A coragem exemplar de uma mulher do povo

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Começou o 19º Porto Alegre em Cena. Nesta primeira semana, tivemos uma boa representação do teatro do Uruguai, um espetáculo vindo de Portugal e a apresentação de uma produção local, especialmente idealizada para comemorar o centenário do dramaturgo Nelson Rodrigues, Os plagiários, a que, infelizmente, não pude assistir, por estar fora da cidade. A semana se encerrou com o Ballet National de Marseille, que trouxe duas pequenas peças de seu repertório. Mas a grande expectativa estava por conta do Berliner Ensemble que vinha pela primeira vez - e talvez única, em alguns dos próximos anos - com seu clássico repertório de Bertolt Brecht.
A peça escolhida foi Mãe Coragem e seus filhos (1939), fase de referência da dramaturgia do grande autor alemão. Trata-se de um exemplo bem acabado do chamado “teatro épico”, considerando-se este “épico” enquanto um teatro narrativo que, ao contar uma história, ilustra uma situação referencial a partir da qual o espectador deve tirar alguma lição para a sua vida. Neste caso, a parábola se divide em dois blocos: de um lado, a narrativa explícita em que Brecht refere imediatamente à guerra que ora se iniciava no continente europeu: Mãe Coragem, como a conhecem todos, pretende lucrar com a guerra, mas tudo o que alcança é a perda dos dois filhos: um deles é vítima da carnificina; o outro, considerado herói pela ação que pratica, num momento de trégua, é condenado e executado ao realizar a mesma façanha: é que, durante a paz, tal ato é considerado criminoso. Quando a mulher, já velha, pensa ter encontrado um companheiro e um lugar para acabar seus dias - agora que a guerra parece terminada -, é surpreendida com a necessidade de abandonar a filha muda. Negando-se a isso, ela se condena à solidão. A jovem, contudo, resolve enfrentar a vida por ela mesma, sob um conceito diferente da mãe. E assim, a peça se encerra, com uma lição tão simples quanto dura: a moral da guerra é diversa da moral da paz. Mas na paz os bons sujeitos sofrem mais fortemente suas penas do que em tempos de guerra.
Brecht não brinca em serviço. Ele é literalmente didático. A vida de Mãe Coragem (não por um acaso uma comerciante mercenária) se desdobra à parte de uma moral tradicionalmente aceita como ideal. É assim que ela sobrevive e tenta defender seus filhos. Os valores que verbaliza podem ser chocantes, à primeira vista, mas ganham logicidade em tempos de exceção representados pela guerra. Na paz, contudo, ela se dá mal. E nos únicos momentos em que boas ações são praticadas (ela se sacrifica pela filha; a filha se sacrifica para a salvação da aldeia) ambas pagam o preço de serem boas, de se decidirem moralmente pelo bem. A lógica - a lição - está clara: não há bondade entre os homens dentro de um determinado contexto.
Não poderia haver melhor texto para clarificar o teatro brechtiano. E não poderia se esperar mais bem resolvido espetáculo do que aquele a que assistimos. A atualidade de Brecht se apresenta a olhos vistos. O que salva Brecht de qualquer filosofia eventualmente discutível é sua capacidade de apresentar seres de corpo e alma, tão contraditórios quanto cada um de nós. E de misturar, a uma reflexão objetiva e ácida, um elemento lírico absolutamente inolvidável, que empresta a seus textos uma tonalidade universal. Anna, o nome da personagem, significa “terra”. Sua força advém justamente desta raiz, desta vinculação ao essencial que ela traduz e através do que sobrevive.
A concepção do espetáculo, de Claus Peyman, certamente atualiza a concepção original do espetáculo. A música de Paul Dessau é contundente. A cenarização econômica é o suficiente para desenhar os espaços em que as cenas se desenrolam. Dezenas de anos se sintetizam naquelas cenas que totalizam três horas de espetáculo. Mas Mãe Coragem não existiria sem o corpo e a personalidade de atriz Carmen Maja Antoni, simplesmente soberba e inesquecível, terrivelmente emocionante e definitiva. Foi um momento radical deste festival.