Projeto científico da Apple sofre críticas metodológicas

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Com a promessa de "revolucionar os estudos em saúde" e "transformar a medicina para sempre", a Apple lançou, na semana passada, a plataforma ResearchKit, que permite a criação de aplicativos para a coleta de dados científicos por meio de um iPhone.
Até agora, cinco aplicativos já foram lançados graças a plataforma, todos nos Estados Unidos. Desenvolvidos em parceria com centros de pesquisa, eles vão investigar sobre doenças cardiovasculares, asma, diabetes, Parkinson e câncer de mama.
Vários pesquisadores, porém, fazem ressaltas quanto à representatividade da amostra e quanto à questão da privacidade dos usuários.
Os usuários que aceitarem fazer parte dos estudos devem alimentar os aplicativos com informações sobre o estilo de vida, além de responder perguntas e, em alguns casos, fazer testes. Os dados serão transferidos aos pesquisadores.
Na Universidade Stanford, Califórnia, o lançamento do aplicativo MyHeart Counts foi considerado um sucesso. Em onze dias, 30 mil pessoas já se inscreveram para serem voluntárias de um estudo sobre saúde cardiovascular e atividade física.
"É um recorde mundial de participação em tão pouco tempo", disse à Folha Alan Yeung, cardiologista e pesquisador da universidade.
Stanley Shaw, pesquisador do Massachusetts General Hospital e um dos idealizadores do GlucoSuccess, para o estudo da diabetes, acredita que a pesquisa via iPhone vai democratizar o acesso da população à ciência e propiciar trabalhos mais detalhados.
"Tradicionalmente, coletamos dados com questionários de dez páginas, com perguntas do tipo, 'Quantas vezes você toma leite durante a semana?' Com o aplicativo, podemos ter cada refeição documentada", afirma.
Em pouco mais de uma semana, 4.000 pessoas se inscreveram. "Podemos criar um banco de dados sem precedentes sobre estilo de vida e controle da glicose", afirma  Shaw.
A Apple ajudou no desenvolvimento desses primeiros aplicativos. Mas agora, como o ResearchKit tem uma estrutura de software de código aberto, qualquer cientista pode criar uma aplicação. Ainda não há previsão de trabalhos no Brasil.
Apesar de possibilitar a participação de mais pessoas em uma pesquisa, a amostra de usuários de iPhone não seria representativa da população, segundo o médico epidemiologista Cesar Victora, professor emérito da Universidade Federal de Pelotas e professor visitante nas universidades de Harvard e de Oxford.
"É uma amostra enviesada, composta de pessoas mais ricas, que têm iPhone, e mais jovens, que gostam de usar aplicativos. Em termos científicos é uma amostra completamente furada", afirma.
Para Carolina Mendes Franco, especialista em bioética do Núcleo de Inovação Tecnológica da Escola Nacional de Saúde Pública, a ferramenta deve ser usada com cautela.
"Não se pode deixar de lado a segurança que os estudos científicos têm hoje. O aplicativo tem que passar por um comitê de ética, o participante deve ter consciência do termo de consentimento e saber o que serão feitos com as suas informações", afirma.
A Apple garante que os dados dos usuários ficam ocultos e são preservados. "As mesmas críticas ao estudo com um aplicativo podem ser feitas a qualquer pesquisa. Em um estudo tradicional os participantes são selecionados geograficamente, têm recursos para vir a um centro de pesquisas e também não representam a população em geral", diz Ray Dorsey, da Universidade de Rochester, um dos idealizadores do mPower. Segundo ele, há uma preocupação em tornar o aplicativo mais acessível.
Para Alexandre Chiavegatto Filho, professor de estatísticas de saúde da Universidade de São Paulo, a pesquisa com aplicativos e dispositivos móveis é uma tendência sem volta.
"Isso tem tudo para ser o grande motor da ciência no século 21. É claro que vão ocorrer escândalos de privacidade e outras polêmicas. Mas temos que conscientizar as pessoas dos benefícios, apesar dos problemas. O uso do 'big data' na saúde vai poupar dinheiro e melhorar a qualidade dos estudos."