Recordando o rádio e sua atração

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O movimento teatral da cidade de São Paulo é sempre dinâmico, mas me surpreende a cada vez que visito a capital paulistana. Estamos chegando ao final do ano, mas os teatros estão completamente cheios. Não se consegue ingresso de última hora, e isso vale para stand up comedies, grandes e caros musicais, dramaturgia de grandes autores, como o norte-americano Teneessee Williams ou autores brasileiros contemporâneos. Há público para todos os gostos, há público para todos os tipos de espetáculo. Na última semana, tive a oportunidade de assistir a Caros ouvintes, de Otávio Martins, que também assina a direção. Trata-se de um espetáculo que fica entre o nostálgico e o crítico, recuperando a memória das rádionovelas. Na verdade, o enredo toma uma emissora de rádio fictícia que está concluindo a transmissão de um grande sucesso, tanto que sua principal intérprete, Maria Isabel, está de malas prontas para mudar-se de São Paulo para o Rio de Janeiro, e do rádio para a nascente televisão. A personagem é interpretada por Nathália Rodrigues, atriz que vem se destacando justamente em televisão, sobretudo na série Lili, a ex, do GNT e que, por isso mesmo, merece destaque na edição de novembro da revista 29 horas, que é distribuída nos aeroportos paulistas.

O enredo, como se disse, envolve a transmissão do último capítulo de uma radionovela de enorme sucesso, em uma emissora relativamente pequena, mas que alcança fazer sombra às grandes equipes, graças, justamente, à radionovela Espelhos da paixão. O texto de Otávio Martins, inteligentemente, escolhe este momento de clímax dramático para desenrolar seu enredo. Mas o texto poderia ficar apenas na crônica saudosista do que se imaginava o final do rádio, com a chegada da televisão. E já seria muito bom. Afinal, há um conjunto de novas gerações que desconhecem completamente a magia do rádio dos anos 1950 e 1960. Mas Martins vai mais longe. Ele contextua cuidadosamente este primeiro enredo com os fatos da realidade brasileira, do golpe de 1964 às traições e dedo-duragens que eram, então, comuns, mesmo entre colegas, e mesmo entre artistas. Assim, a personagem Dona Guiomar, uma veterana atriz conservadora, que detesta comunistas e homossexuais, não se peja de denunciar um colega de elenco, justamente o galã da radionovela e que igualmente iria mudar-se para a televisão. Inveja ou convicção? Martins não esclarece a situação, mas este elemento acrescenta um dado de dramatização ao enredo que, assim, se divide em três linhas, sendo que o desaparecimento e prisão do radioator serve para atar as duas pontas da história que ganha, neste sentido, um bom equilíbrio.

Otávio Martins criou diálogos ágeis, situações cômicas e outras dramáticas, mas, de tudo, o que mais me agradou é a perfeita recriação de um estúdio de rádio, com seu contra-regras, magnificamente vivido por Alex Gruli, seu diretor de cena, interpretado por Petrônio Gontijo, e um conjunto de radioatores que, ao lado das personagens que interpretam, vivem seus próprios dramas, como Rodrigo Lopez, que dá vida ao narrador da radionovela, ao mesmo tempo em que, na vida real, enfrenta as agruras de ser menosprezado por sua homossexualidade e acaba perdendo seu companheiro, justamente aquele profissional entregue à polícia política por Dona Guiomar.

A produção Caros ouvintes encontra-se em cartaz, em São Paulo, há mais de ano, tanto que já experimenta seu segundo elenco. Atualmente em cartaz no Teatro do Masp, deverá ainda continuar sua temporada, com toda a certeza, tal o sucesso de público. A repercussão da obra, na verdade, não se deve apenas à qualidade do trabalho, mas também a certo regionalismo evidente no paulistano: a peça tem uma série de referências que só aquela plateia entende completamente.

Com um elenco equilibrado, um texto dinâmico e inteligente e um enredo bem desenvolvido, Caros ouvintes agrada em cheio a todo e qualquer tipo de espectador. Faz rir, faz refletir e, sobretudo, permite-nos (re)viver a era do rádio das décadas de 1950 e 1960.