Obra equilibrada e admirável

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Programado para a última noite do recentemente encerrado Porto Alegre em Cena, o espetáculo que a Porto Alegre Cia. de Dança apresentou e reprisou na semana seguinte é um daqueles raros trabalhos a que a gente vai assistir com a expectativa de aplaudir uma boa performance, mas que acaba nos possibilitando muito mais do que isso, gratificando profundamente a quem foi assisti-lo.
Esta é a segunda produção própria da Porto Alegre Cia. de Dança a que assisto. E não sei dizer exatamente o que é melhor: a inesperada e sensibilíssima coreografia do escocês Mark Sieczkarek, a beleza combinada do espaço de palco e o figurino, que sublinham e reforçam a própria coreografia, ou a absolutamente correta interpretação do conjunto de bailarinos. Seja o que for, e provavelmente seja tudo isso, mas, sobretudo, porque equilibradamente combinados entre si, estes elementos acabaram constituindo um espetáculo de exceção, sobretudo por sua emotividade.    
O trabalho anterior, de estreia do conjunto, já havia chamado a atenção, mas, de certo modo, e comparativamente a este novo espetáculo, constituía-se apenas num bom e correto espetáculo.
É surpreendente imaginar que um europeu, especialmente um escocês, que tem uma experiência cultural absolutamente diversa da nossa, consiga nos interpretar tão corretamente como podemos ver nesta coreografia. O ritmo e a musicalidade que atravessam todo o espetáculo - de cerca de hora de duração -, cativam e prendem desde o primeiro minuto. A partir do momento em que se abre o pano de boca, já estamos envolvidos. E é importante observar que o coreógrafo também responde pelo cenário e pelo figurino tanto quanto pela escolha da trilha sonora do espetáculo, marcadamente sincopado ao gosto dos ritmos da música popular brasileira, a partir de composições do Cordel de Fogo Encantado, Caetano Veloso e Naná Vasconcelos, especialmente. Isso faz com que Eu estive aqui fique assinado à maneira brasileira sem, contudo, deixar de ser universal. E penso que é para isso que, ludicamente, Sieczkarek quer nos chamar atenção. O título da obra parece não ter nada a ver com a obra em si mesma, mas o fato é que a obra funcionaria objetivamente como uma espécie de atestado da sensibilidade e inteligência emocional do artista, como se ele dissesse: eu estive aqui, vi e ouvi a cultura de vocês e mostro o que dela compreendi através desta coreografia.
O elenco da Porto Alegre Cia. de Dança igualmente esmerou-se na melhor interpretação e concretização possíveis da ideia do coreógrafo. O conjunto de nove bailarinos (dois homens e sete mulheres) ultrapassa qualquer caracterização diferenciadora de cada um dos indivíduos para funcionar como um conjunto harmônico e dinâmico, de onde o efeito de uma espécie de mecanismo muito bem azeitado, que funciona com naturalidade e objetividade, mas também com força emocional e unidade motivacional: é assim, transformando-se num único, a partir da ideia do coreógrafo até a iluminação de Maurício Moura, que o espetáculo acaba se transformando numa verdadeira obra de arte.
Uma obra que emociona, uma obra que faz com que o público se deleite ao longo de espetáculo, não queira que ele acabe e, quando ele termina, fica quase que sem vontade de aplaudir, para não quebrar a magia ainda em efetividade. Foi assim que aconteceu: pela trilha sonora, a peça parece constituir-se num grande movimento circular, saindo e retornando à mesma composição musical que, por seu lado, provoca o mesmo conjunto de evoluções coreográficas. A peça, assim, fecha-se, não no sentido de obra difícil ou de autossuficiência, mas enquanto balé holisticamente bem constituído, de modo que não se pode mexer em qualquer movimento sem desconstruir a obra, que tem tal articulação entre seus elementos que qualquer um que sofra interferência, desmonta-a.
Espero que o grupo possa apresentar-se mais vezes para os mais diversos públicos, porque a obra merece, o coreógrafo merece, o grupo merece e a arte merece.