O vazio e a relação acabada

Por Antonio Hohlfeldt

Um espaço vazio, dois atores, um em frente ao outro, distantes, talvez, dois metros. O homem, primeiro, diz um texto de cerca de 50 minutos. A mulher, matriz, responde, reage, evidentemente sofre, mas se mantém calada. Esta é a convenção. Depois, é a vez dela. A primeira coisa que chama a atenção é a tonalidade da voz. A dele era agressiva, a dela é sofrida. A dele era acusadora, a dela tenta ser compreensiva e conciliadora. A dele é cética, a dela é esperançosa. O press release de Encerramento do amor diz que o dramaturgo, o francês Pascal Rambert, não toma partido entre os dois personagens. Eu discordo. Ele pode não pretender tomar partido, mas a simples ação dramática de cada um deles é uma tomada de partido, que leva o espectador a ter mais simpatia por um do que pelo outro. Eu posso entender a experiência vivida pelo ator, mas eu adiro à emoção sofrida pela atriz. E isso transforma o espetáculo, não num confronto, mas numa espécie de exposição de motivos de dois lados, cada um com suas razões, a respeito dos quais o espectador é instado a aderir. Não se trata de um julgamento, mas de uma espécie de depoimento ao qual o espectador é chamado enquanto testemunha. E este é o grande achado da dramaturgia. De fato o autor não faz opções por um ou outro personagem. Mas a recriação das falas de cada um naturalmente acaba por levar o espectador a uma opção, que não é condenatória, mas se constituiu numa espécie de simpatia entre um e outro personagem.
A Companhia Setor de Águas Isoladas vem de Brasília e se constitui numa das mais belas surpresas da temporada teatral de 2022. O texto de Pascal Rampert não é fácil. Exige dois grandes intérpretes que se equilibrem em cena. Que consigam, mais que isso, contracenar. Confesso que, antes de assistir ao espetáculo, eu me perguntava: dois enormes monólogos, e daí?
Bastou iniciar o espetáculo e eu esqueci tudo isso. João Campos se torna o personagem João, nome absolutamente comum e, por isso mesmo, coletivizador. Ada Luana se transforma em Ada e, até mesmo pela coincidência dos prenomes, é a figura antagonista ideal. Mas enquanto ele é tenso, nervoso, incompleto, inseguro, desesperado, ela é uma figura dolorida, mas equilibrada, esperançosa ante o ceticismo do homem. Ele ataca, ela explica. Ele agride, no sentido de se explicar e justificar, ela aceita e tenta entender. O tom da atriz, de certo modo, acaba englobando a voz do ator, mesmo quando ela está em silêncio.
Pascal Rambert escreveu um texto desesperado, como o de um náufrago prestes a soçobrar e afogar-se. A tradução de Marcus Vinicius Borja soube respeitar estes trejeitos, estas suspensões da fala, esta impossibilidade da expressão. A direção de Diego Bresan tratou de valorizar a expressão incompleta, o gesto suspendido, a angústia do sentimento que não consegue se traduzir na fala. Do outro lado, a frase contida, o sentimento ferido, mas consciente da mulher, que não quer acusar, mas ainda tenta salvar a relação. Ele, cético, sem redenção. Ela, buscando a alternativa. A participação de Taís Felippe, que corporifica a quebra do ritmo, quando entra, atriz à procura do espaço para ensaio, aparentemente alienada, tudo sintetiza: a tragédia dos dois personagens está absolutamente ignorada pelo mundo. É só deles e de ninguém mais. A gente fica se perguntando: mas será que o ator não recua, será que não consegue atingir um mínimo de racionalidade que seja capaz de salvar o casal? Não, ele se contorce e se destrói, mutilando o que poderia ser, ainda, o par. Não há saída. E a imagem final da melancia que se esborracha no chão tudo sintetiza. A relação colaborativa do casal acabou. Acabou, também, a possibilidade do espetáculo teatral, porque ele resulta, igualmente, de uma colaboração. São tensões que se complementam. Quando um se rompe, o outro termina.
O texto de Pascal Rambert é altamente dialético. Situações de rupturas entre casais já as vimos aos montes na cena. A que mais me emociona é Mão na luva, de Vianinha, para mim, sua obra prima. Vianinha acredita que, mesmo separado, o casal pode manter uma empatia. Rambert é radical: é a destruição do ser de um que está sendo requerido pelo outro. Estes são os tempos pós-modernos? Talvez.
Saímos frustrados do teatro, quanto ao enredo. Mas profundamente recompensados quanto ao espetáculo. A densidade da ação dramática exigida é radical, radicalmente respondida pelo dois intérpretes. O texto traduz a mesquinhez humana. O espetáculo traduz o altruísmo do artista, mesmo quando corporifica tais personagens. Um momento inesquecível em nossa cena.