Em Cena: destaque para a dramaturgia contemporânea

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A segunda semana do 21º Porto Alegre em Cena apresentou atrações variadas, mas centrou-se na dramaturgia contemporânea. Logo no início da semana, tivemos talvez um dos espetáculos que mais criara expectativa: Tríptico, de Samuel Beckett, pelo Club Noir, de São Paulo que, bem diferentemente deste ano, havia nos apresentado, no festival passado, os clássicos gregos. Agora, três atrizes, desdobramento da mesma personagem em diferentes fases de sua vida, refletem a respeito da morte e da passagem do tempo, temas constantes do dramaturgo irlandês. A direção de Roberto Alvim colocou em cena aberta, sob a sombra de um enorme esqueleto em ferro e a projeção de uma radiografia da cabeça humana, as três figuras femininas, com destaque para a extraordinária Nathalia Timberg, de volta aos palcos, depois de muitos anos de ausência.
Na verdade, o tríptico se reduz a monólogos das três personagens em diferentes momentos. O que surpreende é a vitalidade do texto e a força inesperada que Nathalia evidencia quando toma a palavra. Podia estar vacilante, ao final do espetáculo, quando se levantou para agradecer, mas a projeção de sua voz, absolutamente segura, é dessas coisas inesquecíveis em um espetáculo de teatro.
Sucessivamente, assistimos a Homens, santos e desertores, do paulistano Mário Bortolotto, sempre uma atração a ser acompanhada. O texto de Bortolotto, até certo ponto, é surpreendente e inesperado, porque mais carregado de nuanças filosóficas. Dois personagens estão em cena: um jovem, cujo pai é nômade e a mãe uma prostituta amadora, encontra no homem mais velho uma espécie de substituto do pai. Mas o companheiro e ouvinte não está muito disposto a se tornar modelo: quando muito, prepara-o para a caminhada que visualiza negativa e cética e, quando entende ter cumprido sua missão, suicida-se. O texto, de 2002, publicado no ano seguinte, é um dos trabalhos mais radicais do dramaturgo que, na estreia, foi um dos intérpretes de seu próprio texto, aqui, substituído por Ricardo Blat. O espetáculo é curto, não mais que uma hora de duração, mas contundente. É profundamente humano.
Depois, tivemos Quarteto, de Heiner Müller, sob a direção de Gil Vicente Tavares, que impactou e envolveu a todos os que assistiram ao espetáculo, nas interpretações de Marcelo Prado e Bertrand Duarte.
A semana terminaria com O estranho cavaleiro, produção local dirigida por Irion Nolasco a partir do texto do dramaturgo belga Michel de Ghelderode. O espetáculo havia estreado ao longo desta temporada e foi selecionado para a série local de trabalhos a concorrerem ao Prêmio Braskem. A direção de Nolasco e a preparação do elenco por Inês Marocco resultaram num trabalho cuidadoso, bem marcado, em que se evidencia a preocupação com os detalhes. Trata-se de uma espécie de fábula moral, envolvendo a chegada da Morte em uma casa de velhos decrépitos e aleijados que, no entanto, fogem dela, espavoridos. É quando descobrem que a Morte veio buscar um bebê recém-nascido. Na tradução utilizada, o uso da segunda pessoa do singular e a do plural por vezes tornam o texto um pouco artificial, mas o desenvolvimento das ações é bastante eficiente, sobretudo se levarmos em conta que a escritura de Ghelderode é poética, pouco dramática e relativamente metafórica, características pouco comuns à dramaturgia contemporânea. De qualquer modo, foi um belo espetáculo, a reivindicar para o teatro a força da imaginação e a função catártica defendida desde Aristóteles.
A semana teve, ainda, a performance do grupo de dança pernambucano Experimental que, completando seus 20 anos de existência, trouxe seu espetáculo comemorativo, formado por quatro coreografias que cobrem o período de 1993 a 2002. O grupo é ainda jovem, mas evidencia técnica e comprometimento. O que me parece complicado é a concepção das coreografias que, partindo de situações interessantes e vívidas, acaba se perdendo em soluções e conclusões confusas. De qualquer modo, mexeu com todos os que assistiram ao trabalho.