Número de trabalhadores em situação análoga à escravidão na Serra supera os resgates feitos em 2022

Grupo de 192 homens foi contratado por uma empresa terceirizada que prestava serviço para vinícolas da Serra

Por Luciane Medeiros

Trabalhadores foram resgatados na cidade de Bento Gonçalves
O resgate de 192 trabalhadores em situação análoga à escravidão na Serra é maior do que o número apurado durante todo o ano de 2022 no Rio Grande do Sul, quando atingiu 156 pessoas. O caso veio à tona após operação conjunta entre Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal na quarta-feira (22).
Os trabalhadores, a maioria vindos da Bahia, foram contratados por uma empresa terceirizada por vinícolas para atuar na colheita da uva nas cidades de Bento Gonçalves e Garibaldi. Três deles conseguiram fugir do alojamento e foram até um posto da PRF em Caxias do Sul, onde contaram que eram mantidos no local contra a sua vontade. A partir da denúncia, equipes da PF, PRF e MPT-RS foram até uma pousada em Bento Gonçalves onde os trabalhadores ficavam.
Segundo o chefe da Delegacia de Polícia Federal em Caxias do Sul, delegado Claudino Sebaldo Alves de Oliveira, os alojamentos apresentavam condições insalubres. A ação abrangeu ainda vistoria em um minimercado nas proximidades onde o grupo comprava alimentos e outras mercadorias.
Os trabalhadores contaram que eram submetidos a jornadas exaustivas, recebiam comida imprópria para consumo e só podiam comprar produtos em um determinado minimercado. As compras eram descontadas do pagamento recebido e os valores cobrados pelos produtos eram elevados. Além disso, eles eram mantidos vinculados ao trabalho por supostas “dívidas” contraídas com o empregador.
De acordo com o delegado, o responsável pela empresa Oliveira e Santana, que contratou os trabalhadores, foi preso em flagrante e solto após o pagamento de fiança. Ele tem 45 anos e é natural de Valente (BA). A empresa atua na carga e descarga de mercadorias possui contratos com diversas vinícolas da região. “Foi instaurado inquérito para apurar os fatos, a fim de verificar todos os envolvidos e responsabilidades”, destacou o chefe da PF em Caxias do Sul.
Segundo o MPT-RS, neste momento, estão confirmados apenas relatos de trabalho análogo à escravidão na colheita de uva. As procuradoras Franciele D’Ambros e Ana Lucia Stumpf González estão acompanhando o caso em Bento Gonçalves. “O MPT está atuando para garantir o pagamento das verbas rescisórias e o retorno dos trabalhadores para suas cidades de origem. Num próximo momento, serão feitas ações para responsabilização da cadeia produtiva”, diz o órgão.
Após o resgate, os homens foram levados até o Ginásio Municipal de Esportes de Bento Gonçalves. A prefeitura forneceu alimentação, alojamento e itens de higiene. Uma equipe da Assistência Social do município está auxiliando no fornecimento de documentos e outros atendimentos.
As três vinícolas citadas no caso – Aurora, Garibaldi e Salton – disseram que desconheciam a situação dos trabalhadores contratados pela terceirizada Oliveira e Santana e se posicionaram por meio de notas. Leia na íntegra os posicionamentos das vinícolas:
Vinícola Aurora:
“A Vinícola Aurora se solidariza com os trabalhadores contratados pela empresa terceirizada e reforça que não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão.
No período sazonal, como a safra da uva, a empresa contrata trabalhadores terceirizados, devido à escassez de mão-de-obra na região. Com isso, cabe destacar que Aurora repassa à empresa terceirizada um valor acima de R$ 6,5 mil/mês por trabalhador, acrescidos de eventuais horas extras prestadas.
Além disso, todo e qualquer prestador de serviço recebe alimentação de qualidade durante o turno de trabalho, como café da manhã, almoço e janta.
A empresa informa também que todos os prestadores de serviço recebem treinamentos previstos na legislação trabalhista e que não há distinção de tratamento entre os funcionários da empresa e trabalhadores contratados.
A vinícola reforça que exige das empresas contratadas toda documentação prevista na legislação trabalhista.
A Aurora se coloca à disposição das autoridades para quaisquer esclarecimentos.”

Cooperativa Garibaldi:
“Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa Oliveira & Santana no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Informa, ainda, que mantinha contrato com empresa diversa desta citada pela mídia. A Vinícola Garibaldi tinha 15 funcionários temporários ligados a esta empresa.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos.”
Vinícola Salton:
"Em respeito a seus clientes, colaboradores, acionistas e demais fornecedores, a Salton manifesta seu repúdio a qualquer ato de violação dos direitos humanos e trabalho sob condições precárias e análogas à escravidão. A empresa e seus representantes estão à disposição de todos os trabalhadores e suas famílias, que foram tratados de forma desumana e cruel pela empresa Oliveira e Santana e se coloca à disposição dos órgãos competentes para colaborar com o processo e amenizar os danos causados pela prestadora de serviços.
Embora a Salton tenha atendido a exigência legal na contratação do fornecedor, reconhecemos o erro em não averiguarmos in loco as condições de moradia oferecidas por este prestador de serviço aos seus trabalhadores. Trata-se de um incidente isolado na trajetória centenária da empresa, e já estamos tomando as medidas cabíveis frente ao tema, com toda a seriedade e respeito que a situação exige. A empresa trabalhará prontamente não apenas para coibir novos acontecimentos, mas também para promover a conscientização das melhores práticas sociais e trabalhistas em parceria com órgãos e entidades do setor
Com um legado de 112 anos, a Salton acredita na sustentabilidade como premissa de negócio. Signatária do Pacto Global, realiza diversos projetos para reforçar a responsabilidade social da empresa e seu compromisso como empresa cidadã.
Externamos o nosso compromisso em fazer cada vez melhor.
Família Salton."
 

CTB RS cobra medidas de responsabilização e prevenção ao trabalho análogo à escravidão


A Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB RS) recebeu com indignação a operação de resgate de pessoas em trabalho análogo à escravidão. Segundo o presidente da CTB RS, Guiomar Vidor, os casos de trabalho análogo a escravidão no Rio Grande do Sul tem sido recorrentes.
"Esse tipo de prática lamentável e criminosa se intensificou após a reforma trabalhista. Para muitos empresários, agora não há mais lei, acham que está tudo liberado e podem explorar os trabalhadores e trabalhadoras desta forma, como se fossem seus escravos. Mas, a escravidão já acabou no Brasil", critica Vidor.
O dirigente enfatiza que é preciso revogar a legislação regressiva da reforma trabalhista aprovada em 2017, de forma a coibir esse tipo de prática e, consequentemente, gerar mais proteção para os trabalhadores e trabalhadoras.
Segundo Vidor, independentemente de terem contratado via um prestador de serviços, as vinícolas têm responsabilidade moral e jurídica no caso de trabalho análogo à escravidão ocorrido na serra. Segundo a legislação, é a responsabilidade solidária, o que significa que elas responderão, do ponto de vista trabalhista, da mesma forma que o prestador contratado, que, no caso, é tratado como aliciador.