muito que ela seja focada nessa questão do ambiente digital, de tornar o Rio Grande do Sul um estado atrativo e de trazer esse meu conhecimento técnico para políticas de equidade. Desde o nome, pensamos juntos na construção. Fiquei focada em trazer parte do meu time. As secretarias extraordinárias são pequenas por natureza, não têm mais do que cinco servidores. Eu quis muito que meu time fosse um retrato das coisas que eu acredito, então ele é múltiplo em geração, em gênero, temos pessoas do Rio Grande do Sul, de fora, ele é multiétnico e eu ainda tenho duas cadeiras abertas, que vão ser ocupadas por servidores.
JC - Quais serão as prioridades dessa equipe?
Lisiane - Conseguimos fazer um mix bem interessante de maturidade digital. Vamos dividir a secretaria em quatro grandes pilares. O primeiro é de educação digital. Pensar em como modernizar para além das fronteiras das nossas escolas estaduais. Novas formas de educar. O segundo pilar eu chamei de “experiência do cidadão”, que é como é que eu vou modernizar ou como é que eu vou trazer políticas de equidade quando o cidadão tem uma interface com a gente. O terceiro pilar é a transformação digital do pequeno empreendedor. Por último, que é uma demanda nova que fiquei muito envolvida e não era do projeto original, que é uma requalificação do trabalho safrista. Muito como um efeito pós Bento Gonçalves. Somos um estado que se baseia em trabalho safrista.
JC - Como pode auxiliar nessa questão?
Lisiane -Temos empresas grandes, pequenos produtores, o trabalhador e mesmo celetistas. Como é que o qualifico o ecossistema? E aí a grande marca da secretaria, ela é transversal. Eu nunca ando sozinha. Se vamos fazer um GT de trabalho escravo, são cinco secretarias. Se vamos falar de South Summit, tem mais sete secretarias. Então, é um trabalho de orquestração, de construir uma estratégia e garantir o ritmo que as coisas vão ser efetuadas.
JC - A senhora participou desde a concepção da pasta?
Lisiane - Se eu não participasse desde o início, eu não teria vindo. Ele (Leite) me deixou muito livre quando a gente começou a conversar. Ele dizia: “Olha, o que que tu sugeres? Qual é o melhor caminho e como vão ser essas prioridades?”.
JC - Como foi esse primeiro contato? Já conhecia o governador por ser de Pelotas também?
Lisiane - Uma curiosidade interessante é que fui estagiária do Eduardo como prefeito, mas a gente nunca esteve no mesmo recinto. Voltei para Pelotas na pandemia, em março de 2020. Estava morando em São Paulo. Quando recebi a mensagem do governador, achei que seria para uma pasta de diversidade ou de inclusão racial, e que era algo que eu já tinha pensado em recusar e seguir minha carreira. Mas quando ele falou em inclusão digital, que é algo que eu sou extremamente apaixonada, e a gente falava de política de equidade, que é muito mais que diversidade e inclusão, não teve como evitar. Vamos transformar tudo. E tem sido uma aventura intensa, nunca trabalhei tanto na minha vida.
JC - A senhora construiu carreira no setor privado e inclusive foi indicada pela revista Forbes como uma das promissoras jovens brasileiras.
Lisiane - Eu me formei em Pelotas. Sou, teoricamente, advogada. Tive que suspender minha ordem para vir para cá. Minha carreira acadêmica foi focada em Educação e Direitos Humanos. Quando a gente falou desses episódios das vinícolas, eu era a única pessoa que tem a formação acadêmica, técnica, que entende do mundo corporativo e gestão de crise. E sempre fui muito focada em políticas de igualdade de gênero e igualdade racial. Sempre fui uma defensora de política de cotas, tanto que, no Google, a minha grande entrega foi ter vagas afirmativas para profissionais negros. Depois da faculdade, fui realizar o sonho de morar no continente africano.
JC - Em qual país?
Lisiane - Moçambique. A gente constrói uma narrativa muito superficial, principalmente no Rio Grande do Sul, que ainda tem um desafio de reconhecer essa identidade negra, porque a gente não tem conexão com o continente Africano. Foi uma descoberta incrível de conexão com a minha ancestralidade, de ter novos dilemas para além da raça. Eu me descobri um ativista pela igualdade de gênero lá. Quando fui para Moçambique, o primeiro e principal erro foi não escutar as pessoas quando eu cheguei. Querer implementar coisas. E que foi um erro que aqui no governo eu não cometi. Primeiro a gente saiu escutando todo mundo, diagnosticando e depois decidimos o que vamos fazer. Quando voltei ao Brasil, comecei a me candidatar para vagas de trainee e foi assim que eu parei na Microsoft. Parece que a minha vida me preparou pra isso, porque eu atendi Banrisul, Procergs, o governo do Estado. Fiquei na Microsoft por cinco anos e seis meses. Até que eu recebi uma ligação para ir para o Google para ser gerente de aquisição de novos negócios e utilizar esse conhecimento que eu tinha de estruturas de indústrias muito pesadas para que eles fossem trabalhar com marketing digital. Depois de 10 anos em vendas, com uma cota gigantesca em dólar, me tornei gerente Latino América, onde a gente tinha seis escritórios, 350 gerentes, quatro presidentes, e durante um ano ajudar a companhia a se relacionar com minorias: pessoas com deficiência, mulheres, latinos, povos indígenas…
JC - Qual é a maior dificuldade nessa área?
Lisiane - A maior dificuldade das minorias é fazer com que as pessoas se apliquem para trabalhar. Pessoas como eu, nem nos meus sonhos mais ousados pensei em trabalhar na Microsoft no Google. Porque a gente não tem coragem nem de se aplicar. A gente não se enxerga lá dentro. Mostra uma foto dessas pessoas, elas não parecem comigo.
JC - Na sua posse, a senhora falou sobre trazer a experiência do privado para o governo. O que exatamente seria isso?
Lisiane - Tem vários fatos, dos mais simples aos mais complexos. Os mais simples: minhas reuniões são de meia hora, começa no horário e termina no horário. O povo fica chocado. Comigo não tem atraso. As pessoas realmente não são nada pontuais. Acho que a questão de organização de pauta é meio chocante. E acho que tem uma camada muito de conexão fora do Rio Grande do Sul. Construí minha carreira em São Paulo. Então eu conheço muito mais gente lá do que aqui. Converso muito com o governador sobre como que posso ser um mecanismo de mostrar o Rio Grande do Sul para fora e atrair as pessoas para cá. O South Summit tem sido o meu laboratório de curto prazo de como é que a gente conta essa história, tornando o evento atraente, colocando ele nesse calendário de eventos de inovação no Brasil.
JC - Como contar essa história?
Lisiane - Eu fui responsável por ações sociais no South Summit. Tivemos uma ação conjunta com a prefeitura (de Porto Alegre) e o governo do Estado para 3 mil alunos da rede pública no Araújo Vianna, do que estou mais orgulhosa. Temos que contar essa narrativa. O gaúcho é muito centrado nele mesmo e nos seus meios de comunicação. Como sou novata no setor público, não sei como funciona. Então, posso perguntar, questionar. Por que não tem proporcionalidade de gênero em tal evento? De raça? Por que o fulano não foi convidado? O governador sempre me deu total liberdade para questionar as coisas. Eu estou aqui para incomodar.
JC - Passado o South Summit, como a inovação pode ir além do evento? Como fazer esse ambiente de inovação ser refletido na ponta?
Lisiane - É o maior trabalho que tenho feito, principalmente junto com a secretária Simone Stülp (Inovação, Ciência e Tecnologia). Primeiro, separar inovação de tecnologia. Inovar é fazer as coisas de forma diferente. Se eu penso no trabalho safrista de uma forma diferente, eu estou inovando. E aí fortalecer esses ecossistemas, os parques tecnológicos, as aceleradoras, as incubadoras. Dessa forma descentralizada, conseguir ser uma alavanca para as nossas startups ou para os nossos estudantes irem para fora aprender e trazer para cá. O maior desafio da inovação é a retenção de talentos. E isso é muito pessoal porque eu fui um talento que foi embora. E eu achava que não ia voltar. Então como é que eu escuto essas pessoas que tornam o Rio Grande do Sul um ambiente atrativo para as pessoas trabalharem? A minha pergunta de um milhão de dólares tem sido como eu faço isso ser um plano estruturado.
JC - Como a senhora recebeu a notícia desses casos de trabalhos análogos à escravidão na Serra, qual foi a sua atuação na gestão de crise e como avalia a resposta do governo?
Lisiane - Fui uma das primeiras pessoas que o secretário Mateus Wesp (Justiça e Direitos Humanos) acionou. Como envolvia o setor privado, uma gestão de crise, pedi ao governador para ser diretamente envolvida porque achava que poderia contribuir com uma visão um pouco mais holística. Porque a Secretaria de Direitos Humanos vai olhar por uma ótica de defesa aos direitos humanos, a Secretaria do Trabalho vai olhar sob uma ótica de ofensa ao trabalhador de trabalho análogo ao escravo. Já trabalhei com todos esses atores, então consigo, de certa forma, provocar um pensamento que seja focado na ação. Fui a Bento Gonçalves duas ou três vezes. Fizemos uma reunião conjunta com a sociedade civil, os prefeitos e as próprias vinícolas para fazer uma oitiva para ampliar o conhecimento das ações que estavam sendo tomadas. Eu desafiei a minha equipe: como é que eu desenvolvo um ciclo padrão? Porque a gente não tem só safra da uva. Daqui a pouco vem a maçã, daqui a pouco tem pêssego. Existe uma necessidade de mão de obra temporária. Então como é que garanto que o agricultor tenha informação correta, como garanto que o trabalhador saiba dos seus direitos, como garanto que o poder público está fiscalizando e como o Estado está apoiando. Meu papel hoje é conseguir enxergar de cima.
JC - Antes desses casos, o trabalho análogo à escravidão já aumentava no Brasil. Segundo o Ministério Público do Trabalho, entre 2021 e 2022, o aumento foi de 39%. Como ativista, a que atribui esse aumento?
Lisiane - Ou o que está aumentando é o nosso conhecimento técnico e a nossa massa crítica para entender as coisas. Quando falamos de trabalho análogo à escravidão, falamos de horas exaustivas, de condições ruins. Com o episódio de Bento, a população gaúcha começou a entender o que é trabalho análogo à escravidão e o que não é. Quando estou mais informada, tenho um ambiente de segurança para denunciar. Olho com criticidade, sim, o aumento, mas acho que hoje o meu trabalho é para que todo mundo saiba o que é e se sinta à vontade para denuncia. Estamos num momento muito desafiador sob a ótica de direitos humanos. Dentro de um momento de crise econômica, as pessoas tendem a ser um pouco mais individualistas.
JC - Como contribuir para a mudança cultural para que casos como esse não se repitam?
Lisiane - O primeiro é entender que aquilo está acontecendo e é o mais doloroso. Estamos nesse momento de trazer a consciência sobre o que é o trabalho análogo a escravidão, que isso é uma situação de racismo, que pode ter um componente de xenofobia. Depois disso, indo nessa visão de gestão da mudança, tem que ter o desejo de mudança.
JC - Se refizéssemos essa entrevista ao final do governo, qual manchete gostaria de ver?
Lisiane - Que o nosso Estado se mantenha o mais inovador. Quando a gente fala de governo digital, hoje temos um dos sistemas mais modernos. Acho que o mais difícil é sempre manter. Seria “Rio Grande do Sul bate pelo quarto ano consecutivo o ranking de Estado mais inovador do País”.

PERFIL

Lisiane Lemos tem 33 anos e é natural de Pelotas (RS). É advogada, palestrante, professora, criadora de conteúdo e especialista em tecnologia. Trabalhou na Microsoft e no Google antes de passar a integrar o governo do Estado cmo secretária de Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade. Foi integrante do conselho consultivo do Kunumi AI e integra o conselho emérito do Capitalismo Consciente Brasil e o conselho consultivo da Universidade São Judas. Foi considerada uma das jovens mais influentes do país abaixo dos 30 anos, pela Forbes Under 30, em 2017. Em 2018, venceu na categoria empreendedorismo o Most Influential People of African Descent (MIPAD), da Organização das Nações Unidas (ONU), e, em 2022, tornou-se LinkedIn Top Voices. Foi colunista convidada da MIT Tech Review, Meteora Podcast e Fast Company Brasil. Atuou como colíder do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil além de ser e cofundadora do Conselheira 101, Rede de Profissionais Negros e Blacks na Microsoft Brasil e também integrante do Instituto Pactuá.