Luisa Geisler, uma escritora em busca de novos espaços

Fascinada pela complexidade dos personagens, Luisa Geisler é nome ascendente na literatura brasileira contemporânea

Por Rafael Gloria

Fascinada pela complexidade dos personagens, Luisa Geisler é nome ascendente na literatura brasileira contemporânea
A escritora Luisa Geisler está de mudança. No final de agosto vai atravessar uma parte dos Estados Unidos de carro com o marido, Guilherme Moritz, saindo de Albuquerque, no Novo México, onde concluiu o mestrado em literatura e cultura brasileira, seguindo para Nova Jersey, onde começará o doutorado em setembro, na prestigiada universidade de Princeton. "Não sei nem reagir ao fato de ter sido aprovada. Um fator positivo é que a minha família sabe o que é. Lembra do (seriado televisivo) Um Maluco no Pedaço? O Carlton Banks tinha o sonho de ir para lá. Se eu falo Universidade do Novo México eles não entendem muito, mas Princeton conta", diz.
Autora de diversos livros, como Luzes de Emergência se acenderão automaticamente e Quiçá, e premiada desde o começo da carreira com dois Sesc de Literatura, Luisa começou a escrever e a publicar muito jovem, já chamando a atenção no meio literário. Acabou se formando em Relações Internacionais, e, depois, fez um primeiro mestrado em processos criativos na universidade de Dublin, na Irlanda. Lá, inclusive, nasceu o livro De espaços abandonados, que mescla cartas, trechos de livros, manuais de escrita, depoimentos e arquivos perdidos em computadores para narrar a vida de uma série de brasileiros na Irlanda.
Luisa diz que a experiência do espaço é instigante desde o começo da carreira. "Sempre foi assim. O fato de eu morar em Canoas e estudar em Porto Alegre, o deslocamento. Muito do meu texto, de 2011 e 2012, foi escrito em chão da Trensurb. Ainda é muito importante isso de uma cidade que conversa com a outra, e de como elas também determinam os personagens", comenta. Ela diz que, se tivesse que citar um tema recorrente em tudo o que faz, é a sensação de desencaixe, do entre-lugar. "E há várias camadas. Aqui em Albuquerque tem uma população gigante que fala espanhol, e eu não falo, mas também sou latina. Agora em Nova Jersey vou ser 'outra latina', porque eu tenho sobrenome italiano, e lá tem muito italiano. Então, a identidade nunca está exatamente fixa, e essa sensação entra também com a minha bissexualidade. A identidade não é estática, é móvel e muda conforme a posicionalidade de onde estamos e de como somos lidos pelas pessoas", reflete. Ela diz que só resolve esses "desconfortos" na literatura.
O escritor Samir Machado de Machado admira o trabalho de oralidade na escrita de Luisa. "Não é algo fácil de fazer, ainda mais quando esses registros orais variam dentro do próprio romance. Escrever do ponto de vista de uma criança e fazer ela parecer de fato uma criança, e não uma criança falando como adulto, por exemplo. Ou dar vozes próprias a diversos adolescentes, narrando em primeira pessoa, tornando cada um distinguível. Luísa consegue escrever jovens em narrativas adultas, e variar o registro para escrever também jovens em narrativas para jovens. É um trabalho de linguagem que acho fascinante, e que faz todo o sentido quando descobri que ela relê religiosamente Grande Sertão Veredas todo ano", comenta.
Natalia Borges Polesso também é admiradora da literatura de Luisa, e brinda a amizade que elas mantêm. "Ela tem uma capacidade incrível de ser simples e complexa no que ela escreve, e isso me toca muito. Ela é ótima em escrever cenas, e tem um humor que me agrada muito, talvez a gente até seja meio parecidas nisso. O trabalho dela para mim é um refresco na literatura contemporânea brasileira. Além disso, a Luisa é muito atenta, não só aos movimentos da literatura, mas também como amiga, com indicações de leitura e conversas", diz.
Luisa está feliz por continuar pesquisando e se aprofundando ainda mais na literatura e na escrita. "É meio que um sonho. É um dos melhores departamentos de português e espanhol do mundo. É um lugar onde a minha pesquisa tem chão pra ir", diz. Ela pretende estudar a literatura contemporânea latino-americana e a herança temática dos anos 1960 entre autoras mulheres, principalmente entre Argentina, Uruguai e Brasil. "Então, por exemplo, pensar a Lygia Fagundes Telles com a Natália Borges Polesso ou Ana Paula Paula Maia. Ou, ainda, entre Silvina Ocampo e Mariana Henrique. O meu argumento seria de que há uma herança. A pesquisa ainda não começou, mas esse é o meu chute."
 

Livros construindo caminhos

Nascida em Canoas em 1991, Luisa Geisler conta que sua mãe é militar e por isso cresceu na base área da cidade, onde ficou até cerca de dez anos. "Lá tem essa questão também das patentes. Então, as pessoas não eram só pessoas, elas eram cargos. Tinha isso de manter a ordem. Era um mundo literalmente muito igual. Todas as casas são padronizadas. A literatura veio também como uma maneira de se relacionar com um mundo que não entendia", revela. Ela começou a ler muito cedo e, em algum momento, isso virou um traço de sua personalidade.
Na escola Cristo Redentor, em Canoas, Luisa lembra de se conectar com um grupo de amigas que se emprestavam livros. "Eu era uma máquina de ler, mesmo sem necessariamente entender tudo o que lia", diz. Então, já no ensino médio, começar a escrever foi algo natural. Primeiramente vieram as fanfics, depois partiu para construir as próprias histórias. Saindo do colégio, ela só sabia que gostaria de continuar escrevendo. "Eu não queria fazer jornalismo, porque tinha que trabalhar com a verdade. Eu me levava muito a sério, não vou mentir. Era uma pessoa mais séria naquele momento do que agora", diz. Acabou cursando por um período o curso de Letras, na Unisinos. Mas foi quando entrou para a Oficina do escritor Luiz Antonio Assis Brasil que as coisas começaram a mudar.
Luisa lembra de se sentir um pouco intimidada. "Todo mundo ali tinha uma qualificação maior do que a minha. Eu não tinha faculdade ainda, tinha dezenove anos. Hoje eu olho e penso: o que eu estava fazendo? Mas na época foi uma afirmação importante para seguir em frente. E o Assis foi essencial, não só em em feedback dos textos, mas em dar mostras de como ele acreditava em mim", afirma. O autor de Concerto Campestre recorda que ela foi a aluna mais jovem que já teve. "E de vocação mais precoce também, com textos que espantavam os colegas e a mim. Tudo o que ela escrevia era original, tudo era novo e surpreendente. E sua presença em aula mantinha-se discreta, e quase envergonhada, como se não acreditasse em si mesma. Desde logo todos viram que havia, com ela, uma longa e sólida carreira, o que o tempo confirmou", diz. E foi na oficina que ela ficou sabendo, por meio de uma colega, sobre o prêmio Sesc de Literatura.
Então, ela enviou o que se tornaria o Contos de Mentira, vencedor da premiação em 2011. "É um livro que eu tenho muito afeto. Mas hoje eu gosto de metade dele. Tem textos ali que eu aprecio ainda hoje e que eu consigo ver uma visão autoral, uma vontade de fazer coisas que eu ainda faço", diz. Enquanto fazia a turnê do livro de contos, Luisa começou a escrever um romance, que se tornaria Quiçá, ganhador do prêmio Sesc de 2012, agora na categoria romance, tornando-se vencedora da premiação em dois anos seguidos. "Pensando hoje sobre o Quiçá, não é meu livro favorito, mas gosto dele, dos personagens. A estrutura é super complexa, com flashbacks entrecortados, é ousado. Por outro lado, acho que há uma edição que poderia ser melhor feita, ter sido revisado com mais calma. Mas, enfim, a gente sempre gosta mais do último, né? Não me envergonho, e acho que não me envergonhar já é bom", comenta. Quiçá vai ganhar relançamento em 2024, pela Companhia das Letras.
Luisa costuma falar que, se não fosse o prêmio Sesc e a participação na oficina, não teria sido escritora. Olhando agora para aquele momento em que sua carreira acelerou, ela reflete sobre as principais mudanças. "São pouco mais de dez anos desde a primeira vez que publiquei e eu acho o meu texto ainda muito parecido. Se ele modificou, talvez tenha sido para atingir melhor uma intenção. Mas em termos pessoais as mudanças foram grandes", diz. Muito nova, ela diz que começou tímida e sentia que precisava demonstrar conhecimento. "Agora eu já tenho muito mais experiência e segurança. E é um universo que é determinado por homens mais velhos. Então, eu estava sempre na defensiva, e não acho que fiz mal, porque tinham muitas pessoas com outros interesses que não eram literários, e sim coisas como hype de ser muito nova, etc. E isso também foi antes do (movimento denunciando assédio contra mulheres) Me too. Então, ao longo do tempo, fui me soltando mais, aprendendo e me tornando mais confortável na posição de escritora ", resume.
 

Detalhes complexos

Pensar na complexidade do personagem é fundamental para o estopim da escrita de Luisa Geisler. "Os meus personagens estão sempre com essa sensação de não estar no lugar certo, na hora certa. Há sempre algo meio desencaixado", analisa. Dando o exemplo do livro Luzes de Emergência se acenderão automaticamente, de 2015, ela conta que precisa pensar em uma jornada para seus personagens. Nesta obra, Henrique conta em cartas o seu cotidiano para o amigo Gabriel, que está em coma. A partir disso, a história vai se desenrolando e vamos descobrindo mais sobre os personagens. "Eu gosto de ter uma ideia de coisas acontecendo. Porque, senão, meu personagem vai ficar sentado monologando, sabe?", diz. Segundo Luisa, desse modo também fica mais fácil de explicar sobre o que será o livro, porque o que é uma ideia abstrata começa a ganhar narrativa e enredo a partir das ações.
O escritor Tobias Carvalho, autor de As Coisas, comenta que o texto da autora opera em um mundo à parte no universo da literatura contemporânea. "Em vez de priorizar ou a linguagem ou a narrativa, ela fica bem no meio: sempre tem um pouco dos dois no texto dela. O que eu mais admiro é o seu comprometimento com o próprio projeto, fiel às próprias piras literárias. E acho que essa costuma ser a marca dos melhores autores", diz.
Muito desse comprometimento pode ser visto no cuidado do processo de criação de Luisa. "Meu processo é de bastante convivência com os personagens. Eu gosto de fazer longos questionários, talvez eu tenha, sem brincadeiras, umas quinhentas perguntas que respondo sobre o personagem. Desde qual é o signo dele, se tem algum trauma, qual pet, até tipo: quais vídeos ele assiste no Youtube? E então, crio uma playlist nessa plataforma com os vídeos que ele vê", diz. "Todo esse processo não importa necessariamente para o texto, de jeito nenhum, ou nem tudo vai entrar. Mas importa para mim, como autora, para eu sentir que ele é familiar", diz.
Luisa começa a escrever quando já tem uma noção de enredo. "Especialmente, se eu já sei o final, ou para onde a história vai, assim, eu posso me botar no trilho. Eu sou muito expansiva nesse momento. Eu acho que eu só tenho dois minutos de brilhantismo por dia. Então, o que eu tenho que fazer é produzir a ponto de chegar nessas frases. Aí eu as localizo e elas vão para um local importante. Então, eu sou muito a favor de escrever para 'nada'. Muito do que eu escrevo está na gaveta e tem que ficar na gaveta. Por exemplo, De Espaços Abandonados tinha originalmente 600 páginas, e eu comento isso com as pessoas, e elas perguntam se vai ter alguma versão estendida. E eu digo que não, porque o livro tem 400 páginas. As outras duzentas eram várias outras coisas… Nem tudo que é escrito tem que ir para algum lugar."
 

Uma experiência insólita

Em 2020, Luisa foi autora ao lado de Natalia Polesso, Samir Machado de Machado e Marcelo Ferroni do livro Corpos Secos, que acabou recebendo o prêmio Jabuti, de romance de entretenimento, no ano seguinte. Na obra, uma pandemia assola o Brasil, transformando o território em um verdadeiro cenário pós-apocalíptico. Vários personagens acabam se cruzando, em busca de um lugar seguro. O livro foi lançado, coincidentemente, quando a pandemia de Covid-19 começou a chegar com força no Brasil.
Luisa conta que nunca tinha se imaginado escrevendo uma obra desse tipo. "Aí surgiu a ideia do Marcelo e eu comecei a pensar que poderia fazer e o que me pegou foi o Murilo, que é o meu personagem, essa possibilidade de escrever um livro com um personagem que é uma criança", diz. E aquela ideia começou a crescer. "No Corpos Secos, eu queria essa violência pessoal. Todos os meus livros têm essa violência que tem a ver com quem você é. Então, eu meio que virei quase embaixadora do projeto, porque fui catando gente que eu achava que escrevia bem e que poderia funcionar para o projeto. E o nome do Samir e da Natália acabaram se tornando muito óbvios por uma variedade de motivos", diz.
Para Samir Machado, a experiência foi riquíssima. "Pelo modo como desenvolvemos uma estrutura que nos permitisse escrever sem grandes interferências uns dos outros e, ao mesmo tempo, manter tudo interligado. Eu lembro ainda hoje da reunião que fizemos no apartamento da Luísa, pois na época o Skype só aceitava um número limitado de conexões. E saindo dali, passei na frente de um posto de saúde com vários cartazes de aviso de gripe e outras doenças, bati fotos, mandei para o grupo, e várias ideias começaram a nascer", conta. Marcelo Ferroni, que já tinha editado Luisa em Luzes de Emergência e De Espaços Abandonados, diz que em Corpos Secos foi criada uma relação curiosa. "Tanto ela quanto eu desempenhamos o papel de 'autor' e 'editor' ao mesmo tempo. Ou seja, eu continuo a editar seu texto, mas ela disse que agora pode se vingar e me editar de volta", completa. Atualmente, eles estão trabalhando na escrita da continuação de Corpos Secos.
 

Censura à capivara

Em 2019, Enfim, Capivaras, voltado para o público jovem, foi censurado na Feira do Livro de Nova Hartz. A alegação era a de que a obra continha linguajar inadequado. "Me lembro que foi bem ruim. Me cancelaram no evento e eu postei no Instagram que não estaria mais lá, e alguém me mandou um vídeo do vereador que começou com isso. Foi muito traumático no sentido que foi invasivo, uma personalização de um problema que não era meu", diz. Na época, o caso repercutiu em vários lugares do Brasil, gerando críticas à decisão.
Narrado durante as doze horas de uma noite com segredos e romances mal resolvidos, o livro explora, através de diferentes pontos de vista, os relacionamentos entre um grupo de adolescentes em busca de uma capivara. Luisa diz que os personagens falam como adolescentes, usam gírias e palavrões, se xingam, como em situações da vida real. "Se transformou em uma perseguição vazia, que o sujeito estava muito mais interessado em ganhar uma mídia do que de fato proteger alguém de alguma coisa." O caso de Luisa entrou no mapeamento do Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (Mobile), que vem mapeando diversos casos de censura e tentativas de cerceamento.
Luisa diz que, como muitos dos seus outros livros, ele traz personagens que se sentem fora de lugar. "Quando eu pensei que ele poderia dar problema, nunca pensei que poderia ser por questão de palavrão. É um livro super queer, que fala sobre relações de poder, de personalidade, de entender a sua sexualidade. Acontece que há muitas pessoas que nem sabem o que é publicado neste segmento young adult. Eu leio muito, especialmente porque também traduzo, então, sei que essas palavras e esses assuntos estão aí o tempo inteiro. Falam de suicídio, câncer, o que é bom, porque esses temas não surgem quando se faz 18 anos."
Perguntada se o acontecimento mexeu com a sua relação com o livro, Luisa diz que mexeu mais na relação com o público. "Eu me dei conta de coisas que eu já sabia que aconteciam. Especialmente quando se fala com os mais jovens. Mas não mudou a minha relação com o livro. As pessoas me associam a uma capivara e isso é muito legal. Ele tem um cuidado especial, uma produção editorial bonita. Então, ninguém vai me tirar isso", finaliza.
 

Carreira em tradução

Luisa diz que começou a trabalhar com tradução quando percebeu que poderia transformar a literatura em uma carreira. “Antes disso, eu tinha a ideia de prestar um concurso e escrever paralelamente. Mas fui percebendo que a literatura é um negócio que vinga. Se trabalha como um condenado, mas é possível”, diz. Ela já esteve envolvida em diversas traduções, também de livros clássicos como A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell.

Uma experiência marcante foi na obra Destransição, Baby, da autora estadunidense Torrey Peters, publicada no Brasil em 2021. Trata-se de um romance sobre três pessoas – trans e cis – cujas vidas colidem quando uma gravidez inesperada as força a confrontar seus desejos mais profundos sobre gênero e parentalidade. “É sobre esse drama da destransição, uma relação muito forte com a corporalidade, o que é ser mulher, o que é ser homem. E também foi um livro super difícil na época para traduzir, pela terminologia queer e LGBT, que no Brasil é diferente do que a dos Estados Unidos”, explica.

Na época, então, ela foi atrás de conversar com especialistas no assunto, além de pessoas do movimento queer e indivíduos trans. E também entrou em contato com a própria autora, uma experiência que nunca tinha feito. “Fiz amizade com ela, tivemos várias conversas sobre as diferenças de debates na área entre os dois países. Daí tu vê todo o cuidado necessário com a linguagem. Passamos também por uma leitura sensível depois. É um livro que ficou muito interessante por isso. Senti o papel da tradutora realmente: de ter uma comunidade, e de ter a noção de que eu fiz o melhor trabalho que eu podia nesse debate. E eu aprendi um monte também”, relata.

Livros de Luisa Geisler

- Contos de Mentira (2011)
Editora Record
- Quiçá (2012)
Editora Record
- Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014)
Editora Alfaguara
- De espaços abandonados (2018)
Editora Alfaguara
- Enfim, capivaras (2019)
Editora Seguinte
- Corpos Secos (com Samir Machado de Machado, Marcelo Ferroni e Natalia Borges Polesso - 2020)
Editora Alfaguara
 

* Rafael Gloria é jornalista, mestre em Comunicação (Ufrgs) e editor do site Nonada Jornalismo.