Setor lácteo gaúcho pede socorro

Em meio a incertezas, mercado busca recuperação no segundo semestre de 2023

Por JC

Alta dos preços da soja e dos farelos de soja e milho é um dos problemas enfrentados pelos produtores
Ana Esteves, especial para o JC*
O setor lácteo, um dos mais importantes para o agronegócio gaúcho, amarga neste ano uma série de dificuldades: importação desenfreada de leite do Uruguai e da Argentina, tirando competitividade da indústria e renda dos produtores, estiagem, crise de cooperativas, como a

 

 

 

 

Seca reduziu produtividade das pastagens e qualidade da alimentação dos animais

A estiagem de 2022/2023, que afetou a produção gaúcha de soja e milho, impactou o mercado de leite. A redução na disponibilidade de alimentos para o gado, como a diminuição na disponibilidade de grãos usados na alimentação dos animais têm consequências diretas na produção leiteira. Os problemas hídricos resultaram na redução da produtividade das pastagens e da qualidade dos alimentos disponíveis para os animais.
"Isso pode afetar a saúde e o desempenho do rebanho leiteiro, resultando em uma redução na produção de leite. Além disso, a escassez de alimentos para o gado pode levar os produtores a reduzirem o tamanho do rebanho, seja por venda de animais ou diminuição da taxa de reprodução", ponderou o economista e professor da Universidade de Passo Fundo, Julcemar Bruno Zilli.
A falta de pasto e forragem adequados também levaram os produtores a recorrerem a alternativas menos nutritivas, como silagem de baixa qualidade ou alimentos concentrados mais caros. Isso pode aumentar os custos de produção e reduzir a margem de lucro dos produtores.
O presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag-RS), Carlos Joel da Silva, diz que, das demandas do setor junto ao governo federal, só parte foi atendida. O governo comprometeu-se com a Fetag e com os Sindicatos a conceder rebate para o Pronaf Custeio Pecuário, que não conta com a cobertura do Proagro Mais/Seguro Rural, 25% limitado a R$ 12 mil por operação o que foi feito.
"Mas a prorrogação das parcelas do Pronaf Investimento para o último ano do contrato, ficou de fora. A ação do governo federal foi boa, mas insuficiente", diz Silva. Segundo ele, a estiagem trouxe muitos prejuízos para os produtores, além da falta de água em muitas propriedades e de alimento, a silagem que foi feita também ficou comprometida, pois a qualidade do milho não foi boa.
 

Importação de leite da Argentina e do Uruguai gera apreensão no setor produtivo

A palavra inundação foi a mais empregada por especialistas do setor lácteo gaúcho para caracterizar as importações brasileiras de leite, creme de leite e laticínios (exceto manteiga e queijo) da Argentina e do Uruguai. O volume é considerado gigantesco e já afeta a renda de produtores e a competitividade da indústria. Por consequência da alta disponibilidade desses produtos no mercado interno, estão ocorrendo expressivas quedas nos preços pagos pelo leite aos produtores, em um momento de entressafra que sempre teve um cenário favorável e de aumento dos preços pagos ao produtor.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic) divulgou dados que apontam que, em relação a junho do ano passado, as importações brasileiras de leite e derivados tiveram aumento de 286,4% em valores negociados, chegando a US$ 263,2 milhões, e de 230,6% em volume de leite importado, atingindo 69,9 mil toneladas. O Rio Grande do Sul é o terceiro Estado que mais importou, chegando a US$ 34,1 milhões, com variação de 230,7% sobre o período de janeiro a abril de 2022.
"Estamos desolados frente à inundação de leite estrangeiro, para um Estado que consome só 40% dos lácteos que produz. Ou seja, sobra leite produzido internamente e agora recebemos mais volume de fora. Já somos exportadores de leite para outros estados do Brasil ao mesmo tempo que importamos de outros países. Isso é incoerente", afirma o presidente da Associação dos Criadores de Gado Holandês do Rio Grande do Sul (Gadolando), Marcos Tang.
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Em um mês, Cooperativa Piá tem redução de 93% na captação de leite

A falta de pagamento aos produtores de leite integrados da Cooperativa Piá fez que com a entrega de leite na indústria caísse 93% em apenas um mês: em abril, foram captados 180 mil litros leite ao dia e, a partir do mês de maio, 13 mil litros leite ao dia, conforme informações do ex-presidente interino da cooperativa, Severino Seger. Segundo ele, no passado, a indústria chegou a captar 600 mil litros de leite ao dia.
"Infelizmente, os gestores que renunciaram promoveram uma redução na captação de leite, pois não estavam pagando os produtores e, quando alguém não recebe pelo que está produzindo, é uma questão de sobrevivência procurar outros rumos. Agora, diversos produtores estão se comprometendo em retornar a fornecer leite para a Cooperativa Piá, frente às mudanças que estão sendo propostas pela diretoria", diz Seger. A dívida acumulada com os produtores chega a R$ 9 milhões.
Um fornecedor de leite da Piá, que preferiu não se identificar, disse que a cooperativa deve R$ 150 mil para ele por volumes de leite entregues. O produtor conta que o último pagamento que recebeu foi no dia 10 de abril, referente ao leite entregue no mês de março, e que suspendeu a entrega no dia 21 de maio, pois não havia recebido o valor referente a abril.
Ele entregava 1,1 mil litros de leite ao dia para cooperativa de Nova Petrópolis. "A troca foi fácil: no dia seguinte já estava entregando para a Lactalís. Não queria trocar, mas sem previsão de receber, tive que tomar esta decisão. A produção de leite tem um custo de produção muito alto, e a margem de lucro é pequena. Custos de alimentação, de combustível, material de limpeza", disse a fonte.
O produtor e a família dele são fornecedores desde a fundação da cooperativa, em 1972, e agora redirecionou a produção para Lactalís, empresa que está captando leite para a Languiru, outra cooperativa gaúcha em crise. A nossa reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação da Languiru, que informou que a empresa prefere não se manifestar no momento. Conforme a assessoria, a parceria que prevê a industrialização de leite pela Lactalís prossegue, assim como a produção de derivados na indústria de laticínios da Languiru, em Teutônia, mas a empresa não divulga volume de produção.
Outro fornecedor da Piá que também preferiu não se identificar, diz que parou de entregar leite em janeiro do ano passado, justamente por medo de não receber. "Minha propriedade entregava em torno de 20 mil litros de leite ao mês, desde 2012". Segundo ele, as entregas seguem suspensas, no aguardo das ações da nova diretoria. A produção está sendo recolhida pela Tangará lácteos, de Estrela.
O ex-presidente interino da Piá diz que, como o fornecimento de leite diminuiu, uma das consequências é a queda de produção por parte da indústria. Recentemente, as prateleiras de iogurtes do supermercado da cooperativa encontravam-se quase vazias, desabastecidas inclusive de produtos da marca Piá.
 
 

"Esperamos a retomada, para os próximos dias, da captação de leite e, com isso, a recuperação gradual da produção. Naturalmente, como o estrago feito pela Diretoria e Conselho Administrativo que renunciaram foi muito grande, a retomada será lenta e gradual, porém, sempre dentro de uma política planejada e ações concretas, como todos nós, no passado, estávamos acostumados a trabalhar", acrescentou Seger.

A administração provisória criou, entre voluntários e funcionários, pequenos comitês que começaram a trabalhar em diversas frentes e deixar uma proposta de recuperação, propondo meios da volta da captação de leite, retomada da produção e recuperação da credibilidade.
"Entre as medidas encaminhadas estão em andamento negociações com diversas empresas, para possíveis parcerias na área dos lácteos e de produtos da fábrica de doces cremosos. Percebe-se que investidores estão dispostos a participar desta recuperação, por ser uma marca gaúcha com certo sentimento familiar", disse Seger.Em assembleia de associados, realizada no dia 19 de junho, foi definida a nova diretoria da Piá. Foram eleitos Jorge Dinnebier como presidente, Ari Boelter para vice-presidente e Jonas Gottschalk para secretário.

Governo do Estado retém R$ 32 milhões do Fundoleite há mais de sete anos

Um dos pleitos mais demandados pelo setor lácteo gaúcho é a liberação, por parte do Governo do Estado, dos recursos do Fundo de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Leite do Rio Grande do Sul (Fundoleite).
"São R$ 32 milhões retidos, uma situação que compromete o objetivo do fundo, que é de custear ações, projetos e programas de desenvolvimento desta cadeia produtiva tão importante para a geração de trabalho e renda nas propriedades rurais, nos municípios e no Rio Grande do Sul", afirma o deputado estadual, Elton Weber (PSB).
Informações setoriais indicam que a falta de recursos afeta o avanço de projetos e até a realização da pesquisa mensal do Preço de Referência do Leite, divulgada pelo Conseleite/RS, que desde janeiro deste ano não é atualizada. "Queremos explicações do governo do Estado de porque há tanta dificuldade, segundo as entidades, da liberação de recursos do Fundoleite", frisou Weber.
Por meio de nota, a Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi) informou que "o governo está trabalhando para que a liberação desses recursos seja o mais rápido possível, assunto que vem sendo discutido há algum tempo, sabendo da importância do setor produtivo. Há questões administrativas e jurídicas que precisam ser superadas, mas já se encontram em análise jurídica, para manifestações futuras".
O secretário executivo do Sindicato da Indústria de Laticínios do Rio Grande do Sul (Sindilat-RS), Darlan Palharini, acrescenta que a verba do fundo serviria para uma série de iniciativas propostas pelas indústrias para aumentar a competitividade a campo.
"Como certificação de propriedades livres de Brucelose e Tuberculose, análise de solo para aumento da produtividade, cursos para incremento da competitividade das indústrias". Parte do valor também seria destinado para publicidade, campanhas de defesa e divulgação dos benefícios dos produtos lácteos.
"Para a campanha do Sindilat de enfrentamento do mercado de bebidas vegetais, mostrando as propriedades do leite bovino, sua importância, como é produzido, relatando a questão do bem-estar animal. Para que o consumidor consiga identificar o produto lácteo e da importância dele como alimento. Mas também como importância socioeconômica para todos o Rio Grande do Sul", acrescenta.

Pouca renda, altos custos e preços baixos fazem produtor abandonar atividade leiteira

O presidente na Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag), Carlos Joel da Silva, diz que muitos produtores de leite estão abandonando a atividade por três motivos: pouca renda, custo alto e preço baixo que deixa o produtor sem renda. "Além de ser um trabalho penoso, 365 dias por ano", acrescenta o dirigente. A Emater faz levantamento anual do número dos produtores em atividade no Estado e é preocupante a redução desse número: em 2016, eram mais de 80 mil produtores no Estado e, em 2022, em torno de 40 mil, o que representa uma queda de 50%.
O presidente da Associação Gaúcha dos Criadores de Gado Holandês (Gadolando), Marcos Tang, diz que o setor vive um problema socioeconômico grave, em um cenário de êxodo rural. "Tivemos uma redução importantíssima de produtores de leite que tiveram que ir para outra atividade. Muitas vezes, o leite emprega várias pessoas da mesma família, pois é uma atividade que exige muito, tem que ter escala para alguns poderem folgar, então, impedia as pessoas de deixarem o campo". Na opinião dele, o problema das importações de leite tende a agravar a situação.
Mesmo diante de um contexto de redução do número de produtores, a produção em si não caiu, graças ao aumento de produtividade. A média de leite por unidade produtora aumentou: antes era de 70 litros ao dia e hoje é 300 litros ao dia. "A indústria costumava falar que o produtor de leite tem que ser mais efetivo, pelo risco de não se adequar e parar. Realmente, alguns que não conseguiram se adequar, pararam, mas os que se modernizaram, se qualificaram, também estão com enorme dificuldade e também pensando em parar", reforça Tang.
Nesse contexto de abandono da atividade, a questão da Piá e da Languiru tem preocupado muito o setor. "Os produtores que continuam entregando para a Piá não estão com o pagamento em atraso, o problema são que ainda não receberam há mais de 45 dias e, por isso, pararam de entregar. Segundo a direção, agora vão ser pagos. Mas vai ter que ter um escalonamento então esses produtores estão sendo prejudicados", disse o presidente da Fetag. A preocupação do setor é de que, frente às dificuldades apresentadas pelas cooperativas, mais produtores abandonem a atividade.
E o cenário é ainda mais desanimador: se o primeiro semestre do ano foi muito ruim para o produtor, o segundo promete novos resultados desfavoráveis, pois mesmo em tempo de entressafra, quando os valores do leite ao produtor deveriam estar aquecidos, a realidade é outra. "Estamos num momento em que deveriam estar subindo os preços, mas, na verdade, estão caindo. Estamos na contramão, e isso preocupa muito porque os custos estão muito altos, junto com isso as importações aumentaram quatro vezes nesses primeiros meses do ano. Tudo isso vai agravar a crise dos produtores e muitos vão acabar saindo da cadeia do leite", completa Silva.
 

*Ana Esteves é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atuou como repórter setorista de agronegócios no Jornal do Comércio, Correio do Povo e Revista A Granja. Hoje, atua como assessora de imprensa e repórter freelancer. Também é graduada em Medicina Veterinária pela UFRGS.