Houve muita coisa boa, mas nada melhor que Luis Antonio-Gabriela

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Nos últimos anos, Porto Alegre passou a desfrutar de dois grandes festivais de teatro. Um, mais tradicional, é o Porto Alegre em Cena, e ocorre no segundo semestre, em setembro. O outro veio se apresentando devagarinho e, ao chegar à sua sétima edição, se firma definitivamente. Trata-se do Palco Giratório, do Sesc, que chega a seu sétimo ano trazendo, ao longo de praticamente três semanas, algumas dezenas de espetáculos da mais alta qualidade, tanto nacionais quanto internacionais, além dos grupos regionais, que são integrados em pé de igualdade e de oportunidades com os demais grupos.

Este ano foi, sem dúvida, o melhor momento do festival, estando de parabéns, por isso, a curadora local, Jane Schoninger e toda a equipe que, ao longo de todo o período, atuou na recepção dos grupos e do público. Sobretudo em se tratando do teatro do Sesc, a simpatia e a organização mostraram-se eficientes e sempre simpáticas.

Foram tantos os espetáculos a que se poderia assistir que é difícil nomear a todos. Mais que isso, não se pode deixar de manter o acompanhamento da temporada rotineira da cidade. Quero, pois, destacar alguns trabalhos a que pude assistir, e que registro aqui, muito mais como uma amostra do festival do que propriamente um registro de tudo o que se pode conhecer e admirar.

Minha primeira noite andou mal. Assisti a Bait man, de Gerald Thomas, que assinou o texto e a direção, para a interpretação de Marcelo Olinto. Na cena do Teatro Renascença encontramos como que um depósito de lixo a céu aberto, marcado especialmente por caixas e garrafas de vinho. Quando a cena abre, um homem torturado aparentemente agoniza, cabeça para baixo, como num pau de arara, todo ensanguentado. A cena é longa, mas de repente ele se levanta, começa a correr pelo palco e a dizer coisas absolutamente absurdas e sem nexo. E assim vai, durante quase uma hora. Discursos que me lembraram meus 15 anos, utópicos, idealistas e absolutamente estéreis. Assim foi o espetáculo. Pelo jeito, Gerald Thomas vai de mal a pior. 

Felizmente, minha agenda levou-me, em seguida, ao extraordinário Depois do filme, de Aderbal Freire Filho que, à semelhança de seu colega, assinava o texto e a direção, para a interpretação dele mesmo. Mas que diferença de proposta, clara e simples, objetiva e oportuna. 

Seguiu-se, para meu encanto, As grandes cidades sob a lua, do Odin Teatret, da Dinamarca, com o elenco de Eugenio Barba, que ainda realizou oficinas e diversos encontros na Capital. Eis a lição do verdadeiro teatro. O elenco se coloca no palco desde a abertura da cena. Interpreta, canta, dança, cada um sabe tocar algum instrumento musical. Com tão poucas coisas, algumas inusitadas em seu uso em cena, aborda-se com profundidade um tema atual e capital: a violência sob todos os seus aspectos. A violência da guerra, a violência das ditaduras, a violência das grandes cidades sob a lua, como menciona o título. Sob a inspiração de Bertolt Brecht, e com uma trilha sonora que nos remete a Eisler, o espetáculo de exata hora cheia nos encanta, nos questiona e nos leva a deixar o teatro quase como que em estado de graça. 

Instantâneos foi outro momento de exceção. Gosto destes espetáculos que fogem ao cotidiano e às propostas tradicionais. Eles justificam um festival em última análise: é graças a um festival que a gente pode assistir a espetáculos que, por seu custo, não poderiam cumprir uma temporada comercial. Ou graças ao festival que se conhecem trabalhos experimentais como este. O teatro de máscaras da Cia. dos Bondrés, do Rio de Janeiro, busca inspiração no teatro de Bali. Nem sempre o trabalho é executado com perfeição, mas sente-se a dedicação e o cuidado com que todo o elenco atua, desde os primeiros momentos, com a trilha sonora sendo executada em instrumentos incomuns e inesperados, até a sequência de pequenos esquetes que gradualmente vão delineando um enredo bem mais estruturado do que se poderia imaginar a princípio, mesclando lirismo e comicidade, num equilíbrio sempre surpreendente e lúdico.

Pólvora e poesia, de Alcides Nogueira, na direção de Fernando Guerreiro e interpretações de Caio Rodrigo e Talis Castro frustrou parcialmente. Tinha enorme curiosidade em ver como o espetáculo abordaria a controvertida relação entre os poetas Verlaine e Rimbaud, que escandalizou a França do final do século XIX/início do século XX. O preparo corporal dos atores é impecável e seu esforço de interpretação inesquecível. Mas o ritmo dado ao espetáculo e o excesso de esforço físico, que se transforma praticamente numa contínua luta corporal entre os dois personagens me parece demasiado e acaba atrapalhando a fluidez da própria poesia contida no texto dramático. Acho que a direção incorreu, aqui, no mesmo erro dos diretores que imaginam ter de concretizar um espetáculo berrado para poder refletir corretamente os objetivos da dramaturgia de Nelson Rodrigues. Há um evidente excesso de cena que acaba dificultando a fluidez do texto.

Escapada, por seu lado, espetáculo de dança da Cia. Mário Nascimento, de Minas Gerais, foi inesquecível. Um elenco jovem também se coloca em cena com uma forte coreografia. O termo faz referência à necessidade de fuga que se sente diante dos desafios que a vida moderna nos coloca. Num primeiro momento, temos jovens que pedem carona (sem serem atendidos). Aos poucos, a coreografia se torna mais complexa e dura. Os intérpretes evidenciam um preparo físico exemplar. A coreografia de Nascimento como que fragmenta e decompõe o movimento coreográfico, levando o bailarino, por vezes, a interromper o gesto ou a se colocar em posições absolutamente raras e de extrema dificuldade de realização. Neste sentido, evidencia-se também a elasticidade do elenco. Mas é no conjunto que se sobressai a companhia, mostrando que dança é, antes de tudo, coletivo. Um belo espetáculo, por um grupo que deverá vir mais vezes à cidade. Infelizmente, não pude assistir ao outro trabalho do elenco, Faladores, mas, sem trocadilho, ouvi falar bem dele. E a se julgar pelo que vi, é provável que mostraria a mesma versatilidade que conheci neste outro: os bailarinos falam, tocam instrumentos e cantam, com extrema qualidade, promovendo um trabalho completo e variado.

Contudo, de tudo a que assisti, de tudo o que ouvi, nada terá superado, certamente, Luis Antonio-Gabriela, de Nelson Baskerville, dramaturgo e diretor. Este é um momento de exceção no teatro: em muitos anos de acompanhamento do movimento teatral em Porto Alegre, não vi uma emoção tão forte, uma comunicabilidade tão extremada e uma magia tão fantástica quanto ocorreu neste espetáculo. Ninguém conseguir sair do teatro sem um impacto fortíssimo e inesquecível, que raras vezes acontece com a obra de arte. Ao contar de certo modo parte de sua biografia, para falar de um irmão homossexual e travesti, Nelson Barkerville valeu-se, para o desenvolvimento do trabalho, de longos momentos de improvisação. Mas, como decorrência disso, concretizou-se um espetáculo que é absolutamente inovador, desafiante, inesperado, criativo, ousado, alegre, triste, profundamente lírico e, acima de tudo, sempre e sempre radicalmente humano.

Baskerville não teve medo de dizer ou de mostrar. Mas, sobretudo, não teve medo de ser sincero. O resultado é um trabalho que vai muito além do teatro a que estamos acostumados. Perdemos a noção divisória entre palco e plateia, entre espetáculo e realidade. Não a realidade cotidiana, mas a realidade de um espetáculo: lembrei muito das teorias do início do século XX, de Craig a Appia e Stanislavski (contraditórias entre si, mas sensíveis à necessidade de renovar decididamente a encenação teatral): parte-se do texto do dramaturgo; trabalha-se com o corpo do ator; lida-se com a iluminação e a organização do espaço cênico. Aí se tem como resultado um espetáculo teatral que é tão artificial como um pedaço de plástico, mas que, ao contrário do plástico, porque cria-inventa uma nova realidade, que é a realidade artística, emociona mais e revela muito mais do que a própria realidade. Baskerville em nenhum momento apela a sentimentalismos, pelo contrário: mescla um pretenso documentarismo com a ficção; sai do monólogo para o musical; cruza a fronteira do teatro de tese para passagens altamente líricas, que provocam lágrimas até mesmo nos mais duros espectadores. Enfim, é teatro, sim, que nos leva a uma das mais sensíveis experiências de vida que jamais conheci. 

Foi, disparado, o melhor de tudo e de muito tempo. Acho que a direção do Sesc deveria considerar seriamente a possibilidade de trazer o grupo novamente à cidade para uma temporada mais longa. Afinal, foram apenas duas noites. E se o grupo voltar, com certeza, lá estarei eu, na primeira fila, para me reencontrar não apenas com aquele trabalho, mas comigo mesmo. Foi um grande momento de Arte, com letra maiúscula, inolvidável que devemos agradecer profundamente ao festival.

Eis o Palco Giratório deste ano. Teve mais, por certo. Teve coisas boas, espetáculos ótimos, realizações menos interessantes. Mas mesmo quando de trabalhos menores, isso é importante: o público pode exercitar um aprendizado positivo que é saber distinguir o trigo do joio. Parabéns ao Sesc e a sua diretoria, pela perseverança, pela capacidade de seleção dos trabalhos e, sobretudo, pela bela oportunidade de vermos muito teatro em pouco tempo.