Políticos não devem se perpetuar nos mandatos, diz Gomes

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Em meio à discussão sobre a reforma política, trazida novamente à tona a partir dos protestos de junho de 2013, a sociedade civil tem dado algumas demonstrações de mobilização em torno do tema. Iniciativas de pressão popular, como a realização do Plebiscito Constituinte, obtiveram mais de 8 milhões de assinaturas pela formação de uma assembleia exclusiva para discutir novas regras para o sistema político brasileiro.

Outro exemplo de mobilização vem do jurista Luiz Flávio Gomes, advogado criminalista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Ele lançou uma  petição que pede o fim da reeleição e também do que ele chama de “político profissional”. A proposta, que atualmente conta com cerca de 36 mil assinaturas,  estabelece o exercício de apenas um mandato para cargos eletivos do poder Executivo e, no máximo, dois mandatos consecutivos para o Legislativo.

 “Isso é necessário para que o político não se perpetue nos cargos eletivos, beneficiando-se pessoalmente com práticas como o fisiologismo, o clientelismo, e consequentemente ficando em contato com a máquina de corrupção existente no Brasil”, sustenta o jurista.

Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Gomes também marca sua posição contra o financiamento privado de campanhas políticas, que, para ele, faz com que políticos eleitos tenham um compromisso de “retornar o investimento” de empresas que doam quantias vultosas. 

Para o jurista, a solução passaria pela regulamentação do financiamento particular das campanhas. “Teria de haver um teto para a doação, de no máximo R$ 1 mil”, defende. Gomes veio a Porto Alegre para participar de um evento realizado na Escola Superior de Magistratura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris). 

Jornal do Comércio - Por que o senhor é contra o que chama de político profissional?

Luiz Flávio Gomes - Isso é necessário para que o político não se perpetue nos cargos eletivos, beneficiando-se pessoalmente com práticas como o fisiologismo, o clientelismo, e consequentemente ficando em contato com a máquina de corrupção que se formou no Brasil. Vivemos num país que, indiscutivelmente, tem uma democracia corrupta. Queremos uma mudança também em relação ao financiamento das campanhas, em que a empresa que gasta muito com uma candidatura, depois, tem todo o retorno. O que algumas grandes empresas fazem, não todas, mas especificamente aquelas ligadas ao jogo político, é um investimento em relação ao candidato e, depois, elas cobram o compromisso assumido e querem o retorno desse investimento. Essa é uma forma de corrupção que acontece de forma muito intensa no País. 

JC - O que é a petição pelo fim do político profissional?

Gomes - Ela é uma iniciativa popular, que já angariou cerca de 36,3 mil assinaturas, e que visa à criação de uma emenda constitucional que seja encampada pelos parlamentares. É algo que não é difícil de acontecer. O que se exige é existência de apenas um mandato, sem reeleição, para cargos do Executivo, e no máximo dois mandatos consecutivos para cargos do Poder Legislativo. 

JC - Como está acontecendo a mobilização para a coleta de assinaturas?

Gomes - A partir da própria mobilização de cidadãos simpáticos à causa. Atualmente, mais de 7 mil pessoas estão ajudando a coletar assinaturas para chegarmos à meta de um milhão, e termos um volume vultoso para levar ao Congresso. 

JC - A petição também exige que o político exerça seu mandato concomitantemente ao exercício de sua profissão original. De que forma isso aconteceria?

Gomes - Para que isso ocorra, é preciso que se desenvolvam bastante a tecnologia e a internet, para que o parlamentar possa acompanhar suas matérias por ali e, inclusive, realize votações, com voto seguro e certificado. De qualquer maneira, é importante que ele volte à profissão dele assim que termine o mandato, para que ele não fique “irreciclável”. Quanto mais anos ele passa afastado dela, maior a possibilidade de que o que aconteça é ele se “profissionalizar” como político, e maior a chance, no caso de um político corrupto, é de que ele fique ainda mais envolvido com a corrupção. Não é uma regra absoluta, há exceções, mas em geral é o que acontece.

JC - O sociólogo Max Weber diferencia os políticos que vivem da política dos que vivem para ela. O senhor acredita que movimentos sociais como os do passe livre ou de minorias, como afrodescendentes e indígenas, entre outros, fazem a política como vocação? 

Gomes - Eu acredito que sim, e acho isso muito importante até porque, historicamente, somente quando esses movimentos fizeram pressões e protestos é que conseguiram consolidar os direitos pelos quais lutam. 

JC - Por que houve violência contra esses grupos nas jornadas de junho? 

Gomes - Em um primeiro momento, a repressão foi um erro muito grande dos governos, que não souberam aceitar as manifestações democráticas. Aliás, os movimentos cresceram justamente em virtude da repressão da polícia. Então, naquele instante, a polícia se excedeu e se equivocou. Aquilo foi um desastre, pois houve o desrespeito a todas as regulamentações do direito internacional, que é muito claro no que é permitido ou não. A obrigação da polícia é proteger e tutelar, e não impedir e proibir. Mas, quando houve a entrada dos black blocs, a coisa partiu para a violência, e a polícia evidentemente não pode permitir isso. 

JC - O senhor acredita que essa conduta das autoridades tende a ser revista, já que houve uma reação da sociedade à violência institucional?

Gomes - Acredito que tende a mudar, porque agora os políticos perceberam que o povo tem uma capacidade incrível de reunião. Aqueles dois milhões de pessoas do dia 20 de junho de 2013 assustaram todos os políticos. Portanto, sabem agora que, se a população quiser, ela se mobiliza e é capaz de pressionar. 

JC - O que acha de pontos discutidos pela sociedade para uma possível reforma política, como a cláusula de barreira, o voto distrital e o voto em lista?

Gomes - Eu sou favorável, por exemplo, ao fim das coligações, à cláusula de barreira com, no mínimo, 5% de votos para o partido para que eleja parlamentares no Congresso. Também defendo o fim do financiamento empresarial das campanhas e o fim do suplente de senador, que é uma coisa que só existe no Brasil. Várias coisas têm que mudar, mas agora, paralelamente ao que se deve cortar, há pontos que precisamos construir, como o recall, que é a possibilidade de “deseleger” um político do cargo eletivo antes do final de seu mandato, no caso de se tratar de um elemento desonesto ou incompetente.

JC - Em relação ao financiamento de campanhas, em sua opinião, que sistema seria o mais adequado para coibir esse compromisso de políticos eleitos com doadores empresariais?

Gomes - O financiamento público de campanha como é hoje não está mal. Com o fundo de participação de cada partido, está perfeito. Pode-se regulamentar o financiamento particular, por pessoa física, limitando um teto de, no máximo, R$ 1 mil. Essa doação seria feita no banco e identificada. Acho isso válido, porque se o eleitor gosta de determinado candidato, pode doar R$ 500,00, por exemplo. O Fundo Partidário só cobre algumas despesas.

JC - No caso de mecanismos já utilizados pela nossa democracia para consultar a população, como o plebiscito e o referendo, o que o senhor pensa a respeito? Eles seriam indicados para a reforma política?

Gomes - O melhor é que a reforma política seja feita pelo Congresso Nacional, por lei ou por emenda constitucional, quando houver necessidade dessa alternativa, mas é bom que o próprio político a faça. Agora, um ponto ou outro que fique controvertido, por exemplo, em relação à reeleição no Legislativo pode ser perguntado ao povo em um plebiscito. No caso do referendo, sou contra, porque existe um risco enorme de o político aprovar um determinado texto e colocá-lo em consulta para a população. Porque se as pessoas votam contra a proposta, ela é rejeitada integralmente. Não é como o veto presidencial, que tem a possibilidade de bloquear apenas alguns pontos em relação aos quais não há concordância, podendo-se deixar passar o restante. 

JC - Ampliar a participação popular não seria também uma forma de estimular a vigilância da população em relação a seus governantes? Como se pode ampliá-la?

Gomes - Acredito que a democracia direta digital seria muito importante, já que seria um fórum cidadão onde todos nós, devidamente inscritos e certificados, poderíamos responsavelmente discutir projetos, atos e contratos firmados pelo poder público. Temos exemplos disso na Argentina, onde a população já pode vigiar projetos do governo. 

JC - A lei anticorrupção empresarial entrou em vigor neste ano. O senhor acredita que é dada a correta atenção a empresas que participam de atos ilícitos?

Gomes - Ela trouxe bons mecanismos, embora não tenha sido regulamentada, o que faz com que sua efetividade ainda não tenha se concretizado. Ela traz bons mecanismos de controle. Nas democracias corruptas, como o Brasil, a palavra “controle” é muito relevante, porém isso não pode ser exercido por um único órgão, pois muitos precisam vigiar a conduta das empresas. Então, a Polícia Federal, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), o Ministério Público, e inclusive a mídia, todos precisam exercer esse controle.

JC - O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), ligado ao Congresso Nacional, divulgou o levantamento de que o perfil dos parlamentares eleitos pela população é o mais conservador desde 1964. O apoio da sociedade a essas correntes políticas representa um risco à democracia?

Gomes - Sempre existem riscos à democracia, ela nunca está plenamente garantida em nenhum país. No entanto, não vemos clima no Brasil para grandes retrocessos, como um novo golpe militar. Sempre existiu uma minoria ultraconservadora, mas também há uma minoria no País que faz o uso de drogas, assim como de 3% a 5% da população mundial o fazem. Também existe uma fatia de gente que gosta de regimes ditatoriais, mas no Brasil isso é uma pequena parcela atualmente. As instituições, no País, não são tão sólidas, mas são consolidadas o suficiente para não aceitarem mais isso. 

JC - A propósito do tema das drogas, o senhor é conhecido por criticar alguns projetos em tramitação que propõem a intensificação da repressão a usuários e portadores de pequenas quantidades. Por quê?

Gomes - Eu não acredito que seja pelo endurecimento das leis que se resolva a questão gravíssima do uso de drogas. É mais uma questão de educação e prevenção. De 1989 até 2004, 34% dos brasileiros deixaram de fumar cigarro sem nenhuma proibição, apenas com a conscientização da população. O que nós temos que seguir é um caminho mais civilizado. Esse viés repressivo, de aumentar penas, não resolve nada, porque os legisladores brasileiros já fizeram 157 reformas penais de 1940 até a primeira quinzena de novembro e, mesmo com isso, não diminuiu a ocorrência de nenhum crime no Brasil. Desde 1970, as políticas repressivas contra entorpecentes, empregadas em todo o mundo, foram fracassadas, pois não diminuiu nem o número de consumidores nem a oferta de drogas.  

Perfil

Luiz Flávio Gomes é paulista da cidade de Sud Menucci, onde nasceu em 1958. É diretor-presidente do Instituto Avante Brasil, doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidad Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor honorário da Faculdade de Direito da Universidad Católica de Santa María, em Arequipa, no Peru, tendo também lecionado em cursos de pós-graduação na Facultad de Derecho de la Universidad Austral, de Buenos Aires. É também membro e consultor da delegação brasileira no décimo período de sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, realizado em Viena. Gomes também atuou como promotor de Justiça, juiz de Direito e advogado. Atualmente, é comentarista do Jornal da Cultura, veiculado pela TV Cultura de São Paulo. Em 2000, fundou a Rede Luiz Flávio Gomes (LFG), voltada à preparação de concursos públicos na área jurídica.