O humano do corpo

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Estamos habituados a ver como real aquilo que a ciência determina enquanto tal. Assim, difunde-se a usual compreensão que reconhece o corpo como um todo anatômico, constituído de partes identificáveis e possíveis de serem descritas. Desse modo, o corpo humano pode ser seccionado como qualquer outro objeto.
Para a anatomia e a fisiologia, o cadáver e o corpo se identificam. Mas se pode identificar um e outro? A fé cristã anuncia a vida do corpo, e não a reanimação de cadáveres.
O corpo humano certamente não pode ser igualado a um objeto qualquer. Os objetos são percebidos quando os sentidos dirigem a atenção para eles. Podemos perceber os objetos por meio dos sentidos corporais. Assim, o que permite a existência e a observação dos objetos é o corpo constituído de sentidos.
O discurso científico descreve a realidade; ele diz algo sobre a realidade! Neste sentido, pode-se dizer que o discurso científico nada mais é do que uma “substituição da realidade”. Através do discurso, a ciência cria uma imagem da realidade.
Segundo a perspectiva científica, o corpo tem direito à vida como prolongamento quantitativo no tempo, guiada pelo máximo possível que o biológico possa oferecer. Importa o biológico em sua máxima potencialidade; tudo aquilo que o ameaça é relegado ao absurdo e incompreensível e, por isso, deve ser descartado e combatido. Aqui o simbólico não encontra lugar! Natural é a morte biológica provocada pela velhice. Assim, vive-se na ilusão de que, graças à ciência médica, a cada dia, a vida vence um pouco mais a morte. Ao mesmo tempo, porém, o acúmulo de anos é visto como um peso que a sociedade ainda suporta. Suporta antecipando a morte biológica numa morte social! Sim, numa morte social, pois, se para os antigos o idoso era um símbolo, para a modernidade é um peso. Peso, porque a experiência adquirida pelo idoso não tem mais valor para o grupo social.
Busca-se a saúde a todo custo; a morte deve ser afastada custe o que custar. A medicina se empenha por preservar o simulacro da vida. Daí o esforço em usar todos os meios à disposição: reanimação, transplantes, controle de nascimentos... A morte é, nesse contexto, um mal que ainda não se conseguiu controlar, mas um dia a ciência e a tecnologia chegarão lá!
Quando doente, o indivíduo não é mais visto como corpo com uma biografia; o que conta são os sinais da doença, e não as possíveis relações com o ambiente e com as demais pessoas, os hábitos assumidos e o modo de ver a vida. Visto como organismo doente, o indivíduo é retirado de seu espaço social e levado para um espaço técnico onde tudo funciona sob a ameaça da morte.  Ele passa a ser visto e analisado como um caso entre outros casos. Esquece-se, assim, algo que para os antigos era importante: o mal era visto não simplesmente como uma lesão orgânica, mas como uma ruptura, um desequilíbrio nas inter-relações também sociais.
A morte é algo imanente à vida. Ela se forma com a mesma vida que a constitui e destrói. A identificação do organismo com o cadáver torna todos iguais, como iguais nos faz a morte. Somente uma linguagem individualizada é capaz de promover a vida. A linguagem não individualizada é disseminadora da morte. Eis aqui, talvez, o grande desafio para todos os que se comprometem com o cuidado autêntico do corpo e da vida humana.
“A partir da perspectiva da fé cristã, pode-se afirmar que a lealdade de Deus ensina-nos a acolher a vida como acontecimento do seu amor e permite-nos testemunhar este amor aos irmãos num serviço humilde e manso. É o que são chamados a fazer especialmente os médicos e o pessoal paramédico... (nos ambientes clínicos) cada um (é convidado a trazer) aos enfermos um pouco do amor do Coração de Cristo, e fazê-lo com competência e profissionalismo.” (Papa Francisco)