Gratuidade recompensada

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Camus é escritor do período da Segunda Grande Guerra. Filiou-se ao existencialismo, em um primeiro momento. Romancista, ensaísta e dramaturgo, como seu companheiro inicial de lutas, Jean-Paul Sartre, também gosta de fazer brincadeiras metafísicas. E se Sartre escreveu Huis clos, Camus escreveu este O mal-entendido que, guardadas as proporções, é uma espécie de blague ao mistério da paixão de Cristo.

A situação dramática proposta por Camus é relativamente simples: um homem, depois de três décadas afastado da família (leia-se, mãe e irmã), a quem abandonou em busca de sua realização pessoal, picado pelo remorso, resolve retornar à casa materna. Mãe e filha mantêm uma hospedaria e, para sobreviverem, costumam assassinar os viajantes solitários, ficando com seu dinheiro e jogando seus corpos no rio. Sem reconhecê-lo (e ele não quer se dar a conhecer desde logo, apesar da insistência de sua esposa, Maria), aproveitam que Jan (é assim que se chama) resolve passar aquela noite no albergue, enquanto tenta se aproximar das duas mulheres: enquanto a mãe parece aceitá-lo, de certo modo arrependida e cansada da série de crimes cometidos, Martha insiste neste último crime, que vai permitir-lhes uma redenção final: deixarão o albergue e irão comprar uma casa à beira mar, onde passarão a viver.

Eis, pois, uma situação-limite, que evidencia a paráfrase, desde os nomes dos personagens: se Deus enviou o filho Jesus (filho de Maria) para salvar a humanidade, mas para isso este tem de morrer na cruz, Jan resolve retornar, por vontade própria (aqui entraria a psicanálise, é claro; Camus já é mais moderno e bem-informado) e resolve ele mesmo purgar sua pretensa culpa, retornando à casa, mas sem se identificar, possibilitando, assim, o crime das duas mulheres. A mãe Maria é aqui substituída pela esposa, que desenvolve a mesma função. Martha, que foi uma das mulheres preferidas de Jesus, segundo os evangelhos (irmã de Lázaro), aqui inverte sua função: embora querida pelo irmão, torna-se sua carrasca. Enfim, o empregado, mudo e quase cego, que atravessa toda a cena sempre a obedecer às ordens das duas mulheres, quando chamado (clamado) por Maria - agora viúva - revela-se tão insensível quanto Deus Pai, quando o Filho, no início do mistério da paixão, e pouco antes da morte, clama por ele: “Maria (virando-se para ele [o empregado]): Oh! Não sei mais! Mas ajudai-me, porque tenho necessidade de ajuda. Tenha piedade e consenti em me ajudar!” Ao que o empregado [Deus] responde, seca e definitivamente: “Não!”, com o que a peça se encerra.

Pouco antes, na abertura do segundo ato, cenas 4 e 5 (a peça tem 3 atos), é como que uma recriação da Última Ceia: Martha entra no quarto de Jan com um chá, que ele não pedira. Mas ela insiste em que Jan o beba. A partir daí, Jan vive alguns minutos de dúvida, decidindo-se, depois, por bebê-lo e, com isso, selando sua sorte.

O espetáculo vem assinado por Gilberto Fonseca e Daniel Colin, que teria desenvolvido a dramaturgia a partir do original de Camus. Mas a grande contribuição dos dois realizadores é na mise-en-scène propriamente dita. No acanhado espaço do Teatro de Arena, a água que, a partir de certo momento, começa a jorrar e invade toda a cena, certamente inspirada na referência ao rio e à represa onde os corpos dos homens assassinados são jogados, é um belo achado. Esta solução da encenação vence certo peso teórico que invade sobretudo o terceiro ato do texto original e, assim, o clímax da peça ganha uma perspectiva extremamente dramática.

O elenco, formado por Fernanda Petit (Martha, excelente), Gabriela Greco, Elison Couto (Jan, ousado, ao aceitar a tarefa), Patrícia Maciel e Pedro Nambuco é equilibrado e responde fielmente à linha da direção. A iluminação de Carlos Azevedo cria um clima fantasmagórico à encenação: não sabemos se estamos diante de uma peça de terror ou de um relato policial; os figurinos de Antonio Rabadan resolveram duas questões difíceis: ajudar no clima sonambúlico que marca a encenação e permitir aos atores enfrentar a água que invade a cena; o cenário de Marco Fronckowiak e de Rodrigo Souto, como disse, é o grande achado, na medida em que concretizou criativamente a idéia da direção.

Eis um espetáculo aparentemente gratuito (por que montar Camus? Por que ESTE texto de Camus?), mas que se justifica plenamente pela criatividade evidenciada na criação do espetáculo. Trabalho imperdível, obrigatoriamente.