Interpretação soberba

Por Antonio Hohlfeldt

Clive Staples Lewis, ou C. S. Lewis, foi um ficcionista produtivo, com bastante sucesso de público, bastando mencionar-se os inúmeros volumes de As crônicas de Nárnia. Amigo pessoal de J. R. R. Tolkien, de quem era entusiasmado leitor, convenceu-o a publicar seus romances, como O senhor dos anéis. Em algum momento, o irlandês de 1898, que era ateu, por influência de Tolkien e por algumas obras de G. K. Chesterton, converte-se ao catolicismo.
O encontro entre Sigmund Freud e C.S. Lewis é uma ficção desenvolvida em livro pelo psiquiatra Armand M. Nicholi Jr., obra adaptada ao teatro por Mark St. Germain. O dramaturgo também é autor de Dancing lessons (2014): creio não errar que a mesma foi traduzida e encenada no Brasil, tendo eu a assistido em São Paulo.
A última sessão de Freud escolhe uma data específica: o dia em que, em 1939, a Inglaterra decide entrar na Segunda Grande Guerra. Mais que isso: Freud, exilado em Londres, depois de ter sido salvo do nazismo abandonando Viena, de onde certamente seria levado para um campo de concentração, acha-se com um câncer terminal na boca, permitindo que apenas Ana, sua filha também psiquiatra, cuide dele e toque nos aparelhos que ocupam a cavidade bucal e que sangram permanente e abundantemente. A escolha destes dois detalhes não é casual: os dois intelectuais, um firmemente ateu - Freud - e outro convertido - Lewis - permite ao dramaturgo colocá-los numa espécie de deadline, literalmente e sem qualquer trocadilho. Durante a encenação, inclusive, há um falso alarme para a colocação de máscaras contra gases e, depois, um episódio em que as sirenes tocam, antecipando um provável ataque aéreo dos alemães contra Londres: evidentemente, esta é uma licença histórica e dramática, eis que tais ataques ocorreriam apenas um pouco depois destes momentos iniciais da guerra. Seja como for, ouvir o rádio em que se divulgam as informações sobre a guerra iminente, interromper a conversa por força do sangue que invade sua boca, ou correr, de um lado para o outro, sem atentar onde se encontram os abrigos antiaéreos são os momentos de tensão e de interrupção do debate principal entre os dois personagens-cientistas, que se digladiam em torno da existência (ou não) de Deus.
Os dramaturgos norte-americanos têm uma larga experiência neste tipo de texto dramático, e a fórmula não é muito diversa de um para outro espetáculo: os debates teóricos, algumas anedotas, algum sarcasmo e pronto, a receita funciona. Neste caso, o fato de um dos personagens ser Sigmund Freud parece ter atiçado a curiosidade do público. Programada para três sessões, no Theatro São Pedro, a peça acabou recebendo cinco sessões, absolutamente lotadas, com um público que ultrapassou as 3 mil pessoas, um fenômeno, sem dúvida, mas que, segundo o ator e co-produtor Odilon Wagner, vem ocorrendo em todas as cidades onde se apresentam.
O texto tem um grande achado: Lewis havia atacado fortemente a Freud em um texto que Freud alega não ter lido, embora informado sobre ele por amigos. Freud convida o irlandês para visitá-lo mas logo o encontro transforma-se numa espécie de sessão psicanalítica, em que a ironia de ambos permite tiradas hilárias e provocadoras. Ambos parecem estar fora do mundo, e daí o contraponto da guerra ser um mecanismo inteligente, por parte do dramaturgo. Aliás, ambos os personagens reconhecem que estão discutindo temas filosóficos e teológicos como se as questões mais terra-a-terra não os preocupassem, o que seria mentira, bastando ver suas reações diante dos ataques hipotéticos dos nazistas à capital inglesa.
O que encanta a todos, porém, acima de tudo, é a interpretação inesquecível de Odilon Wagner para Freud. Ele introjeta o personagem de tal modo que até os trejeitos de quem carrega um mecanismo estranho na boca, e por ele se sente agredido e ferido, acabam sendo incorporados. Contracenando com ele, Cláudio Fontana vive Lewis, mas funciona apenas como um apoio para a encenação de Wagner.
Outro destaque é o cenário de Fábio Namatame. Nada de bibliotecas de mentira. Os armários, prateleiras, livros e estatuetas, tudo verdadeiro, viajaram todos até Porto Alegre. Levando em conta que a produção não tem qualquer subsídio... Que bom que, ao menos, a bilheteria e os aplausos os tenham recompensado, de tal modo que pretendem retornar no próximo Porto Verão Alegre. Por tudo, A última sessão de Freud é um espetáculo que agrada ao verdadeiro amante do teatro. É emocionante, inteligente, instigante. E tem uma interpretação soberba.