Grupo Os Tapes foi referência estética e sonora para a música popular gaúcha

Lendário grupo musical Os Tapes vê sua história ser resgatada a partir da digitalização de seu acervo

Por JC

Terres Vieira, Silvio Luis Pereira, Waldir Garcia, Madeira, Dias Pacheco, José Arthur Rebello, José Júlio Prestes. Ao centro, Cláudio Boeira Garcia
João Vicente Ribas, especial para o JC *

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Sulinos e nativos

Para o Estado, Os Tapes representam uma referência estética. Antes mesmo da projeção nacional, investiram na criação e na pesquisa da música latino-americana, indígena e da Costa Doce, indo além dos ritmos e motivos gauchescos. Participaram do festival Califórnia da Canção desde o início e venceram em 1972 com a icônica Pedro Guará, o maior sucesso até hoje.
Na contracapa do LP Canto da Gente (1975), Marcus Pereira ressalta que Os Tapes ligavam-se à América Latina através do som nativo quéchua e guarani. "É a descoberta do elo perdido, é a mão estendida para ampliar a roda da grande ciranda dos povos americanos de cultura latina", escreveu.
Já para o etnomusicólogo Daniel Stringini da Rosa, a trajetória dos Tapes foi essencial para modular o que se reconhece como Música Popular do Sul e segue influenciando cancionistas politizados. Stringini acredita que algumas experiências sonoras foram essenciais para a formação do grupo. Dentre elas, o diálogo com Rogério Duprat, arranjador da Tropicália, já nas primeiras gravações em estúdio.
Nesta reportagem, o Jornal do Comércio relembra momentos marcantes da trajetória dos Tapes, a partir de documentos que compõem o acervo digital e depoimentos de dois de seus integrantes, Claudio Boeira Garcia e Otacílio Meirelles.

Andanças musicais a partir de Tapes

Tapes, 1973. Em pé: Luis Alberto Koller, Cláudio Boeira Garcia, José Cláudio Machado. Agachados: José Waldir Souza Garcia, José Rafael Koller.
É curioso que o nome do grupo tenha sido grafado com acento agudo nos primeiros LPs. A gravadora teria resolvido acentuar a palavra "Tápes" para não causar confusão com a pronúncia em inglês, "teipes". Essa história é contada por Henrique Mann, no livro Som do Sul (2002).
Outra curiosidade recuperada pelo autor refere-se à apresentação de uma música de 25 minutos na primeira Califórnia da Canção, festival que viria a ser o mais importante do Estado. "Ganharam prêmio especial de pesquisa e geraram o estabelecimento de duração para as apresentações no festival", relata.
Aquela foi a estreia, em 1971, com o núcleo fundante, os primos Claudio Boeira Garcia e José Waldir Garcia, ao lado do amigo José Cláudio Machado. Apresentaram Vida, Cisma e Canto de um Farrapo, uma obra "mais curta que uma opereta e mais longa que uma faixa de disco de vinil", constituída por récitas e cantos, na voz de um farrapo que participou da guerra civil e reflete sobre viver bem no mundo.
No ano seguinte, Os Tapes voltaram a Uruguaiana, já com outra formação, e venceram a 2ª edição da Califórnia. Apresentaram três canções, mas a que ganhou foi a milonga Pedro Guará, dos versos inesquecíveis: "Num lamento chegou o minuano/ Anunciando o último inverno".
O reconhecimento gerou uma série de shows pelo Estado. A seguir, em 1974, foram à Argentina conhecer o já importante festival de folclore de Cosquín, frequentado por nomes como Mercedes Sosa, Atahualpa Yupanqui e Jorge Cafruni. Inspirados pelo que viram, realizaram em Tapes o 1º Acampamento da Arte Gaúcha. Vale observar que após meio século, ambos eventos seguem ativos e estão promovendo edições em 2024.
Agora, o festival mais distante do qual Os Tapes viriam a participar seria o Horizonte, em 1979 na Alemanha. Os gaúchos foram convidados para representar o Brasil ao lado de Gilberto Gil e do Quinteto Violado. Na viagem, aproveitaram o intercâmbio com colegas de diferentes partes do mundo.
 

Ideias e resistência

Capa do disco Canto da Gente, do conjunto Os Tapes (1975)
Os músicos d'Os Tapes eram também professores, comerciários, carpinteiros, funcionários públicos, mecânicos. Por acumularem atividades, eram considerados amadores. "Nos organizamos de forma cooperativada para lidar com as demandas de sustentação e infraestrutura do grupo. Nossas atividades públicas, em geral, eram em feriados e fins de semana", relata Claudio.
Porém, o adjetivo "amador" era revertido em qualidade, pois revelava o caráter idealista do grupo, ligado à arte e avesso ao mercado musical. Marcus Pereira, quando entrou em contato com aqueles músicos, lembra que vinham se recusando a aceitar propostas de gravação, até encontrar parceria em sua gravadora: "Os Tapes não estavam interessados em ganhar dinheiro a custa do sacrifício das suas convicções sobre a música popular do Brasil. Como nós também não estamos."
Quando foram a São Paulo, Carolina Andrade recorda que ela mesma dirigia uma kombi alugada para transportar Os Tapes. "A gravadora era pequena e não tinha separação entre produtor, diretor artístico, eu fazia tudo", contou em um programa da rádio Cultura FM.
Carolina ficou impressionada quando soube que eles também eram pesquisadores, principalmente do passado guarani e das Missões. "É claro que eles não eram indígenas, mas é muito bonita a interpretação que fizeram e por isso nós pusemos algumas músicas deste trabalho no LP."
Naquele 1975, além das gravações, Os Tapes apresentaram o espetáculo Americanto, inspirado nas reduções jesuíticas-guaranis dos séculos XVII e XVIII. Sobre as motivações de criar esse show, Claudio revela que desejavam compreender o que aconteceu no passado e lidar com os efeitos desastrosos da violência física e simbólica desencadeada por aqueles processos "de dominação, quebra de resistência e apagamento de conflitos".
Americanto expressa a influência acadêmica e política que permeou a musicalidade do grupo, em um contexto pós 2ª Guerra, de governos totalitários, colonialistas e ditatoriais. "Época de apagamento das tradições racionalistas, humanistas, iluministas, libertárias, sociais democráticas", descreve Claudio. Porém, passados mais de 50 anos do encerramento das atividades d'Os Tapes, o compositor lamenta que continuamos diante de assédios autoritários.
 

Censura

Os Tapes em Berlin (Alemanha) com Gilberto Gil, 1979
Consultando o Arquivo Nacional, na seção de documentos da Divisão de Censura de Diversões Públicas, encontram-se processos de 1982 para aprovação de algumas canções, dos compositores Claudio Boeira Garcia, Otacílio Meirelles e Waldir Garcia. Todas seriam liberadas e entrariam no repertório do terceiro disco dos Tapes.
Para a pesquisadora Camila Padilha Costa, o discurso político nas canções do grupo é sutil. E apesar de não terem sido censurados pelas letras, eram articulados politicamente em uma época de ditadura. "O Claudio viajava bastante, então tinha uma rede de contatos e informações bem grande", afirma. Nos espetáculos, interpretavam autores latino-americanos, da nova canção chilena, por exemplo. "Era como uma forma de trazer essa nuvem política, havia uma identificação", diz Camila.
Sobre o maior sucesso, Pedro Guará, inventaram-se diversas histórias. "Tem gente que acha que era para Che Guevara, ou que o Pedro Guará era um militante que acabou desaparecendo", diz Camila. Já o compositor Claudio, quando questionado pela reportagem, respondeu de forma espirituosa: "Talvez seja mais fácil perguntar para as várias pessoas que ouvi dizer que conheceram Pedro Guará do que para mim mesmo?".
 

Pequeno lugar cosmopolita

Grupo (em fotos dos anos 1980) priorizou a integridade artística
Foi num golpe de sorte, em 1980, que Otacílio Meirelles substituiu a falta de um dos músicos em um show. Acompanhava os ensaios há anos e sabia todas as músicas. Acabou sendo integrante d'Os Tapes, compondo, cantando, tocando violão e viola. Gravou no disco de 1982 e, já nos anos 2000, criou ao lado de Claudio Boeira Garcia as canções do CD Estação das Águas, considerado uma continuidade do trabalho.
Nos anos de ditadura, Otacílio recorda que as atividades dos Tapes não eram totalmente livres. Algumas vezes tiveram que interromper ensaios e adiar apresentações. O músico chama atenção que, até mesmo em pequenas cidades como Tapes, havia "infiltrações policialescas", o que não impedia o turbilhão cultural do Brasil de então. "A condição para ser resistente e forte era criar e participar de tudo, mesmo pondo a liberdade e a integridade física em risco", conclui.
Diante da censura, acredita que Os Tapes empreendiam um modo primário de se levar notícias, através de viagens e shows. "Foi deste modo especial de comunicação que os Tapes se valeram, o boca-em-boca era um caminho seguro e certeiro", avalia.
Assim, enquanto as mídias eram vigiadas, os espetáculos mais interessantes aconteciam longe delas, nos lugares mais simples. Por exemplo, no teatro de 140 lugares que improvisaram numa oficina de carros. Nele, Otacílio lembra de ter ouvido Cálice, de Chico Buarque e Gilberto Gil, três anos antes de ser liberada pela censura, cantada pelo gaúcho Nando D'ávila. "Foi ali que pude conhecer as canções de Violeta Parra, Victor Jara, Daniel Viglietti, Facundo Cabral, Los Olimareños, entre outros, muitos anos antes de chegarem ao Brasil através da mídia", recorda.
 

Folclore

Vila dos Pescadores - Cláudio Boeira Garcia, Jorge Luis Ferreira, José Júlio Prestes, Pedro Dapper e Ronaldo Ramos Linck. Anos 80
"Desde nossos avós víamos e ouvíamos sons de rabeca, estribo de cavalo transformado em triângulo, pandeiro, pequenos e médios tambores com pele de cabras, gaita de botão, violas e violões em especial nas Cantorias de Reis que ocorriam anualmente nas regiões e povoados litorâneos relativamente próximos ao povoado de Tapes". Com esse relato, Claudio informa que, nos anos de formação musical dos fundadores do grupo, havia largo intercâmbio de instrumentos na região. Além disso, confeccionavam flautas de inspiração indígena.
Otacílio reforça que a incorporação desses instrumentos acompanhava o resgate de músicas tradicionais. "O que é de domínio público é muito vulnerável, por estar sujeito apenas às lembranças e ao gosto das gerações, por isso precisa ser resgatado, para que não desapareça", afirma.
O bombo leguero é um exemplo, que o percussionista Luiz Alberto Koller tocava junto ao corpo, à maneira dos tocadores antigos. Koller confeccionava seus próprios tambores, seguindo ensinamentos do velho mestre Pororó, e os levava ao palco nos shows dos Tapes.
De acordo com Otacílio, o bombo leguero era bastante utilizado em serenatas na época, no interior do Estado. "O tocador de leguero no Rio Grande Do Sul é um instrumentista dos primórdios da cultura afro-gaúcha rural, que saiu dos terreiros de umbanda, quimbanda, batuque, e ganhou a cultura popular", acrescenta.
O antropólogo Norton F. Corrêa, pesquisador das manifestações afro gaúchas, hoje professor da Universidade Federal do Maranhão, colaborou muito com Os Tapes, fornecendo informações do trabalho de campo com o Quicumbi e o Maçambique, por exemplo. Otacílio observa que essa musicalidade sempre foi forte, principalmente no litoral, mas, na época, "a música gaúcha que se ouvia no rádio tinha profunda influência europeia".
 

Acervo está sendo disponibilizado na íntegra

Foto da contracapa do LP 'Canto da Gente'
Em 2020, mais de quatro décadas depois da visita de Carolina Andrade, outra pesquisadora chegou àquela (ainda) pequena cidade, para conhecer Os Tapes e levar sua obra para o mundo. A geógrafa Camila Padilha Costa esteve lá no meio da pandemia, a fim de pesquisá-los para seu Mestrado na UNILA.
Encontrou na casa de Claudio Boeira Garcia baús com diversos materiais, incluindo recortes, fitas K7, fotografias. Com a iniciativa, Claudio também acabou se empenhando e passaram a digitalizar tudo para publicar no site ostapesacervo.com.br, desenvolvido por outra Camila, a web designer Camila K. G. Bazetto.
Após o lançamento em 2023, o acervo segue sendo alimentado. A histórica canção de quase meia hora, apresentada na primeira Califórnia, por exemplo, logo será disponibilizada.
Dos dois anos de trabalho conjunto, a geógrafa Camila destaca um dos momentos mais marcantes, quando escutaram uma fita de 1976, de uma senhora de 102 anos, de Osório, que cantava cantigas de maçambique. "A gente não sabia o que fazer, a gente ficou muito emocionado de ouvir aquilo", conta.
Camila preocupa-se com a falta de valorização da memória. "Hoje a gente está num lugar e a gente não sabe o que aconteceu. Está todo mundo sempre na tela e na novidade. No fim, a história da onde a gente vem, a gente não sabe."
 

Pesquisas acadêmicas

Adriano Pinzon Garcia
(PUCRS, Monografia, 2014)
Mídia Impressa e Cultura Regional: o grupo Os Tápes retratado pela imprensa de referência gaúcha e nacional
Camila Padilha Costa
(UNILA, Dissertação, 2023)
Canções Sem Fronteira de Tempo e Língua: percursos afetivos na construção da memória de Os Tapes Acervo
Daniel Stringini da Rosa
(Ufrgs, Dissertação, 2016)
Do Canto da Gente (Os Tápes, 1971) ao Canto Politizado: memória e política na constituição de uma música popular do sul
 

Discografia

1975 Canto da Gente (LP)
1980 Não Tá Morto Quem Peleia (LP)
1982 Os Tapes (LP)
2002 Estações das Águas (CD)
 

* João Vicente Ribas é jornalista, editor da newsletter Canciones para despertar en Latinoamérica.