Primeiro Ato Institucional deu base legal para o regime

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No dia 1 de abril de 1964, reprimiu-se uma sociedade. Instaurou-se uma ditadura militar que perdurou até 1985. Algumas cicatrizes permanecem abertas. Luta-se, até hoje, para que seja feita a abertura dos documentos das Forças Armadas, papéis imprescindíveis para fornecer esclarecimentos sobre a época. Familiares dos mortos e perseguidos políticos seguem, sem esmorecer em desesperança, em busca de justiça.

À época, o golpe foi realizado aos olhos de uma sociedade alheia, de um dia para o outro. A transição foi imposta e, para os militares, era importante legitimá-la. Surgiu, então, no dia 9 de abril de 1964, o primeiro Ato Institucional (AI-1), que seria, presumidamente, o único.

O advogado e professor da pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (Pucrs) José Carlos Moreira da Silva Filho entende que o AI-1 representou uma ruptura com as instituições democráticas do País. “Violou frontalmente a Constituição Federal de 1946, elaborada por uma assembleia nacional constituinte legitimada por voto popular. O AI-1 foi uma tentativa de legitimar aquilo que, a princípio, não poderia ser legitimado. Caso fosse, realmente, uma revolução, como os militares insistiam em chamar o golpe, ela estaria legitimada sozinha. Representaria a vontade da população”, elucida. 

A doutora e professora de História do Brasil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Carla Simone Rodeghero reitera a necessidade que havia de fazer com que aquele movimento fosse reconhecido como legítimo, uma demanda da sociedade brasileira. “Os militares, ao declararem a revolução vitoriosa, trouxeram para si o poder constituinte. Disseram que manteriam a Constitução de 1946, mas os comandantes das Forças Armadas e, posteriormente, o presidente eleito, modificaram-na”, relata. “Uma lista imensa de pessoas que perderam direitos políticos ou mandatos veio junto com o AI-1. Boa parte do Congresso Nacional existente na época, que apoiava Jango (presidente João Goulart) e o regime anterior, foi excluído.”

O autoritarismo imbuído ao general Castelo Branco, primeiro presidente do regime, por meio do golpe, permitiu essas mudanças. “Entre o golpe e o AI-1, ninguém sabia se o regime ia realmente vingar. Mandatos foram cassados, direitos políticos foram suspensos, juízes perderam competência perante o Judiciário. O AI-1 autorizou que o ditador aplicasse todas essas medidas. Foi a primeira das operações de medidas repressivas que atingiram os apoiadores do regime deposto e militares com posição nacionalista”, descreve Carla. De acordo com a professora, os militares precisavam garantir apoio total entre eles. “A primeira Operação Limpeza foi nas Forças Armadas.”

O AI-1 deu vazão à temporada de perseguição que caracterizou a ditadura militar. As pessoas foram exiladas, forçadas a trocar de nome, a viver na clandestinidade. O pavor reinou. De acordo com Simone, a grande imprensa parabenizou a iniciativa do golpe. Houve, entretanto, resistência. Reações críticas ao rumo que o País estava tomando também eram registradas. E rapidamente silenciadas. 

O advogado da área criminal Iberê Athayde Teixeira, atuante em Itaqui, no Interior do Rio Grande do Sul, era líder estudantil na década de 1960. Quando a ditadura teve início, foi preso e levado para Porto Alegre. Após 15 dias de interrogatório, foi solto. “Fui acusado de crimes contra a segurança nacional. O que fazíamos eram políticas de aliança operária. Erámos engajados na luta pela reforma agrária, e isso, esses movimentos esquerdistas, incomodavam os ditadores”, argumenta o advogado. “O único campo de concentração da época se localizava em Itaqui. Era um campo cercado com arame farpado. Até o vice-prefeito de Itaqui foi parar lá. Jango, Luiz Carlos Prestes, Leonel Brizola. Todos esses sofreram após o AI-1.” 

Novo golpe é definido como improvável no momento atual

A imposição da ditadura militar foi favorecida pelo contexto amedrontador da Guerra Fria, que pairou após o término da Segunda Guerra Mundial. O professor Silva Filho revela que Castelo Branco já havia sido escolhido como futuro comandante do País entre os militares que planejavam o golpe. “O contexto nacional era muito diferente de hoje. Esse medo do comunismo não se aplicava ao Brasil. O que tínhamos, aqui, eram políticas reformistas. Foi criado um medo, o ‘perigo vermelho’. Ninguém queria que o Brasil seguisse o exemplo de Cuba, principalmente os Estados Unidos, que não desejavam que mais sociedades fossem construídas de maneira independente do controle deles”, explica. “Hoje, seria muito mais complicado instaurar um golpe desses. Temos uma estabilidade democrática institucional que nunca tivemos antes. Não podemos, obviamente, pensar que jamais aconteceria de novo, pois ainda se trata de uma estrutura frágil e que precisa ser reforçada. Mas, por enquanto, é uma conversa fantasiosa.” Carla reitera a opinião de Silva Filho. “Os militares não têm mais a importância que tinham naquele período. O que pode acontecer são tentativas de intervenção no jogo político, nas eleições, mas um golpe militar como o de 1964 não é mais viável”, esclarece. “A valorização do regime democrático é algo disseminado entre todos os atores políticos. Os apoiadores de 1964, na maioria, têm vergonha de assumir uma posição dessas hoje em dia.” 

Porém, Teixeira não é tão otimista. “Dizem que não há mais clima, mas me pergunto: como é que o deputado Jair Bolsonaro consegue ser reeleito todas as vezes? Há um público, sim. Diante da corrupção desenfreada, do auxílio a Cuba e da predominância de um partido de esquerda nas bancadas governamentais... Isso daria margem. Se houver uma revisão da Lei da Anistia, como está proposto, os militares que participaram do golpe de 1964 não ficarão satisfeitos. Dizem que não há clima, mas quem é que pode ter certeza?”, questiona o advogado. 

Após a instauração do AI-1, houve a imposição de mais 17, além de atos complementares. O mais drástico deles foi o AI-5, de 1968, que deu poderes extraordinários ao presidente da República e suspendeu garantias constitucionais. Os atos garantiam apoio internacional, principalmente norte-americano. A principal justificativa para a criação dos atos é que, à medida que apareciam novas situações, novas ondas repressivas se faziam necessárias. Estava, então, suspenso, por 21 anos, o diálogo com a liberdade.