DaMatta atribui à ilegalidade do jogo o poder de Cachoeira

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Autor de um estudo sobre o jogo bicho, publicado em 1999, o antropólogo Roberto DaMatta avalia que o bicheiro Carlos Cachoeira, alvo de investigação da Polícia Federal por comandar um esquema de jogo ilegal, não teria se tornado tão poderoso se a prática fosse legalizada. DaMatta analisa que o jogo do bicho faz parte da cultura brasileira e que a proibição só tornou os envolvidos com a prática mais influentes, tendo em vista que não são fiscalizados.
Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, DaMatta avalia que as denúncias de corrupção têm marcado o governo Dilma Rousseff e que falta um projeto ao governo petista. “Tem algum projeto? Tem alguma ideia nova? O que é mais extraordinário no governo do PT é que eu esperava alguma coisa diferente”, comenta.
O antropólogo ainda identifica problemas na democracia do Brasil e analisa que a sociedade brasileira precisa passar por um processo de conscientização para o civismo. Ele também critica a expressão “ascensão da classe C”, que considera preconceituosa, e a euforia da população diante da situação de estabilidade e crescimento da economia brasileira.
Jornal do Comércio – Entre os seus estudos antropológicos, o senhor analisou o jogo do bicho, que agora está no centro de uma CPI no Congresso. Como avalia o caso Carlos Cachoeira, que evidenciou as relações entre legisladores e a clandestinidade?
Roberto DaMatta - O jogo do bicho é uma invenção brasileira e o poder de Cachoeira existe exatamente porque ele tem dinheiro vivo. Se você legalizasse o jogo ou a prostituição ou algumas drogas, como o álcool e a maconha, se quebrariam mistério e o tabu que envolvem a polêmica.  É curioso que o método brasileiro de enfrentar dificuldades sempre foi proibir, e, na realidade, existe outra forma de lidar com esses paradoxos, que é entendê-los e desmontá-los, enfrentando as causas e não as consequências. Li um artigo em que um político dizia que o poder de Cachoeira mostra que o jogo não pode existir. Ao contrário, se o jogo fosse legal e fiscalizado, ele não teria esse poder todo.
JC - Existe certa conivência por parte da população com esses atos de corrupção?
DaMatta - Com certeza. Nesse ponto surge outra questão, que tem a ver com o debate da sociedade democrática e livre, que é você ter certeza que algumas pessoas não seguem as regras e não são punidas. A gente se pergunta qual é a solução para isso, e digo que se quebra esse círculo fazendo uma politização profunda, sincera e honesta dos seus limites, e essa ação não tem que partir só do governo, mas também da sociedade. Diria que mais ainda da sociedade. Os jornais, por exemplo, são importantíssimos na promoção desse tipo de ato. Quer dizer, o que é preciso para se sentir confortável, tranquilo e seguro na cidade onde se vive é a questão a ser pensada, assim como o que se precisa para viver bem a minha vida.
JC - Que problemas identifica na democracia brasileira?
DaMatta - A nossa é problemática porque somos uma sociedade que temos uma história quase antagônica, ao avesso. Ela tem o esqueleto aristocrático, sempre teve nobres e pessoas que quiseram enriquecer, como os portugueses que vieram para cá não para ficar, mas para explorar. É uma sociedade muito mais de aventureiros do que de pioneiros, ao contrário dos ingleses, por exemplo, que se estabeleceram nos Estados Unidos. Nascemos democratas no papel, mas não inscrevemos a democracia no nosso comportamento, esses são os problemas. A economia brasileira sempre foi baseada na exportação de produtos agrícolas primários, em commodities, e se concretizou através do trabalho escravo. Foi uma sociedade que até meia hora atrás tinha um sistema social contaminado por uma lógica perversa, como observava Joaquim Nabuco em contraste às sociedades europeias. As pessoas me chamavam de reacionário porque eu não falava em luta de classes. Não estou negando que tenha, mas para que ela exista tem de ter o mínimo de crença na igualdade, o que não é o caso dos escravos, já que alguns não sabiam nem falar português. O projeto e a discussão da abolição  demoraram 70 anos para gerar efeitos. Vamos demorar mais 100 anos para nos tornarmos uma sociedade que aceita não só a ideia, mas também as práticas de igualdade. Sempre existe o velho “jeitinho” se a pessoa for conhecida, sobretudo amigo ou parente, do contrário não acontece nada. Porque a igualdade é para os subordinados, não para o superior.
JC - Uns são mais iguais do que os outros...
DaMatta - Os governos vivem dando exemplo disso, o que é mais estranho é que são os governos de esquerda! São os mais sensíveis ao cargo oficial, à mordomia, a morar no Palácio, e acho que isso quer dizer alguma coisa sim. Dependendo do contexto, a mudança de certos tipos de conduta são muito expressivas e significativas simbolicamente e quebram com determinados paradigmas. Uma sociedade fortemente hierarquizada, aristocrática e com uma elite despreparada que, quando proclamou a República, construiu a estrutura burocrática em cima daquilo que era o método normal de governar, através de favores e etc. Não estou dizendo que as transições brasileiras devem ser feitas à base de fuzilamentos, mas você não as sente por causa desse componente legalístico que vem de Portugal, temos e fazemos leis para tudo. Legislamos e achamos que aí está a solução do problema.
JC – Qual a avaliação política e econômica do governo Dilma?
DaMatta - Lamentavelmente, são as denúncias de corrupção que nós observamos. Tem algum projeto? Tem alguma ideia nova? O que é mais extraordinário no governo do PT é que eu esperava alguma coisa diferente. O Fome Zero não funcionou. Os países que conseguiram erradicar a miséria tiveram um programa de ensino primário e secundário universal e gratuito, com excelentes escolas e infraestrutura e professores preparados. Isso aconteceu na Coreia e na Finlândia. Deve-se deixar que os programas tenham mais liberdade atendendo à demanda local. Uma escola do Rio Grande do Sul certamente vai ensinar coisas distintas de uma escola do interior do Amazonas e do Amapá, porque o País é continental e possui uma cultura muito diversificada.
JC - Com relação à estrutura da pirâmide social, houve mudanças?
DaMatta – Sim. E você tem uma intolerância maior hoje para situações em que visivelmente e flagrantemente há abusos da cidadania, o que ocorre justamente por parte do governo com a roubalheira. Você pode ter o abuso de uma classe social, por exemplo. Os bancos estão tendo um lucro extraordinário, mas em qualquer banco que você vá o atendimento melhorou muito e as máquinas não falham, então você paga caro, mas recebe, tudo funciona. A única coisa que não funciona é o governo.
JC - Mesmo com mais fiscalização e cobrança...
DaMatta - Está faltando governo, mas não no sentido de apadrinhamento e de ficar viajando para todos os lugares com o pretexto de tratar do interesse público. Está faltando mais debate entre eles, bate-boca e oposição. A oposição não existe, ela praticamente está acabada. Esse modelo monárquico e centralista é histórico. Hoje o fantasma que está rondando o Brasil é o da igualdade e de uma demanda maior por ela. Pagamos muitos impostos, queremos alguma coisa de volta. Não admitimos mais um governo que tenha uma retórica igualitária, mas que não faça nada por essa causa. Fica tudo na base do bate-papo. Muda o governo e todos pensam que agora virão transformações, e não é o que ocorre. Não sou politicólogo e tampouco sou bom de previsão, o que estou dizendo são intuições. Sinto que estamos vivendo um momento extremamente importante porque pela primeira vez na história do País temos orgulho dele e pela primeira vez temos uma moeda estável, e isso tudo é positivo. Está faltando para o Brasil arrumar essa estrutura.
JC - Por parte da sociedade civil ainda há uma carência grande de cultura política e cívica?
DaMatta - Essa é a chave da questão. Noventa por cento das pessoas apontam o nosso principal problema como a falta de educação, mas, eu pergunto, de que tipo? É justamente uma educação para o civismo, para a igualdade, para tomar conhecimento que o outro existe e é tão importante como eu. Então, se você gosta de silêncio, o outro também pode gostar. Se dirige com cautela, os outros também deverão dirigir assim. É preciso inverter, em certo sentido, essas relações entre a casa e a rua. É uma divisão radical no Brasil e é preciso aproximar a casa da rua. Se nos comportássemos na rua como nos comportamos em casa, o mundo seria civilizado, cordial, amoroso e fraterno. Esse elemento de solidariedade é o que está faltando e falta alguém do governo para verbalizar isso. Também temos o problema que, nos últimos anos, aparelhamos a discussão política de tal maneira que ela virou um assunto técnico e esquecemos que política tem a ver com cidadania. Ela passou a ser associada a uma visão negativa, porque apresentam mais problemas do que soluções na maioria das vezes. Hoje o que a gente espera não são soluções gerais, são soluções parciais e pontuais, e isso tem ocorrido por pressão. Em relação ao governo Dilma, a impressão que essa senhora passa é de que ela governa quase que por favor, porque em todo lugar que ela aparece está de cara feia, com a postura defensiva.
JC - Ao mesmo tempo as avaliações mostram um recorde de popularidade da presidente, embora muitos atribuam à condição financeira dos brasileiros.
DaMatta - Sem dúvida, esse ponto é importante. Mas a popularidade das rainhas, com exceção de Maria Antonieta, sempre foi alta. A pesquisa também depende muito do espectro e da dimensão do público consultado.
JC - Como avalia a inserção da chamada nova classe média?
DaMatta - Estamos vivendo um momento no País em que tivemos um aumento de consumo muito grande causado pelo Plano Real, pelos programas do governo Lula e com continuidade no governo Dilma. Em todos os lugares, desde hotéis até restaurantes, estádios, shoppings, se vê a “ascensão da classe C”. Essa é uma expressão detestável e reveladora do nosso preconceito contra o chamado “povão, gentinha”. É um volume de gente enorme, uma massa de gente consumindo, mas em uma sociedade que não possui uma cultura igualitária.
JC - Como observa essa onda de otimismo da população em relação à economia brasileira e ainda à realização da Copa do Mundo no País?
DaMatta - Existe realmente esse otimismo e eu acho ótimo, mas a questão que se faz necessária é será que o governo vai dar conta? Isso não tem a ver com partido ou orientação política, mas tem a ver com mérito e eficiência e o uso de recursos de maneira parcimoniosa e racional, com planejamento e pró-ação.
JC - O descompasso da internalização da igualdade na sociedade brasileira foi um entrave no processo de formação da cidadania no País?
DaMatta - Há a razão histórica e o conceito de cidadania, que nasceu aqui nos anos 1980 e é muito vincado nas ideias de liberdade, de privilégios e de direitos. Continuamos falando pouco dos deveres que são exatamente esses ajustamentos que têm que existir entre a liberdade de um e de outro. Os brasileiros não possuem a noção de dever tão clara como a de direito e, nesse sentido, falamos de costume, que tem a ver com esse Brasil embrionário, preconceituoso e escravocrata. Como antropólogo, o que mais impressiona quando observo o funcionamento de uma sociedade é a força dos costumes e como eles têm a capacidade de canibalizar e de envolver as coisas novas. A capacidade de assimilação daquilo que entra para mudar é enorme, acaba fazendo parte da mudança que acaba não sendo realizada porque passa a integrar o problema. Nessas sociedades tradicionais, como é o caso do Brasil, a ideia de mudança sempre foi colocada na mão do Estado. A autoridade é que tem a obrigação de resolver os problemas como se nós não tivéssemos nada a ver com isso.

Perfil

Roberto Augusto DaMatta, 75 anos, natural de Niterói (RJ), é professor titular, doutor em Filosofia e mestre em Antropologia pelo Peabody Museum da Universidade de Harvard. Graduado e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), tem especialização em Antropologia Social do Museu Nacional. Foi chefe do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordenou o programa de pós-graduação. É professor emérito da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. DaMatta realizou pesquisas etnológicas entre os índios Gaviões e Apinayé. Foi pioneiro nos estudos de rituais e festivais em sociedades industriais, tendo investigado o Brasil como sociedade e sistema cultural por meio do Carnaval, do futebol, da música, da comida, da cidadania, da mulher, da morte, do jogo do bicho e do comportamento no trânsito. Possui vasta produção acadêmica e diversos livros publicados, como Índios e castanheiros (1967), O que faz o Brasil, Brasil? (1984), A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil (1984).