O (extra) ordinário universo de Rafael Sica, destaque gaúcho nos quadrinhos

Obras como ‘Triste’, de Rafael Sica, revelam a estranheza presente no trabalho de um dos mais inquietos quadrinistas gaúchos

Por Daniel Sanes

Obras como Triste, de Rafael Sica, revelam a estranheza presente no trabalho de um dos mais inquietos quadrinistas gaúchos
O simpático monstro marinho tenta socializar com um pescador.

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Encontrando um caminho no desenho

IIustração do livro Ordinário ressalta o clima entre o melancólico e o nonsense do universo de Rafael Sica
A primeira referência de um desenhista é, geralmente, um gibi lido na infância. Não é esse o caso de Rafael Sica. Ele confessa que sempre foi mais interessado em política, muito presente em sua obra. Tem mais afinidade com o realismo mágico de Gabriel García Márquez e Julio Cortázar do que com os personagens da Marvel.
"Não fui um grande leitor de quadrinhos. Pulei a fase de super-heróis. Mas sempre gostei de desenhar. Minha mãe, Clarice, foi uma grande influência, pois era estilista, criava roupas para uma loja de Pelotas. E nunca deixava faltar papel, caneta e lápis em casa", diz o desenhista de 44 anos.
A charge e o cartum vieram antes dos quadrinhos. Por meio do pai, Carlos, hoje ex-bancário, acabou publicando sua primeira ilustração, em um jornal sindical da região. "O desenho se uniu à crítica social e me levou para o humor gráfico. Acho que tinha uns 16 anos na época."
A partir daí, as coisas foram acontecendo. Fez uma oficina com André Macedo, conhecido pelas tirinhas de Libório e Betinho no jornal Diário Popular ("ele foi o primeiro cara que prestou atenção no meu desenho e me incentivou"). Em paralelo, conseguiu uma bolsa de estudos para cursar jornalismo na Universidade Católica de Pelotas (UCPel). "Eu nem pensava em fazer faculdade, ia mal na escola e estava sempre trabalhando. Esse era o curso mais próximo que tinha de desenho. Acabei entrando meio de gaiato", ri.
O jornalismo o ajudou a conhecer pessoas e ter acesso a publicações de todo o País, em uma época em que a internet ainda estava engatinhando. "Eu morava na região do Obelisco, no Areal, e vivia mais ligado ao que acontecia no próprio bairro. A universidade acabou me trazendo para o centro da cidade e me possibilitando ter mais contato com o desenho", observa.
Em 1999, Macedo o convidou para cobrir suas férias no Diário Popular. Não demorou para que Sica conquistasse seu próprio espaço, com tirinhas que já davam mostras de estilo nada convencional. E, já imerso no mundo das artes gráficas, ajudou a organizar um evento de quadrinhos em 2001, com a presença do cartunista Adão Iturrusgarai.
Gaúcho radicado no centro do País desde o início da década de 1990, o criador dos cowboys gays Rocky & Hudson e de Aline e seus dois namorados se encantou com o traço do guri. E botou "pilha" para que ele fosse para São Paulo.
"Naquela época, o Sica fazia uns bonequinhos narigudos parecidos com os meus e do Angeli. Era algo bem de humor. Aí foi amadurecendo, né? O trabalho dele ficou mais complexo, sombrio e poético", afirma Adão. "O cara enveredou por um caminho bem original, que fez com que sua obra ganhasse mais expressão ainda. Virou artista, com um traço de qualidade impressionante."
Sica ouviu o conselho. Formou-se em dezembro de 2003 e, no mês seguinte, já estava morando em um quarto de pensão na maior cidade do Brasil.
Na bagagem, vários desenhos impressos e alguns originais. "O Adão, que na época vivia no Rio de Janeiro, me passou vários contatos em São Paulo. Montei uma pastinha e fui bater de porta em porta. E assim comecei lá, meio devagar, fazendo freelas de ilustração e quadrinhos", lembra Sica, que publicou no caderno Folhateen, do jornal A Folha de S. Paulo, e em revistas como piauí e Soma.
Pouco tempo depois, decidiu criar um blog. A ideia era que o espaço funcionasse como um portfólio virtual, mas acabou se transformando em repositório para suas tirinhas, intituladas Quadrinhos Ordinários.
A originalidade do trabalho logo começou a chamar atenção. Sica foi agraciado duas vezes com o Troféu HQ Mix, maior premiação brasileira na área - em 2005, na categoria Novo Talento, e, em 2009, em Web Quadrinhos. E o conteúdo do blog deu origem a seu primeiro livro, abrindo um portal para esse universo artístico tão peculiar.
"Uma vez entrevistei o Rafael Sica e ele me disse: 'o estranhamento é, para mim, algo fundamental'. Gosto dessa fala porque o que mais me encanta no trabalho dele é exatamente o estranhamento que me causa", afirma o jornalista Ramon Vitral, responsável pelo blog Vitralizado, um dos principais espaços sobre quadrinhos da imprensa brasileira. "A arte dele é, ao mesmo tempo, delicada e bruta, seus desenhos são simples e detalhados. Ele tem um universo estético muito próprio que atrai e causa desconforto."
 

Início da carreira independente

Morando na tranquilidade da Praia do Laranjal, em Pelotas, Rafael Sica se mostra avesso a badalações e mantém distância das redes sociais
Em 2006, Sica se torna pai pela primeira vez. Como a família de sua então companheira era de Porto Alegre, ele desembarca de mala e cuia na capital gaúcha, onde nasce a filha Nina, hoje uma jovem de 17 anos.
No campo profissional, volta à redação, desta vez no Diário Gaúcho. Mas a rotina é corrida e, quando surge o convite para sua primeira exposição individual, pede uma folga para organizar a montagem. Pedido negado, resolve se demitir. É quando entra de vez no mundo independente.
"Naquele momento, eu me liberto completamente. Rola uma transformação maior no meu trabalho: começa a sumir o texto, as tiras ficam ainda mais sugestivas, silenciosas", analisa.
A mostra Cinza-choque é aberta em 2008 no Museu do Trabalho. Na virada da década, esse espaço acaba marcando a vida profissional de Sica, quando, ao lado de outros artistas, movimenta a cena dos quadrinhos underground por meio de feiras como a Parada Gráfica. "O mercado de publicação independente começa a ficar mais aquecido. Já tem um público sendo formado, que frequenta feiras, que hoje é uma coisa muito forte".
Ainda muito jovem, o artista vivencia toda a efervescência da cena porto-alegrense. Mas logo percebe a agitação desviando o foco do desenho. Em 2014, trabalhar em casa já é uma alternativa viável para um artista independente. Sica decide, então, voltar para a cidade natal.
 

Mais liberdade para criar

Morando no Laranjal, em Pelotas, artista diz se concentrar melhor no trabalho
Estar no meio da badalação nunca foi prioridade para Rafael Sica. Morou em duas grandes capitais por motivos profissionais, mas prefere a vida pacata na Praia do Laranjal - ao lado da atual companheira, a também artista Márcia Hamaguchi, e da filha Mei, de três anos.
"Aqui há menos estímulos externos do que numa cidade grande. Isso ajuda muito", afirma o desenhista, que tem algumas regras para trabalhar. Uma delas é evitar o celular depois das 18h. Também não é adepto de conversas no WhatsApp e usa o Instagram @lojadosica basicamente para divulgar sua arte.
"Pode até não parecer, mas meu trabalho é muito racional, preciso de tempo para me concentrar", explica. "Eu tenho um caderninho onde fico anotando ideias. Então, quando sento pra desenhar, já está praticamente tudo resolvido na minha cabeça."
Sem desmerecer nenhum tipo de arte ou tecnologia, Sica prefere desenhar com bico de pena. E tem certo afeto por coisas antigas. Como as enciclopédias, por exemplo, que o levaram a criar um trabalho homenageando esse tipo de material.
"Nunca deixei de comprar exemplares em sebos. E, agora, com minha filha pequena, comecei a mostrar algumas ilustrações para ela e a me reconectar com esse universo. Produzir uma enciclopédia demandava um trabalho de pesquisa enorme, com muitas pessoas envolvidas", ressalta.
O retorno a Pelotas também despertou outro tipo de nostalgia. No Instagram, ele vem divulgando gravuras que fazem uma releitura de locais marcantes de sua infância no Areal. "A gente fica velho e essas memórias começam a ficar mais vivas. No meu caso, vão virar quadrinhos - e com diálogos", surpreende.
O projeto sobre o bairro não tem previsão de lançamento, mas Sica pretende soltar dois novos trabalhos ainda este ano. Um deles é um livro "sobre uma cidade" (mas nenhuma específica, assim como Fachadas), que sairá pela Companhia das Letras. O outro, prefere manter em segredo. Mas dá para adiantar que, assim como A Última Enciclopédia, vai agradar os apreciadores de obras com uma identidade visual diferenciada.
 

Parcerias no roteiro

Via de regra, o trabalho do desenhista é solitário. Mas há exceções. Uma delas é o livro Meu Mundo Versus Marta (2021), com roteiro do escritor porto-alegrense Paulo Scott. Os dois se conheceram por meio de Fabio Zimbres, em uma Bienal das Artes.
Da admiração mútua, surgiu a oportunidade de roteirizar uma história mais longa. "Levamos anos para terminar, mas foi muito interessante. Trabalhar com novas leituras e maneiras de enxergar traz um certo frescor para o teu desenho", acredita.
Para o autor de Marrom e Amarelo, Sica é um talento que demanda sensibilidade, criatividade e inteligência de quem ousa interagir com ele. "Fiel à estética que sua obra persegue, ele é um um desses raros exemplos de artistas que, de fato, não fazem concessões. O encontro de nossas linguagens foi um presente que a vida de escritor me deu", elogia Scott.
Já o livro Satã Amigo das Crianças Boas nasceu do fascínio de Sica por uma serigrafia que estava à venda na loja de Allan Sieber, outro reconhecido quadrinista gaúcho. "Tinha lá esse diabo fofinho dando sorvete para uma criança. O Rafael gostou muito, ficou obcecado por ele e propôs fazer esse livro. Então eu escrevi uns versinhos mequetrefes, ingênuos, e lançamos pela editora Veneta. Com texto meu e o maravilhoso desenho dele", resume Sieber.
Sica argumenta que ele e o amigo têm personalidades bem diferentes, mas com vários pontos em comum. "O Allan é um provocador, acima de tudo. Ninguém passa ileso pelo trabalho dele. Achei esse personagem muito interessante e queria conhecer mais sobre. Foi algo do tipo: 'vamos cutucar um pouco as pessoas'", diverte-se. "Mas também pensei que seria interessante falar do diabo de outra forma. Porque tanto o bem quanto o mal estão dentro da gente."
 

"Gosto mais de quadrinhos hoje do que há 15 anos"

Um dos dez capítulos de A Última Enciclopédia, com a temática Mares e rios
Um marco na carreira do artista pelotense foi a exposição O Ordinário Rafael Sica, que em 2018 percorreu as unidades da Caixa Cultural em Curitiba, Fortaleza e Rio de Janeiro. Foram mais de 200 obras expostas, além da mesa Desenhe Errado, um espaço interativo que convidava o público a construir uma história em quadrinhos coletiva. O nome é o mesmo de uma oficina que o artista desenvolvia estimulando os participantes a desenhar, independentemente de suas habilidades.
Ao falar sobre essa mostra - a maior da carreira -, Sica faz questão de valorizar os editais públicos. "Só é possível viabilizar uma exposição desse porte para um desenhista como eu, que poucas pessoas sabem quem é, por conta de políticas culturais como essa", defende.
No entanto, ele reconhece que não será tão simples aprovar outra exposição tão grande, até pela demanda represada nos últimos anos. "Algumas temáticas sociais e políticas ganharam 'caldo' após o último governo e certamente são mais relevantes no momento."
Entre essas questões, ele destaca a importância de valorizar a diversidade. "Quando eu morava em Porto Alegre, ia nas reuniões na Grafar (associação de grafistas) e havia dez desenhistas ao redor de uma mesa. Oito eram homens brancos", lembra. "É por isso que gosto mais de quadrinhos hoje do que eu gostava há 15 anos. A arte se tornou mais representativa. Ganhou em riqueza, em linguagem, em maneiras de contar as histórias."
 

Obras de Rafael Sica

 Ordinário (Companhia das Letras, 2010)
 Tobogã (Narval, 2013)
 Fim: Fácil e Ilustrado Manifesto (Beleléu, 2014)
 Novela (BebelBooks, 2014)
 Fachadas (Lote42, 2017)
 Triste (Lote42, 2019)
 Brasil (Caderno Listrado, 2020)
 Meu Mundo Versus Marta - com Paulo Scott (Companhia das Letras, 2021)
 Ninguém Dormia (Ôzé, 2022)
 Satã Amigo das Crianças Boas - com Allan Sieber (Veneta, 2023)
 A Última Enciclopédia (Caderno Listrado, 2023)
 

*Daniel Sanes é jornalista formado pela Universidade Católica de Pelotas. Já foi repórter e
editor no Jornal do Comércio. Hoje, atua como freelancer.