Barbosa deixará marca inesquecível no Supremo, diz Brossard

Por

Um dos juristas mais respeitados do País, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Paulo Brossard avalia que Joaquim Barbosa já entrou para a história da Corte. Não só pelo fato de ter sido o primeiro negro a ingressar no Supremo, mas por sua atuação no comando do STF, em que se destaca a condução do processo do mensalão.
Brossard entende que a Ação Penal 470 deve ser incluída entre os principais julgamentos da história da mais alta Corte do País. Na opinião do ex-ministro, foram principalmente o relator, Barbosa, e o revisor da ação, Ricardo Lewandowski, que possibilitaram um equilíbrio entre a acusação e a defesa dos réus.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, concedida em seu escritório, o jurista de 89 anos refuta as críticas de que o tribunal teria sido influenciado pela mídia. E sustenta que os placares apertados nas votações só reforçaram a “seriedade” com que os ministros conduziram o julgamento.
Brossard também comenta as manifestações de junho do ano passado, que, para ele, são resultado de um acúmulo de descontentamento da população. E avalia, com bastante ceticismo, o quadro político nacional, comentando ainda os motivos pelos quais não retomou a militância no PMDB após deixar o Supremo.
Jornal do Comércio – Como o senhor avalia o julgamento do mensalão, que se encerrou no ano passado?
Paulo Brossard – O Supremo, desde o primeiro momento, encarou o assunto como tinha que ser encarado, com a maior seriedade. Isso é que surpreendeu muita gente: enfrentou os problemas como juiz, ou seja, como um tribunal composto de juízes e ainda com a responsabilidade de ser o tribunal mais alto da nação e de cujas decisões não há recursos. Logo no início, se verificou duas correntes: a do relator, ministro Joaquim Barbosa, e a do revisor, ministro Ricardo Lewandowski. Posições diferentes, mas as duas com muita competência, seriedade, de modo que dizer que não houve defesa não é verdade. A tese contrária foi vencida, o que é a coisa mais natural em um tribunal coletivo. Mas houve defesa, sim.
JC – O placar acirrado contribuiu para as insatisfações.
Brossard – Mas isso é a coisa mais comum em um tribunal. Quantas e quantas vezes tribunais decidem por diferença de um voto. Hoje, seis a cinco. Na corte norte-americana, é cinco a quatro. E decisões sobre assuntos de uma gravidade extraordinária. Isso também impressionou, e foi impressionando cada vez mais, a seriedade. O julgamento realmente surpreendeu muita gente e, simpaticamente, porque muita gente não acreditava. E havia aquela ideia de uma contemporização, porque havia gente graúda, de influência – afinal de contas, envolvia o governo e não só o atual, mas também o passado, e envolveu de uma forma inquestionável. Há alguns anos, um ministro já falecido, Edgard Costa, selecionou algumas dezenas de julgados do tribunal e publicou um livro sob o título Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Em um futuro, se um ministro tiver a ideia que já foi explorada pelo ministro Edgard Costa, esse processo obrigatória e necessariamente fará parte.
JC – O desfecho do julgamento terá repercussão?
Brossard - Não que tenha que ter um efeito miraculoso. Muita gente chegou a imaginar que estava finda a corrupção. Isso é querer demais. A corrupção, afinal de contas, é um pecado, e seduz. E de mais a mais, isso será um elemento a mais, importante. O nosso passado era de muito ceticismo, complacência, descrédito, todas essas coisas juntas, e isso também vai criando raízes. Para isso, não tem efeitos milagrosos. Mas é claro que representa um momento histórico sem igual. Representa um progresso institucional e abre perspectivas possíveis em algumas coisas que venham a ser feitas.
JC – Durante o julgamento chamaram a atenção as discussões entre Barbosa e Lewandowski. Isso é normal em um processo dessa repercussão?
Brossard – Sim. Foram trabalhos muito bem feitos. Defenderam pontos de vista com muita competência e habilidade.
JC – Barbosa tem se envolvido em polêmicas ao longo desse período como presidente do STF, a exemplo das críticas a outros juízes e à criação de tribunais regionais federais. Como avalia a conduta dele na presidência?
Brossard – Ele, na história do Supremo Tribunal, será um juiz inesquecível.
JC – Para além do fato de ele ser o primeiro presidente negro do STF?
Brossard – Sim, para além disso. Mas até sob esse ponto de vista é interessante. Porque isso demonstra que no Brasil, a despeito de todas as divergências, discrepâncias, altos e baixos, ainda acontece uma coisa dessas. Porque, por muito tempo, se disse no Brasil que não havia preconceito. Mas há, sim. Há e ponto. O que não há é, como nos Estados Unidos e em outros países, aquela ferocidade. Isso foi importante para mostrar que esse problema não é de cor, mas de saber se as pessoas têm condições de exercer bem aquela função.
JC – O que achou de críticos do STF que acusaram a Corte de ter sido influenciada pela mídia para julgar os mensaleiros?
Brossard – Isso é uma pilhéria. E basta ver quantos votos foram vencidos. Alguns foram de diferença de um voto. É uma falta de respeito, mas em primeiro lugar uma tolice.
JC – Que análise o senhor faz das manifestações de junho do ano passado?
Brossard – Esse problema não é de hoje. As nascentes e as sementes são bem distantes. No Brasil, até a adoção do Código Assis Brasil, em 1932, pode-se dizer que raramente houve voto de verdade. Em alguns momentos houve: a reforma, chamada Lei Saraiva, do voto direto, ficou famosa porque nessa eleição três ministros foram derrotados - coisa que não tinha precedentes. Durante a Primeira República, não houve eleição nunca: o voto era na bica da pena. E tudo isso não acontece sem consequências. Não acontece por acontecer. E, ao mesmo tempo, não deixa de produzir seus malefícios, seu vício. Isso gerou, em grande parte inexplicavelmente, um sentimento de impotência, de não valer a pena a reação. As reações, salvo as de 1930, todas foram negativas. A campanha civilista, de Rui Barbosa, por exemplo, foi um grande momento, mas foi arrasador. E, depois, a Revolução de 1930 foi vitoriosa por razões de que o País estava cansado. Havia a popularidade das teses da Aliança Liberal e etc. A maioria deles, a começar pelo (Getulio) Vargas, era representante da velha estirpe. Depois os longos períodos de anormalidade; após 1930, passando por 1937. De 1937 se estendeu até 1947. Em 1946, tivemos a Constituição federal, mas só em 1948 os estados foram organizados. E depois de todo aquele período de centralização, embora se diga que o Brasil é uma república federativa, da federação ficou a palavra, e continua centralizado. Atribuo a todos esses fenômenos essas frustrações.
JC - O descontentamento foi crescendo.
Brossard - Como se fosse um bolo se formando a contaminar a generalidade das classes, das pessoas, dos homens mais qualificados, daqueles que diziam que não valia a pena. Depois de tanto tempo após esse regime chamado militar – acho uma impropriedade, porque houve uma época que foi predominante, mas as causas não foram; eles tiveram uma participação importante, até pelo fato de serem militares, que têm recursos que nós não temos, mas foi uma manifestação da opinião pública impressionante - e tudo isso somado. A história do PT foi muito significativa e importante.  No começo, eram alguns intelectuais, mas o resto era de sindicato, operários. Depois, o doutor Luiz Inácio (Lula da Silva, PT), que é um homem espertíssimo e inteligente, conduziu e não se deixou dominar. Depois de dois períodos, passa para a dona Dilma (Rousseff, PT), que não tem as mesmas qualidades. E puseram na cabeça a reeleição, que foi um dos grandes erros cometidos, porque nunca ninguém defendeu a reeleição, nenhum político, escritor, sociólogo, juiz, e deu no que deu. Tudo isso em um país que tinha mudado muito. Em um país que materialmente tinha crescido muito. Compara o Brasil de 1900 com o de 1930 ou com o de 1950. O acesso das classes mais pobres é muito grande e cada vez maior. Tudo isso se condensou em um certo momento. E tudo começou em uma vaia em uma partida de futebol.
JC – Para o senhor, a mobilização foi positiva?
Brossard – Foi um sinal de vida. Depois disso, é difícil. Porque para essas coisas não tem modelo. Agora, tem o perigo, que é quando começa o abuso. Por exemplo, botar fogo. É tão perigoso...
JC – Ficar sem saber quando é protesto e quando é baderna?
Brossard – Todo mundo sabe que existe um grupo minoritário, sempre foi minoritário. Mas é radical etc e tal, exatamente porque é pequeno. Sente-se pequeno e recorre para a violência. Eles chegaram com jeito, são preparados para isso, vivem intensamente com esse estado de espírito. Isso tudo junto de repente, como acontecem as coisas.
JC – Os políticos souberam responder às reinvindicações?
Brossard – Não. Porque a atividade política foi cruelmente tratada. Não vamos mais atrás, vamos de 1964 para 1988, são pouco mais de 20 anos. Nesse período, todas as violências e indecências possíveis foram cometidas. Foram cassados tantos deputados que transformaram a maioria em minoria. E isso à luz do sol. Isso gera também um desestímulo e um ceticismo. No fundo, fica alguma coisa. Outra situação: eram dois partidos, o que era a quinta essência da sabedoria. Arena e PMDB. Foram extintos duas vezes os partidos. O brasileiro não tem poder associativo forte, não. Basta que procure as instituições nacionais que tenham mais de cem anos. No Brasil, tem o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Instituto dos Advogados e mais alguma. Era a suma ciência o bipartidarismo. Agora pode criar à vontade, basta juntar alguns e registrar em cartório. Hoje, temos 32. Agora, quem é capaz de dizer o nome de metade dos ministros. Ou um terço? E a metade dos presidentes desses 32 partidos? E a metade dos líderes partidários da Câmara e do Senado? Quando eu era estudante, quando começou em 1966, eu sabia de tudo isso. E depois se transformou nessa coisa, porque tem fundo partidário etc, de modo que as condições políticas são as piores. E existem, no Brasil, 30 partidos? Pode-se esperar uma mudança disso ou daquilo? Outro dia até escrevi um artigo comentando que o presidente da Câmara (Henrique Eduardo Alves, PMDB) aderiu à reforma eleitoral. A reforma eleitoral era, em primeiro lugar, abolir com o voto secreto (para as votações na Câmara), o que é uma burrice.
JC - Por quê?
Brossard - Porque para certas coisas não se deve (abolir). Em segundo lugar, queria abolir com o voto obrigatório. O voto não é obrigatório. Até porque, como podemos saber se um cidadão votou como os outros se o voto é secreto? É obrigatório comparecer e lá votar ou não votar. Porque ninguém pode obrigar alguém que não queira votar a votar, seja lá quem for. Por que isso? Porque tem muitos dizendo que não querem votar, têm raiva de político. Mas pode não votar, só tem que ir lá. Para celebrar que existe o Brasil, que existem instituições, representação. Porque, se não, se depois os representantes vão mal, você não pode reclamar, porque você não votou. Perder duas horas? Uma manhã? Acho que não é pedir demais. De modo que não espero muito, porque as condições foram muito diabolicamente desmanchadas através da facilidade.
JC – Ainda participa das atividades partidárias no PMDB?
Brossard – Não. Quando fui nomeado juiz do Supremo Tribunal Federal, a Constituição proíbe que o juiz de Direito exerça qualquer atividade partidária. Em tempos idos, inclusive aqui no Rio Grande, atuavam partidariamente. Quando me afastei, escrevi uma carta para Ulysses (Guimarães) dizendo que estava abandonando a política e analisando as condições, como eu via e tal. E depois que deixei o tribunal poderia reintegrar, mas não quis por várias razões, inclusive, por conta desse tempo decorrido, em que as coisas mudaram.

Perfil

Paulo Brossard de Souza Pinto, 89 anos, é natural de Bagé, onde completou o primário e o ginasial. Na Capital, cursou o Pré-Jurídico (1941-1942) e ingressou na Faculdade de Direito de Porto Alegre, hoje parte da Ufrgs, colando grau em 1947. O interesse pela política vem desde cedo, tendo sido eleito deputado estadual pelo Partido Libertador em outubro de 1954, pouco antes de completar 30 anos. Reelegeu-se para as duas legislaturas seguintes, permanecendo na Assembleia até 1967. Foi líder do PL no Parlamento. No governo Ildo Meneghetti, exerceu o cargo de secretário do Interior e Justiça em 1964. Em 1966, foi eleito deputado federal pelo MDB (1967-1971). Elegeu-se senador para a legislatura de 1975-1983. Em 1978, nas eleições presidenciais, candidatou-se pelo MDB a vice de Euler Bentes. Foi nomeado ao STF em 1989 pelo então presidente José Sarney. Em 1991, foi eleito juiz do Tribunal Superior Eleitoral, assumindo a vice-presidência e a presidência do TSE. No STF, foi empossado vice-presidente em 1993.