Partilha de frustrações e de realizações

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A partilha, de Miguel Falabella, é uma peça escrita na década de 1990. Não havia assistido à montagem da época e, portanto, tinha curiosidade em conhecer a obra: de um lado, curiosidade simples, de ver uma peça quase duas décadas depois. Em segundo lugar, imaginava uma peça que levantasse questões sobre os costumes da época. Frustrei-me, de um lado, saí satisfeito, de outro.
O que me frustrou: não se trata de uma peça que trabalhe os costumes de época, tipo Martins Pena. A peça não se refere, necessariamente, aos anos 1990. Mas isso que poderia ser seu aspecto negativo é também seu lado positivo: a peça sobrevive quase vinte anos exatamente porque apresenta elementos universais e constantes, que garantem permanência. Ou seja, o grande mérito de Falabella é que ele escapa a uma eventual armadilha de falar de um determinado momento para referir-se a uma realidade mais ampla e universal.
Então, vamos por esta linha. A peça se sustenta por méritos próprios. Cabe, então, examinar estes méritos. A dramaturgia é bem apresentada e bem desenvolvida: quatro irmãs, de idades e experiências de vida diversas, reúnem-se quando da morte da mãe. Cada uma delas tem uma perspectiva diferente da família, e cada uma possui algum elemento negativo para relembrar ou para cobrar. Assim, o drama se estabelece a partir de Selma, vivida por Patricya Travassos, que é, na verdade, a personagem de confronto com as demais figuras em cena: é ela quem conviveu com a mãe nos anos finais e, de certo modo, aguentou a matriarca, já que as demais irmãs se distanciaram. A partir deste embate, surgem os confrontos dos diferentes pares. Susana Vieira, a esotérica e falsamente moderna, acaba por reconhecer algumas de suas falhas, mas é ela quem, na verdade, anima e mantém a unidade do grupo. Arlete Salles vive Maria Lúcia, a que vai para Paris: pretensa internacionalista, não deixa de revelar um lado de solidão que a torna um personagem humano e simpático ao público. Por fim, a jovem Laura revela sua verdadeira face, com as preferências sexuais inesperadas, interpretada por Thereza Piffer, que marca fortemente a cena.
O texto, entoa, revela-se como um drama psicológico, a que não faltam algumas picantes e bem oportunas observações cínicas do dramaturgo, através das falas de suas personagens. O resultado é um texto ágil, inteligente e muitas vezes sensível. Mas acaba pagando tributo ao consumismo e à facilidade televisiva, com sua finalização piegas. Acho que Falabella tem capacidade e competência suficientes para escrever uma grande obra, mas acabou preferindo certas facilidades que atraem o público e o deixam satisfeito, mas deixam a dramaturgia carente de uma razão mais aprofundada.
Então, retomo a observação: num primeiro momento, a peça frustra pela ótica e a perspectiva temática, mas acaba satisfazendo exatamente por esta opção, perigosa, mas bem assumida e bem realizada. Por outro lado, a partir da opção do dramaturgo, ocorrem uma realização e, ao mesmo tempo, uma nova frustração: o tema e seu desenvolvimento e enfoque são excelentes mas, ao mesmo tempo, não chegam até o final de suas possibilidades, frustrando, em parte, o espectador.
Falabella tem experiência de dramaturgo. Seu trabalho na televisão, contudo, parece ter atrapalhado suas opções de criador. O criador paga imposto à atração de popularização de público. Falabella, neste sentido, precisará fazer uma opção: ou segue uma trilha de facilidades e recebe a consagração pública imediata, mas não fica registrado no rol dos dramaturgos brasileiros ou, ao contrário, opta por um caminho mais difícil, mas de permanência. Esta é uma decisão do artista. Para nós, espectadores, resta a expectativa e torcida: eu prefiro o Falabella dramaturgo, mas pode ser que ele mesmo se prefira o homem da televisão...