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Lições recusadas
Luchino Visconti, o grande cineasta de Rocco e seus irmãos e O leopardo, revelou uma vez que estava praticamente acertada uma versão cinematográfica de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, a ser realizada por ele. Era um sonho do diretor, infelizmente nunca concretizado. Ao tornar pública sua intenção, ele também afirmou textualmente que "o meu Proust terá o perfume de Balzac". Com isso quis dizer que seu filme seria uma homenagem a Proust, mas erguida através de uma linguagem aproximada ou semelhante ao romance realista do século XIX.
Visconti foi um praticante de um cinema voltado para o real e seu interesse principal foi a construção de personagens cuja trajetória refletisse sua época. Sua citação a Balzac não foi uma exaltação do passado, mas a lições que a narrativa (devolvendo a esta palavra seu significado) oitocentista era -e continuará sendo - a mais apropriada ao cinema. Esse posicionamento não significa qualquer tipo de submissão ao passado, mas sim uma maneira nova de abordar o já conhecido e praticado. É uma das fontes do cinema presente em todos os momentos revolucionários. O próprio Proust certamente não esqueceu o perfume do autor da Comédia Humana, mesclando-o ao gosto de chás e madeleines e a descobertas que permitiriam transmitir aos leitores, através da palavra, por exemplo, os temas e as variações se de uma sonata de um compositor fictício. E ninguém poderá negar a filmes como Cidadão Kane e Hiroshima meu amor, ambos tendo "aberturas" indiscutivelmente ligadas ao documentário, devoção à realidade capaz de ser captada pela câmera cinematográfica.
Júlio Bressane, o realizador de Capitu e o capítulo, é um daqueles realizadores avessos a qualquer tipo de cinema que se expresse através de imagens e andamento que façam o espectador sentir-se diante do real. Seu cinema é feito de imagens e situações que procuram sintetizar dramas e frustrações de seus personagens. Sua opção o leva a se afastar do público, algo que, para ele, o transforma num contestador de todo um sistema de produção. Há os que escondem suas limitações numa deformação da realidade, forma encontrada par disfarçar a falta de talento para criar na tela personagens verdadeiros. Mas o caso de Bressane, obviamente, é outro. Impulsionado pelas sugestões de Dom Casmurro, para muitos o maior livro de Machado de Assis, ele cria uma espécie de poema cinematográfico, em vez de um romance. Certamente não é por acaso que vários poetas brasileiros, falecidos com pouca idade, são amplamente citados pelo narrador. E, logo no início do filme, se aproxima do tema edipiano, no áspero diálogo em que Bentinho é colocado diante de uma escolha. Em outros momentos, ele aproxima o seu cinema da ópera e do balé. Há uma sequência em que quase ouvimos a voz de cantores, pois a gesticulação dos intérpretes se assemelha a duetos encenado em espetáculos operísticos. Tal sequência, talvez tenha sido inspirada a Bressane pelo capítulo nono da obra-prima machadiana, na qual o mundo se transforma em palco para uma ópera.
Em outros momentos, o realismo de cena é deformado, sobretudo na cena em que o protagonista começa a ter certeza da traição, com o personagem, pelo andar e a gesticulação, se transformando em figura de filme de terror. Assim como esta, há outras referências, inclusive a utilização de outros filmes do cineasta. O cinema de Bressane pode gerar discordâncias e certamente não é o que o sistema de produção e exibição aprecia. Mas, talvez fosse melhor que ele fosse assistido por mais espectadores. Sua inconformidade, discutível, é verdade, por vezes cria imagens reveladoras, como na cena de Bentinho e a mulher do amigo, no qual se revela uma das origens do ciúme. Mas não é um cinema voltado para grandes plateias, assim como há exemplos semelhantes em outras artes de obras difíceis de ser apreciadas. Nem tudo no filme tem origem em Machado, que forneceu sugestões, como, aliás, está expresso nos créditos finais, onde também, fica claro que tudo é apenas um filme, talvez um exercício, um trabalho inacabado.