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Shakespeare continua fascinante
Teatro, com Antonio Hohlfeldt
A data de 1623 é muito importante para a própria existência da obra dramatúrgica de William Shakespeare. É que, naquele ano, sete anos decorridos da morte do dramaturgo, foi editado o chamado First Folio de sua obra, iniciativa dos atores John Heminge e Henry Condell, que haviam feito parte de sua companhia. Os impressores foram William e Isaac Jaggard, que já possuíam experiência de impressão de textos dramáticos; Edward Blount organizou as cerca de 900 páginas da obra reunida, entre 1622 e 1623. As cópias eram vendidas a uma libra cada, e o primeiro comprador teria sido Edward Dering, um nobre de Kentish. Graças a esta edição, pelo menos metade da obra de Shakespeare foi salva - melhor, salvou-se o próprio sentido de 'conjunto de textos', ou seja, a 'obra' de Shakespeare foi salvaguardada para as futuras gerações. E este fólio que permanece a grande referência até hoje, contendo, dentre outros, o texto de Macbeth a que assisti no The Globe, no final de setembro.
A temporada deste ano inclui montagens de Sonhos de uma noite de verão, Comédia dos erros, As you like it e Macbeth, esta, na versão assinada por Abigail Graham, que já dirigira, para o mesmo The Globe O mercador de Veneza e traz boa experiência em espetáculos musicais, tendo também assinado uma versão de A morte do caixeiro viajante, de Arthur Miller.
Como no antigo teatro grego, quem vai assistir a um espetáculo de William Shakespeare está cansado de conhecer seu texto. A questão é, pois, como o realizador vai ler/atualizar o texto a ser apresentado. No caso específico do The Globe, temos um elemento estrutural já pré-organizado: estamos diante de um palco que conhecemos como formato elisabethano, cuja parte frontal avança sobre a plateia, que se coloca, como antigamente, de pé, a seu redor. A novidade é que o teatro agora dispõe de um equipamento que permite a cadeirantes ficarem bem junto ao palco. Mais que isso, não há cortinas: a cena está aberta e o cenário ali está disponível, no caso, um grande ramo de árvore, prateado, caído no chão e que, quando se inicia o espetáculo, é içado para o alto por um cabo, ali permanecendo até o final. Aliás, esta é uma falha: o ramo não tem qualquer função dramática no espetáculo, para além da referência à floresta de Dunsinane no texto original. Nem mesmo no final da encenação o grande ramo recebe qualquer utilização.
Lembremos, contudo, que o teatro da época de Shakespeare era para ser ouvido. Elementos cenográficos eram apenas alusões, referências distantes, como fica claro no prefácio de Henrique V, quando Shakespeare propõe um acordo com o público, para que "imagine" que três soldados são um exército, que um ramo de árvore significa a floresta e assim por diante.
A inovação, pois, reside na atualização do figurino e numa contextualização do enredo que pressupõe as atuais crises ligadas à Covid ou à deterioração do meio ambiente. Certamente Shakespeare escreveu a tragédia a partir de um sem número de regicídios ocorridos na França, na Espanha e na própria Inglaterra, mas havia também as disputas religiosas, sobretudo depois que o Papa Pio V excomungara Elisabeth. Talvez o episódio de maior repercussão foi uma tentativa de explodir o Parlamento, inclusive com todos os Lordes e o próprio rei James VI, que sucedeu Elisabeth, ocorrido em 1603 (Macbeth é de 1606). No caso de Macbeth, contudo, é a ambição pelo poder que comanda as ações do casal, sobretudo de Lady Macbeth, extraordinariamente personificada em Matti Houghton, que, na famosa cena em que ela tenta em vão lavar as mãos, chega a ser aplaudida em cena aberta (na presente versão, Lady Macbeth encontra-se em um hospital psiquiátrico). Macbeth, por seu lado, é interpretado por Max Bennett, de larga experiência dramática. A encenação tem como principal mérito equalizar as qualidades de cada intérprete, embora, pessoalmente, tenha me chamado a atenção Joseph Payne, que vive Malcolm, e que estabelece enorme empatia com o público. A destacar, ainda, a presença de crianças em cena, os filhos dos aspirantes ao trono, como o filho de MacDuff. Nestes casos em que as crianças são impiedosamente assassinadas, Graham optou por um tratamento bastante realista, que provocou reações emocionadas do público.
O espetáculo dura cerca de duas horas e 30 minutos, com um único intervalo. E, sim, por mais que conheçamos o texto, que saibamos o desfecho, que tenhamos posições a respeito de cada uma das tramas, um texto de William Shakespeare continua nos fascinando. Quando ocorre no próprio palco do The Globe, então, o leitor bem pode imaginar...