Memória do teatro de rua de Porto Alegre

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Tendo assistido, creio, a todos os espetáculos assinados pelo jovem diretor Jessé Oliveira, foi com curiosidade e alegria que dele recebi um exemplar do livro Memória do teatro de rua em Porto Alegre, lançado no início deste ano, graças a um financiamento do Fumproarte que, como ele me explicou, não chegou a cobrir todos os custos da edição (mais de 150 páginas, papel couché de boa qualidade e impressão a cores), mas permitiu a arrancada inicial.
Nessa obra, como seu título indica, Jessé Oliveira busca pensar teoricamente o teatro de rua e documentá-lo em Porto Alegre. No primeiro caso, ele busca suas raízes na comedia dell’arte e depois passa diretamente para época mais recente, a partir dos anos 1970, interpretando-o como uma reação e uma resistência à ditadura militar. No caso de Porto Alegre, tudo teria começado com o grupo Ói Nóis aqui Traveis, embora reconheça, a partir do livro de Athos Damasceno Ferreira, sobre o teatro porto-alegrense do século XIX, que já tivéramos manifestações semelhantes ainda nos anos 1800.
O principal de seu trabalho, contudo, é o resgate, documental e fotográfico, dos grupos e dos espetáculos aqui apresentados a partir de então, com grupos como Oficina Perna de Pau, Alcatéia, Arruaça, Cia. d’Rua, Falos & Stercus, Espalha Fatos, Cia. Stravaganza, Oigalê, Goliardos etc.
O livro é extraordinário pelo esforço empreendido por seu autor no sentido de buscar depoimentos e documentação de tais espetáculos. Jessé Oliveira organizou seu trabalho por décadas, a partir dos anos 1980, vindo até o atual momento. Enriquecem o volume, ainda, currículos dos grupos, cronologias e fichas técnicas, o que permite, a um historiador, guiar-se com segurança nesta pesquisa primária, fundamental para a memória do teatro porto-alegrense.
Jessé Oliveira acerta quando enfatiza que, nos primeiros momentos, os grupos estavam muito mais preocupados com a questão política do que estética. Ainda que, como ele bem observa, a opção estética, através da constituição de uma linguagem específica para o teatro de rua, não deixasse de existir, como é óbvio de se imaginar: o teatro de rua, na medida em que se realiza em espaços abertos, necessita de um preparo corporal e vocal do ator, absolutamente diverso do de um teatro de palco, em espaço fechado. Portanto, termina por construir uma linguagem diferenciada: por exemplo, maior colorido de figurinos; inexistência de cenários; necessidade de projeção de voz; utilização de gestos mais amplos, para poderem ser compreendidos por plateia heterogênea e relativamente distante da cena, etc.
Neste caso, e estritamente em relação a isso, acho que Oliveira acerta em cheio e abre um conjunto de discussões tanto mais rico quanto buscou os depoimentos dos integrantes de grupos que então realizaram seus espetáculos. Mesmo levando em conta que a memória é seletiva e interpretativa, a palavra desses realizadores e intérpretes é significativa do que então se pensava e buscava.
Quero, contudo, provocar Jessé Oliveira, lembrando que, para aprofundamento de uma eventual pesquisa, ele deve levar em conta que, muito antes da comedia dell’arte, os autos sacramentais medievais já se valiam dos amplos espaços das ruas e das praças para os seus espetáculos. Havia os chamados livros de espetáculos que serviam como espécie de partituras, a partir do que o diretor do espetáculo orientava seu trabalho.
Esses espetáculos foram transpostos para o Brasil e se transformaram nos trabalhos de mamulengos que ainda hoje se apresentam pelas ruas de cidades nordestinas, com especial ênfase para Recife e Olinda, com o uso de bonecos gigantescos, vestidos pelos atores, utilizando pernas de pau etc. Portanto, para entender a gênese e a história do teatro de rua, há que se ir mais longe e abrir mais a pesquisa em torno de sua tradição.
De qualquer modo, o livro de Jessé Oliveira emociona e alegra: que bom verificar que jovens realizadores não se limitam - o que já é muito - a realizar seus trabalhos, mas pensam crítica e historicamente a respeito desta arte extraordinária que é o teatro. Recomendo vivamente a obra, raridade em nossa bibliografia teatral e criticamente valiosa, pelo material documental que reúne em um único volume.