Meretrizes, nos rastros de Augusto Boal

Por Antonio Hohlfeldt

Augusto Boal, em Teatro do oprimido, justifica que a responsabilidade social e ética do artista do palco deve levá-lo a um tipo de espetáculo capaz de denunciar as contradições da sociedade em que vive. O grupo Gompa de teatro tem financiamento do Pró Cultura do RS, o FAC, para projetos de artes cênicas, dentre outros, o que resultou neste Meretrizes, apresentado no aconchegante espaço do Teatro Olga Reverbel, do Multipalco, com ingressos gratuitos.
O projeto vem assinado por Camila Bauer e Liane Venturella - a primeira assina a direção do espetáculo, a segunda é a intérprete solo do mesmo - e mais Juliana Volkmer, pesquisadora cujos vídeos postados no YouTube sobre o teatro no Rio Grande do Sul são sempre elucidativos do passado. As três desenvolveram, ao longo de meses, pesquisas junto a profissionais do meretrício, de rua ou não, em nossa cidade. Assim, ao final do espetáculo, de cerca de uma hora de duração, temos a participação de duas destas personagens: Soila Mar, que inclusive ajudou a formar o sindicato que reúne estas profissionais, e Paula Assunção, que trabalha através da internet. Ambas, além de Monique Prada, serviram como consultoras para o roteiro do espetáculo, que tem ainda a participação ao vivo da pianista Catarina Domenicci que faz, ao mesmo tempo, uma personagem no desenvolvimento do roteiro apresentado.
A intimidade do espaço do Teatro oficina Olga Reverbel certamente ajuda muito à efetividade do espetáculo. Talvez o formato de arena pudesse colaborar ainda mais. Mas o público, recepcionado por Liane Venturella, no papel de uma antiga profissional, agora cafetina, proprietária de um bordel, conhece um pouco a história das personagens, sendo que cada uma delas é, de certo modo, a síntese de umas tantas que a pesquisa foi identificando. Elas andam pelas ruas da cidade, nas nossas praças, talvez anônimas e quase invisíveis para quem transita apressado. Mas elas sabem identificar potenciais fregueses e estes, a elas. É a partir desta relação, nada romantizada, dramática mas não trágica, que se apresentam os depoimentos transformados em cenas teatrais, que revelam sobretudo personagens humanas, devidamente personificadas individualmente pela atriz.
O projeto desenvolvido pelo grupo é, evidentemente, de extrema importância. O espetáculo que resulta da iniciativa certamente ajuda a desmistificar as personagens envolvidas. Mas, acima de tudo, evidencia a potência do teatro, enquanto arte, para dialogar com o publico e para trazer ao debate temas fundamentais da sociedade. É bom lembrar que o tema, direta ou indiretamente, aparece no teatro desde a época grega, bastando referir a comédia de Eurípides Lisístrata, em que as mulheres, afim de levar os homens a buscarem a paz, fazem uma "greve de sexo", ponto de partida de um hilariante enredo. No caso do grupo Gompa, a novidade é tocar, documentalmente, num contexto que está normalmente bem próximo dos nossos olhos, mas que tanto nós quanto as autoridades preferimos ignorar, quando não eliminar. O que abre caminho para explorações e irregularidades, como a violência física e sexual que essas mulheres sofriam, até pouco tempo atrás, tanto da polícia civil quanto da militar.
A produção de Meretrizes é teatralmente muito bem cuidada, o que é um acerto. Afinal, e apesar de tudo, estamos diante de um espetáculo de teatro e, como tal, deve apresentar preocupações estéticas, sem o quê deixa de ser um espetáculo de teatro. A iluminação e a videografia de Isabel Ramil, neste sentido, têm uma importante função, presentificando alguns aspectos da narrativa. Iniciada num tom mais leve e brejeiro, marcado pela malícia e a anedota, o espetáculo gradualmente vai se centrando e focando em seus objetivos, de modo que, quando chegamos à sua parte final, em que se abre o diálogo com a plateia e se apresentam, como convidadas, duas das consultoras da produção, atingimos um outro momento do espetáculo, em que o debate e o exercício da fala e escuta se tornam fundamentais. Há muitos anos, o Teatro de Arena chegou a apresentar alguns espetáculos de "teatro jornal", como se dizia na época. Hoje, a realização de um trabalho como este, com cuidadoso acabamento e evidente qualificação estética, mostra que o teatro continua vivo e vinculado, umbilicalmente à vida social.