De Bagé, especial para o Cidades
Bagé, na região da Campanha, carrega em suas ruas e vitrines marcas da história da imigração libanesa. Desde o início do século XX, comerciantes vindos do Oriente Médio — especialmente do Líbano, da Síria e da Palestina — contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento urbano e econômico do município. A tradicional loja York, no centro da cidade, é um símbolo vivo dessa contribuição.
Fundada em 1937 por um jovem libanês cristão de apenas 16 anos, a York nasceu da coragem e da fé de um imigrante chamado Francisco Kalil, que embarcou no navio Neptuno rumo ao Brasil, partindo da cidade de Brumana, nos arredores de Beirute. Após um mês atravessando o oceano, desembarcou no Porto de Rio Grande e seguiu de trem até Bagé, onde começaria sua trajetória no comércio local.
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“O início foi muito difícil porque, como todo imigrante, os hábitos culturais, a linguagem, a comunicação eram muito difíceis”, relata Luís Francisco Kalil, filho do fundador e atual proprietário da loja. “Mas ele costumava dizer que, com fé em Deus e seriedade no trabalho, tudo evolui.”
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Antes de ocupar o imponente prédio que abriga a York atualmente, o negócio teve início em um espaço modesto — um pequeno ponto embaixo de uma escada, onde Francisco mal conseguia ficar de pé para atender os clientes. Depois, passou para o Mercado Público de Bagé, de onde teve que sair na década de 1950 com a demolição do prédio. Aos poucos, a loja se expandiu, adquirindo imóveis vizinhos e consolidando-se como uma referência regional em vestuário, calçados e artigos para o lar.
O setor têxtil, tradicional entre os imigrantes libaneses, foi a porta de entrada de muitos para a atividade econômica urbana no Brasil. “Esses imigrantes contribuíram muito para desenvolver a cidade. Eram atividades que não existiam em Bagé ou eram muito rudimentares. Isso aumentou o número de empregos e a renda da cidade”, afirma Kalil. Segundo ele, até hoje o comércio ainda é um dos maiores empregadores da região.
A permanência da York por quase nove décadas é resultado de um esforço contínuo de atualização da gestão. “O maior desafio nunca foi a concorrência, mas sim acompanhar o mercado, a adaptação às novas demandas e manter uma equipe comprometida”, avalia Kalil. Muitos dos colaboradores da empresa têm décadas de vínculo com a loja, o que fortalece a identidade e a confiança no serviço prestado à comunidade.
Museu no 2º andar da loja foi aberto em 2008 para perpetuar história dos fundadores e da imigração libanesa em Bagé
Jéssica Pacheco/Especial/JC
Hoje, aos 88 anos de fundação, a York carrega também um compromisso com a memória. Em 2008, foi criado no segundo andar da loja um pequeno museu que preserva documentos, imagens, objetos e relíquias da trajetória do fundador e da evolução do negócio. O espaço inclui máquinas de escrever, calculadoras manuais e fotografias antigas que contam, em detalhes, a relação entre a empresa e a cidade.
“A história da empresa se mistura com a história de Bagé”, diz Kalil. “Ao longo do tempo, muitas coisas vão sumindo e ficando desconhecidas. O museu é uma forma de manter viva essa trajetória para as futuras gerações.”
“A história da empresa se mistura com a história de Bagé”, diz Kalil. “Ao longo do tempo, muitas coisas vão sumindo e ficando desconhecidas. O museu é uma forma de manter viva essa trajetória para as futuras gerações.”
Entidades representativas da comunidade libanesa no país estimam que, atualmente, cerca de 400 mil descendentes de libaneses vivam no Rio Grande do Sul — e em Bagé, essa presença se reflete não apenas na economia, mas também na cultura local. A herança deixada por imigrantes como Francisco Kalil, fundador da York, continua a influenciar o modo de empreender, os laços comunitários e a valorização da história familiar como base para o futuro.
Ao celebrar seus 88 anos de funcionamento ininterrupto, a York representa mais do que um ponto comercial: é um testemunho da força da imigração na construção do interior gaúcho. A loja segue viva, atualizada, com vitrines que se renovam, mas com raízes fincadas na coragem de quem atravessou oceanos com um sonho — e ajudou a moldar uma cidade inteira a partir dele.