Peritos iniciam nesta quarta-feira a exumação de Jango

Por

As suspeitas sobre as circunstâncias da morte do ex-presidente João Goulart, deposto pelo regime militar brasileiro na década de 1960, começam a ser elucidadas a partir de hoje. Muito se escreveu sobre os 12 anos de Jango no exílio e a respeito de sua morte por conta de problemas cardíacos, bem como sobre ilações de um possível envenenamento articulado por agentes repressivos secretos. Mas, se houver êxito, será um grupo de especialistas - médicos peritos, antropólogos forenses, toxicologistas, dentistas e criminalistas - que desvendará as causas da morte do ex-presidente, o terceiro gaúcho a ser eleito democraticamente para comandar a nação - depois de Hermes da Fonseca (1910) e Getulio Vargas (1950). Os trabalhos são acompanhados pelos ministros José Eduardo Cardozo (PT), da Justiça, e Maria do Rosário (PT), dos Direitos Humanos.
A propósito do procedimento de exumação, ontem à noite, no CTG Tropilha Crioula, em São Borja, aconteceu uma audiência pública promovida pela Secretaria dos Direitos Humanos. À população foram detalhados os passos da exumação que se inicia hoje, no Cemitério Jardim da Paz, e que vai até o dia 4 de dezembro, na capital federal. Um dia depois, a expectativa é de que os restos mortais deixem Brasília e cheguem a Porto Alegre para uma homenagem no Palácio Piratini. No dia 6, já em São Borja, será realizada uma missa pela passagem da data de morte, antes do retorno do corpo ao mausoléu da família.
“É a sequência de um trabalho que vem sendo realizado há anos. A família já se comprometeu e o Estado brasileiro também sobre o retorno dos restos mortais a São Borja. Toda a família está na cidade para auxiliar os peritos na localização do caixão do meu avô”, disse Christopher Goulart.
A família de Jango contratou o perito cubano Jorge Pérez, reitor da Faculdade de Ciências Médicas de Havana, o mesmo especialista que participou da exumação do corpo do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara. No grupo de especialistas estão brasileiros - integrantes do Instituto Nacional de Criminalística, Ministério Público Federal e da Polícia Federal -, peritos uruguaios, argentinos e da Cruz Vermelha Internacional.
Na manhã desta quinta-feira, os restos mortais de João Goulart deixam São Borja para serem levados à base aérea de Santa Maria, de onde partem para Brasília.
O prefeito de São Borja, Farelo Almeida (PDT), acredita que o Brasil vive um momento histórico com a exumação do corpo do ex-presidente João Goulart. “Importante para todo o País, em especial à geração jovem, que não conhece a história do Jango e da própria ditadura militar (1964-1985). Que a exumação sirva para o jovem refletir sobre a importância da democracia, pois hoje vivemos mais um momento de anarquia do que de busca de direitos. Também temos de destacar a coragem da ministra Maria do Rosário (PT) na busca pela verdade”, destacou o prefeito.

No exílio, João Goulart se reunia com políticos de países vizinhos

As ditaduras militares que irromperam na América do Sul a partir da década de 1960 resultaram na cumplicidade e apoio mútuo dos serviços de inteligência de países como Brasil, Uruguai, Chile e Argentina. Antes de se refugiar na Argentina, onde morreu na cidade de Mercedes em 1976, Jango morou no Uruguai. Encontros com exilados brasileiros e com líderes do Cone Sul eram constantes. O Jornal do Comércio teve acesso a um dos documentos oficiais do serviço secreto uruguaio, assinado pela Dirección Nacional de Información e Inteligencia. Nele, há relatos detalhados sobre as investigações e monitoramento do cotidiano do ex-presidente brasileiro.
Na documentação, datada de 22 de fevereiro de 1974, há relatos de reuniões, em Buenos Aires, de João Goulart com o ex-presidente deposto da Bolívia Juan Jose Torres, com o deputado uruguaio Héctor Gutiérrez Ruiz, presidente da Câmara de Representantes do Uruguai, e com o senador uruguaio Zelmar Michelini.
Os dois políticos uruguaios foram assassinados na Argentina, durante o exílio. O recrudescimento dos regimes e a cooperação dos mesmos através da Operação Condor resultaram na morte de líderes políticos de esquerda e contrários aos golpes militares.
Coincidência ou não, as mortes de figuras importantes como Orlando Letelier - ex-embaixador e ex-ministro do presidente socialista chileno Salvador Allende - ocorreram em períodos próximos. Em 1976, em Washington, Letelier foi assassinado depois de um atentado a bomba.
No mesmo ano, em Buenos Aires, o ex-presidente da Bolívia Juan Jose Torres, deposto no golpe de 1971, é assassinado pelos militares argentinos. Em maio de 1976, também na capital argentina, ocorreu o assassinato do deputado uruguaio Héctor Gutiérrez, assim como o do senador Michelini.
“Com líderes políticos de países vizinhos, Jango se reunia no Uruguai. O senador Michelini e o deputado Héctor foram assassinados na Argentina, durante o exílio. Eram amigos do Jango, assim como o presidente Juan José Torres”, relata Krischke.
O ativista lembra que quando, em sua campanha eleitoral, o então candidato à Casa Branca Jimmy Carter falava em direitos humanos, que não apoiaria as ditaduras, os militares da América Latina ficaram temerosos. “Uma transição forçada à democratização garantiria a reeleição para cargos políticos dos políticos então depostos, perseguidos e exilados. Portanto, os militares trataram de aniquilar estes políticos”, suspeita Jair Krischke.
Historiadores e estudiosos dos regimes militares no Cone Sul defendem que é forte a hipótese de assassinato do gaúcho, principalmente pelos contextos em que várias mortes ocorreram. No caso brasileiro, morreram em um período de nove meses - de agosto de 1976 a maio de 1977 - o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o ex-governador do estado da Guanabara Carlos Lacerda e Jango.

Jair Krischke critica Maria do Rosário

Os trabalhos e a coordenação da exumação do ex-presidente João Goulart seriam de responsabilidade da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada por lei pelo governo federal para investigar crimes ocorridos durante a ditadura militar brasileira. Esta é uma crítica feita por ativistas, integrantes da CNV e até de alguns representantes do Ministério Público Federal, como a procuradora da República Suzete Bragagnolo, que pediu o desligamento dos trabalhos.
“A ministra (Maria do Rosário) tomou conta dos trabalhos para fazer campanha eleitoral. É um desrespeito com o presidente João Goulart, hoje alvo de um show midiático. A CNV foi criada por lei para investigar, mas recua para que a ministra faça um movimento político”, criticou Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos.
A ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário (PT), disse à reportagem que “a exumação atende, primeiramente, a um pedido da família. Além disso, acreditamos que é um dever do Estado brasileiro articular esse processo que se encaixa naquilo que chamamos de direito à memória e à verdade”, rebateu.