Tarso Genro e a literatura, um perfil muito além da política

Ex-governador do Rio Grande do Sul tem 17 livros publicados

Por Márcio Pinheiro

Uma das figuras mais destacadas da política gaúcha, Tarso Genro carrega uma intensa e duradoura ligação com a literatura
Embora o personagem deste perfil tenha mais de dois terços de sua vida ligada à política eleitoral e partidária, tendo ocupado alguns dos principais cargos da República - entre eles o de governador do Rio Grande do Sul e o de ministro de Estado em três pastas - o tema central dessa entrevista será uma relação mais antiga e mais intensa: a paixão pelos livros.
Tarso Fernando Herz Genro, 76 anos, advogado e político, carrega desde a adolescência uma forte ligação com a literatura. Na verdade, o vínculo com os livros pode ser até explicado antes mesmo do nascimento, já que os pais de Tarso se conheceram numa livraria, a única que então existia em Santiago na década de 1940. O pai, Adelmo Simas Genro, era professor e cliente do local; a mãe Elly Hertz, era atendente. Ele, nascido lá mesmo, em Santiago, era professor de Português e de Francês; ela, judia de origem alemã, nascida em São Pedro, trabalhava na Livraria Ramos. Casaram-se em 1943 e tiveram seis filhos (três homens e três mulheres). Tarso, nascido em São Borja (onde o pai havia se mudado para lecionar) em março de 1947, foi o terceiro.
Adelmo e Elly seriam também os primeiros influenciadores do jovem leitor. Ele cobrando o estudo, a compreensão e o melhor uso da língua portuguesa. Ela incentivando e indicando leituras. "Quando eu tinha 14 anos e lia algo ligado ao realismo socialista soviético, minha mãe me alertou que, se eu gostava mesmo de ler, deveria começar pelos clássicos", lembra Tarso. "E me deu Guerra e Paz, de Liev Tolstói. Essa leitura mudou minha vida".
Tarso concluiria o primeiro e o segundo graus em Santa Maria, entraria para a Faculdade de Direito na mesma cidade, iria se envolver com a política e - por este mesmo motivo - se veria obrigado a passar uma temporada no Uruguai até que a situação ficasse um pouco menos perigosa. "No Uruguai me aproximei de Jango (o ex-presidente João Goulart, deposto no golpe de 1964) e insistia para que ele conseguisse que eu fosse enviado para o Chile. Queria ficar próximo do que Salvador Allende estava fazendo por lá", recorda Tarso. "Jango dizia que ia conversar com Darcy Ribeiro, mas a viagem nunca saiu", lamenta. "Anos depois descobri que meu pai, em conversas com Jango, implorava a ele que não me ajudasse, que o certo seria eu voltar ao Brasil. Meu pai tinha razão".
 

Entre a imprensa e o Direito

Antes de ser prefeito da Capital e governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro atuou durante anos na imprensa como crítico literário
No começo dos anos 1970, já morando em Porto Alegre, Tarso Genro passaria a advogar e seguiria cada vez mais próximo dos seus interesses literários. Apresentado pelo escritor Sergio Faraco, colaborador do Caderno de Sábado do Correio do Povo, Tarso foi recebido pelo editor, P. F. Gastal, e também se tornou um dos que escreviam regularmente no suplemento cultural. "Tarso e eu pertencemos a uma geração onde era vigente a circularidade entre as diversas áreas do conhecimento. Ele preocupava-se com a literatura e a mim interessava a política, territórios indivisos", avalia o professor Flávio Loureiro Chaves, contemporâneo de Tarso no período de Correio do Povo.
Na nova função, assumida ainda antes de completar 25 anos, Tarso Genro confirmava seu interesse pela literatura e começava a aperfeiçoar o seu gosto por escrever sobre as obras que chamavam a sua atenção, em especial os que despontavam dentro do boom da literatura latino-americana, com nomes como Mario Vargas Llosa, Manuel Scorza, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Juan Rulfo e Augusto Roa Bastos. Eram autores que vinham de regiões próximas, como a Argentina, a Colômbia, o Peru e o Paraguai que despertaram no jovem crítico um interesse ainda maior pelos problemas que uniam a todos os países da América Latina: o colonialismo, o subdesenvolvimento, as revoluções e os golpes.
Como crítico literário, Tarso se inspirava em Georg Lukács (1885-1971). Filósofo e historiador húngaro, Lukács foi especialmente influente, sendo reconhecido como o precursor dos estudos sociológicos da literatura ficcional. Ele adotou uma perspectiva que coloca a obra de arte em seu contexto social e histórico, conceito que Tarso buscava repetir nos seus escritos. "Nossos artigos inseriam-se no Caderno de Sábado sob a benção do P.F. Gastal. Algumas vezes divergimos e isto só nos aprimorou intelectualmente, como na avaliação da ficção latino-americana", reconhece Loureiro Chaves. E completa. "Depois assumimos caminhos diversos, mas nada impediu que dele eu guardasse a lembrança de um humanista de múltiplas leituras. Hoje eu estimaria ter interlocutores como ele".
Em paralelo à atuação na imprensa, Tarso já advogava, atuando em um escritório na Rua Andrade Neves, no Centro de Porto Alegre, onde passou a conviver com outros advogados, como Carlos Araujo - que mais tarde seria deputado estadual e também viria a se casar com a futura presidente da República, Dilma Rousseff -, Victor Nuñez (dono do escritório onde Tarso começaria sua carreira), Werner Becker, Eno Dias de Castro, Ibsen Pinheiro e Gomercindo Coitinho. Na área cultural, Tarso se aproximou dos frequentadores do Clube de Cultura, sociedade criada em maio de 1950 e que reunia intelectuais (muitos deles judeus que moravam no Bom Fim) que se interessavam por debates e pela troca de ideias. Lá Tarso se aproximou de outros parceiros, como o poeta Luiz de Miranda. "Porto Alegre vivia um período de grande efervescência cultural e política", lembra Tarso. "Nos encontrávamos em bares, livrarias, cafés e discutíamos política o tempo todo".
Quase que nesta mesma época, Tarso se aproximou de outro amigo também ligado à literatura, o escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil. "Se há pessoa de que me honro de ser amigo, o Tarso é uma delas. Nosso trato tem quase 50 anos. Foi o primeiro leitor de várias obras minhas, bem como o autor das primeiras resenhas que recebi na imprensa". Assis Brasil lembra com carinho a convivência entre os dois e ressalta parte da obra de Tarso, colocando a poesia do autor em um alto patamar. "É o amigo fiel e solidário a que me acostumei. E altíssimo poeta, como em Luas em Pés de Barro, em que há esses versos: 'O poema não se resume / nem assume o ato / de ser branda coisa / de manhãs e rosas'".
Décadas depois, Tarso e Assis Brasil voltariam a ficar próximos, quando o primeiro se elegeu governador em 2010 e convidou o segundo para integrar seu secretariado e ser o responsável pela pasta da Cultura. Assis Brasil reforça os elogios: "Tarso é brilhante como político e como pensador, transitando com naturalidade pela sociologia, a filosofia, a história e tudo o que diz respeito às Humanidades".
E a política brasileira renderia bons livros, boa literatura? "A política está à espera de grandes escritores, que saibam conjugar os fatos com a universalidade dos acontecimentos", explica Tarso. "Além disso precisaria haver um distanciamento", reconhece ele, ao lembrar que só o tempo é capaz de dar aos fatos a verdadeira dimensão.
 

Leituras mais criteriosas

Enquanto desenvolvia carreira no Direito e se destacava na política, Tarso Genro mantinha a conexão com a produção literária
Leitor organizado e disciplinado, Tarso procura dividir o tempo entre leituras "obrigatórias" - aquelas que ele precisa se atualizar para seguir a vida profissional - com as que lê por prazer. "Na juventude lia quase tudo que caía na minha mão. Com o passar dos anos, fui ficando cada vez mais criterioso".
Os mesmos critérios e a mesma organização, Tarso usa na hora de escrever. Colaborador frequente de blogs, sites e publicações, Tarso admite que o texto já não flui com a mesma naturalidade de tempos passados, nascendo quase sempre de um processo de repetição e de aperfeiçoamento. Escreve no computador, corrige à mão e repassa o texto à secretária depois de exaustivas idas e vindas. Quase sempre o texto final é bem diferente daquele que começou a ser escrito. Quase toda esta atividade é desempenhada no escritório que Tarso mantém defronte ao Parque da Redenção. É neste local, com vista privilegiada de um dos mais belos cenários de Porto Alegre, que Tarso passa a maior parte do seu tempo profissional, recebendo amigos e clientes. "Hoje meu cotidiano é mais tranquilo", comemora. "Virei advogado dos advogados, faço mais consultoria para outros escritórios. Não preciso mais me preocupar tanto com tarefas burocráticas".
Na nova rotina, Tarso pode se dedicar a outros prazeres, como caminhadas, ir a restaurantes ("Vou sempre aos mesmos, onde já me conhecem: o Giuseppe, a cantina do chef Pepe Laytano, e o Bar do Beto"), rever filmes ("ainda me emociono com os filmes do neorrealismo italiano") e ouvir música, setor em que ainda é bem conservador. Na música erudita, Mozart e Chopin ("alegres e melancólicos"); na música popular, Chico Buarque, Zeca Pagodinho, Elis Regina e Frank Sinatra, "que atravessam todos os tempos".
 

A literatura como processo revolucionário

Na literatura latino-americana, Tarso Genro - mais do que García Márquez e Vargas Llosa, os dois nomes de maio relevância - admirava o peruano Manuel Scorza. "Foi quem melhor compreendeu as grandes revoluções camponesas que movimentavam a América Latina e quem mais me ajudou, com seus livros, a entender a conjuntura política do nosso continente", reconhece Tarso.
Nascido em Lima, em setembro de 1928, Scorza - mestiço de pai camponês e mãe índia - foi um romancista e poeta representante da geração do Indigenismo ou Neoindigenismo peruano. Ainda era um jovem escritor no final dos anos 1940 quando se viu obrigado a se exilar após a implementação da ditadura de Manuel Odría. No México, onde viveu por sete anos, completou seus estudos em literatura numa universidade local, passando depois a peregrinar pela América, morando ainda algumas temporadas no Chile e no Brasil.
Sua obra maior se revela em toda sua grandeza nas "Baladas" (ou "Cantares") reunião de cinco novelas (Bom Dia para os Defuntos, Garabombo, o Invisível, Cavaleiro Insone, Cantar de Agapito Robles e A Tumba do Relâmpago) onde são descritas as lutas do campesinato peruano dos Andes Centrais e de como as comunidades da região foram massacradas. Todas as cinco guerras silenciosas - como Scorza as classificava - apresentam-se com conteúdo de fantasia poética e de uma denúncia política e social, como se Scorza andasse pelo altiplano andino testemunhando as lutas dos camponeses rebeldes contra a miséria, as oligarquias e o poder das multinacionais. Ao todo, as obras do autor peruano foram traduzidas para mais de 40 países. "Scorza foi revolucionário sem ser panfletário. O que ele fazia era grande literatura", diz Tarso.
Em 1981, Scorza integrou um grupo de escritores convocados pelo Il Mattino para ir a Nápoles para escrever uma série de artigos sobre uma cidade que depois de um segundo terremoto começava a se reconstruir.
Seu último livro, A Dança Imóvel, fala de um escritor - personagem claramente autobiográfico - que escreve um romance sobre a fuga fantástica de um guerrilheiro guevarista pelos labirintos dos rios amazônicos. Pouco depois do lançamento deste livro Scorza morreria num acidente aéreo em Madri, em novembro de 1983. Tinha 54 anos.
 

"Um escritor precisa ter coragem para desafiar o establishment com genialidade"

Tarso se tornou "mais criterioso" com a leitura com o passar dos anos
Nas respostas a seguir, Tarso Genro faz um resumo da sua trajetória como leitor e crítico literário, elencando as obras que foram fundamentais na sua formação:
1. Qual o seu livro inesquecível?
Os Buddenbrooks, de Thomas Mann, livro que me abriu os continentes do grande romance burguês e do realismo crítico.
2. Qual seu trecho inesquecível?
No livro Vinhas da Ira, de John Steinbeck, o capítulo que abre com "As terras do oeste se agitavam como cavalos antes do temporal".
3. Qual o livro que mais o perturbou?
Memórias de um Revolucionário, de Victor Serge, vigorosa crítica política de princípios contra o stalinismo, vinda de dentro da Revolução Russa.
4. Qual o livro que você gostaria de ter escrito?
Canto para as Transformações do Homem, longo e vigoroso poema de Moacyr Felix, grande poeta brasileiro, pouca valorizado pela crítica tradicional.
5. Qual o personagem que você gostaria de ter criado?
O Capitão Rodrigo, de Erico Verissimo: tipicidade, grandeza, universalidade e coragem.
6. Qual o maior livro da literatura brasileira?
O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, uma obra que une pesquisa histórica, sentimento do mundo e paixão regional sem pieguices.
7. Qual o maior escritor da literatura brasileira?
Escolho três: Erico Verissimo, Graciliano Ramos e Jorge Amado: talento, história e humanismo. Dos três.
8. Qual o livro que você mais relê?
A Antologia Poética, de Carlos Drummond de Andrade, da antiga Editora do Autor. A melhor síntese da obra dele até hoje publicada.
9. Qual o livro mais superestimado que você conhece?
Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. É um belo livro, mas muito superestimado pela crítica. Foi o início do realismo fantástico, não o seu apogeu.
10. Qual o livro mais subestimado que você conhece?
Só um exemplo: Um Quarto de Légua em Quadro, Luiz Antonio de Assis Brasil. Mas tem muitos. Este livro perfeito lançou um grande escritor e foi esquecido.
11. Qual livro merece ser adaptado para o cinema?
As Aventuras de Lucas Camacho Fernandez, de Jorge Furtado, que certamente o será, por motivos óbvios.
12. Qual livro foi adaptado para o cinema e o resultado foi frustrante?
Vício Inerente, de Thomas Pynchon, que é bom, mas fica distante da grandeza noir do livro.
13. Qual o livro que você daria de presente?
A Nova Antologia Poética, de Mario Quintana, da antiga Editora Globo, perfeição editorial e excelentes escolhas.
14. Qual o livro que você gostaria de ganhar?
Qualquer um do João Cabral de Melo Neto, o maior esteta com conteúdo da poesia nacional.
15. Qual o livro que você procura e que nunca encontrou?
Servidão Humana, de William Somerset Maugham, que emprestei não me lembro para quem e nunca voltou.
16. Qual deve ser o maior mérito de um escritor?
Coragem de desafiar o establishment com genialidade.
17. Cite um grande livro de um grande autor?
Guerra e Paz, de Liev Tolstói. O maior de todos, de todos os tempos.
18. Cite um grande livro de um autor pouco conhecido?
La Larga Carretera de Arena, de Pier Paolo Pasolini, doçura e grandeza de um grande poeta e cineasta.
19. Cite um livro que você esperava gostar e que te decepcionou.
Cabeça de Papel, de Paulo Francis. Parece que um ex-trotskista pode ser um bom escritor, mas é raro um mau trotskista tornar-se um bom escritor.
20. Cite um livro que você não esperava nada e o surpreendeu.
La Buena Gente del Campo, de Flanery O'Connor. Uma pequena e genial novela americana.
 

Bibliografia parcial de Tarso Genro

Tarso Genro é autor de vários livros na área de Direito, Política e Literatura. Tem trabalhos publicados na França, Espanha, Turquia, Estados Unidos, Uruguai, México, Peru, Portugal e Itália. É autor de 17 livros, aí incluídas obras de poesia, crítica literária, ciência política, direito do trabalho e ensaios, dentre eles:
Vento Norte (1964), primeiro livro, assinado com o nome de Tarso Fernando Genro
- Luas em Pés de Barro (1977)
- Introdução à Crítica do Direito do Trabalho (1979)
Contribuição à Crítica do Direito Coletivo do Trabalho (1981)
Moçambique a Caminho do Socialismo (1982)
Direito Individual do Trabalho (1985)
Introdução Crítica ao Direito (1988)
Na Contramão da Pré-História (1992)
Crise da Democracia - Direito, Democracia Direta e Neoliberalismo na Ordem Global (2002)
Utopia Possível (2003)
Esquerda em Processo (2004)
O Mundo Real - Socialismo na Era Pós-Liberal (2008)
 

* Márcio Pinheiro é jornalista e escreveu os livros Esse Tal de Borghettinho e Rato de Redação - Sig e a História do Pasquim.