Cultura judaica dá novo fôlego a estabelecimentos na capital gaúcha

Tradicional comércio de bens e serviços do Bom Fim, Rio Branco e Petrópolis se mescla a novas marcas

Por JC

Comunidade judaica empreende e lança negócios na capital gaúcha
Lívia Araújo, especial para o JC*
A comunidade judaica no Rio Grande do Sul tem um papel que se confunde com o desenvolvimento do comércio gaúcho. Boa parte do varejo local, principalmente em Porto Alegre, acabou mudando de mãos ao longo dos anos, mas uma nova geração de empreendedores está voltando a suas origens no Bom Fim e trazendo a cultura do Oriente Médio e do Leste Europeu ao gosto - e ao paladar - do público em geral, popularizando sabores e aromas que valem a pena serem experimentados.
 

A chegada da comunidade judaica ao Rio Grande do Sul e, mais particularmente a Porto Alegre, a partir das primeiras décadas do século XX, teve um papel notável no desenvolvimento do comércio e dos serviços da capital gaúcha e, especialmente, em bairros como  

Drinks inspirados na culinária judaica atraem público jovem

A população judaica dos Estados Unidos é a maior do mundo fora de Israel: em 2020, segundo o Pew Research Center, eram 7,5 milhões de judeus vivendo no país, dos quais 1,6 milhão vive somente em Nova Iorque, população que supera a soma dos habitantes das duas maiores cidades de Israel, Jerusalém e Tel Aviv.

Lojistas tradicionais mantêm vivas as lembranças da imigração

Bairro com forte presença histórica da comunidade judaica na capital gaúcha, o Bom Fim tem em suas ruas diversas casas comerciais que dão continuidade ao legado dos primeiros imigrantes judeus que chegaram ao Rio Grande do Sul e ajudaram a consolidar os negócios da cidade em lojas de diferentes segmentos.

A Ao Crochét mantém a tradição dos armarinhos e atende a todos que estejam à procura de itens para corte e costura: linhas, agulhas, botões, fitas, viés, zíperes e é, claro, material para tricô e crochê, artesanato que dá nome à loja.

Dona Regina conta que praticamente "nasceu atrás do balcão" e que ajudava seus pais, Jacob e Janete, a administrar a loja e atender os clientes, junto com as irmãs Rosa e Raquel. "Eu voltava do colégio e sentava com a mãe, ali mesmo onde me sento ainda hoje", aponta dona Regina para uma cadeirinha passando a entrada do estabelecimento. Hoje em dia, dona Regina é a única das irmãs ainda à frente do negócio, que administra com a ajuda da funcionária Luciana.

Sempre disposta a bater um papo com a clientela, dona Regina relembra com carinho e admiração clientes ilustres que eram fregueses habituais do Ao Crochét, como o escritor Erico Verissimo, que trazia a esposa Mafalda para comprar as linhas e lãs que usava para o crochê. Já nos dias de hoje, um dos frequentadores da loja é o acordeonista Renato Borghetti, por quem dona Regina confessa que é "apaixonada". "E ele sabe disso", diverte-se.

Outro estabelecimento que construiu suas bases a partir da imigração judaica ao Rio Grande do Sul é a Kelbert's, em atividade desde 1986 no número 6 da avenida Protásio Alves, nos limites do bairro Rio Branco e que já funcionou também como loja de presentes e perfumaria. Sua proprietária, Sabina Kelbert Canter, também já administrou a Farmácia Progresso, então instalada ao lado da Kelbert's, virada para a Ramiro Barcellos.

A história começou com a chegada de seu avô em meados dos anos 1910. O então sargento do exército russo veio a Porto Alegre para trabalhar na antiga Cervejaria Schneider, posteriormente Brahma, em cujas instalações hoje está o Shopping Total. O avô de Sabina abriu uma loja de móveis na Ramiro Barcellos, posteriormente tocada por seu pai.

Quando a filha manifestou o interesse pelo varejo de roupas, recebeu o apoio da família e montou seu portfolio de produtos com muitas viagens a São Paulo, principal polo atacadista de moda, com fornecedores principalmente nos bairros do Brás e Bom Retiro, este último também um bairro tradicional em que a comunidade judaica ajudou a construir as bases do comércio paulistano.

Sabina aponta que, ao longo dos anos, houve uma diminuição expressiva dos comércios fundados e administrados por famílias de origem judaica em Porto Alegre e, em especial, no Bom Fim. "As gerações mais recentes optaram por outras ocupações e profissões liberais, passando esses negócios adiante. O comércio é um prazer, mas pode ser uma prisão para muitos", admite, citando a necessidade de dedicação presencial constante - além das vendas online, que passaram a acontecer a partir da pandemia - e disposição para um ritmo intenso em datas festivas do comércio como o dia das mães e o Natal, por exemplo.

Não é seu caso, no entanto. Sabina se envolve no atendimento diário ao público da Kelbert's e, no caso de sua família, a geração mais nova - duas filhas e um filho - atuam ao seu lado e dão continuidade à loja do ramo de vestuário. O público da Kelbert's é variado, mas a principal clientela é de meia-idade. A loja tem também uma pequena seção de roupas para bebês e infantis e, nos últimos anos, especializou-se em tamanhos grandes, que vão até o 70.

A lojista lamentou o fechamento de muitas lojas que faziam do comércio do Bom Fim e seus arredores uma atividade intimamente ligada à comunidade judaica de Porto Alegre. "Muitos do bairro sentiram muito o fechamento da Casa Maria", conta Sabina, citando a antiga loja de calçados vizinha ao seu negócio.

Além do Ao Crochét e da própria Kelbert's, a lojista aponta também outro comércio tradicional que permanece de portas abertas: a Casa Salomão, no número 1.352 da avenida Osvaldo Aranha, que nos últimos anos passou a operar sob a marca Via Íntima, especialidade da casa. Saudosa, Sabina também cita outra loja emblemática dos arredores e que fechou suas portas: a Relojoaria Chaim, entre as ruas Ramiro Barcellos e Francisco Ferrer.

Apesar das muitas receitas de inspiração judaica, uruguaia e norte-americana, o cardápio também absorveu um típico prato colombiano: as arepas, tortilhas de milho, preparadas pelas mãos da chef Andrea, que também veio da Colômbia e dá seu toque pessoal ao preparo da iguaria, servida com molho vermelho, bacon e ovos.
"Os pratos não vêm só da nossa família. Eles vêm também com a Andrea e com toda a vivência da equipe". Sintetizando este multiculturalismo está um prato tipicamente gaúcho com um toque judeu: o "a la milatkes", a la minuta que usa o latkes, bolinho frito de batata, no lugar das fritas.
Fermann aponta o formato do Armazém Box 18 como bem-sucedido pela aceitação entusiasmada das ideias do cardápio pelo público, apontando um sinal que para ele é inequívoco: "os clientes já têm seus pratos favoritos e pedem pelo nome, por mais complexo que ele seja. E essa é a grande questão. A gente tem que ter um atendente que não é um 'tirador de pedido', e sim um vendedor, que sabe o que está vendendo. Isso ajuda o público a entender", revela. Outro fator que contribuiu para o sucesso dos pratos junto ao público é que, além do cardápio físico, o menu virtual da casa tem as imagens dos pratos, com uma apresentação cuidadosa e, principalmente, apetitosa.
O empresário, que comanda o grupo Yashar, detentor dos restaurantes Chica, Marujo, Mureta e a Panadería Del Este, também pretende ampliar os negócios que têm a cultura judaica "na vitrine". "Tenho o sonho de abrir uma delicatessen exclusivamente judaica, com um nome de família como 'Rachewsky and Sons' ou 'Rachewsky & Fermann'. Eu quero popularizar a culinária judaica. Nos Estados Unidos, essa comida faz parte do dia a dia do nova-iorquino. O bagel, o salmão defumado, são produtos que não são mais judaicos, são nova-iorquinos. E é isso o que eu gostaria de trazer para cá", vislumbra.

Armazém Box 18 aposta nas receitas de família

Um "dinner" norte-americano parecido com aqueles dos filmes de Hollywood, com café filtrado servido em refil e pratos com bacon, ovos mexidos e panquecas com calda doce, mas que também tem receitas com o dulce de leche uruguaio e as médias-lunas do nosso vizinho hispânico; igualmente, com delícias típicas de um lar judaico e que às sextas-feiras vende o chalá, o pão trançado tradicional das refeições do Shabbat; e, por fim, misturando tudo isso com o sabor e o calor do Brasil em uma inusitada mistura judaica em nosso tradicional "a la minuta".


A inspiração inicial do empresário era o Uruguai, com sanduíches feitos com as médias-lunas. Depois, no entanto, Fermann foi agregando elementos de outro país que ele costuma visitar com frequência: os Estados Unidos. "Como Nova York, que é uma cidade que eu amo, tem muitas delicatessen judaicas. Então, quando abri aqui, pedi para minha mãe me ajudar a fazer os latkes. Esse foi um caminho sem volta, porque do latkes eu fui para o patê de fígado, para a sopa de bola (Matzo Ball), para o shakshuka, os varenikes e aí todo um universo se abriu", relembra.

Hoje, o
Armazém Box 18 é lancheria, padaria, casa de carnes e delicatessen, em que o cliente pode levar para casa os mesmos itens usados na composição dos pratos: o pastrami da casa, feito com língua de boi, presunto serrano, húmus, chimichurri, entre outros.

Comida de mãe no coração gastronômico do Bom Fim

A palavra hebraica midbar significa "deserto" em português e tem a ver com a paisagem e clima seco do Oriente Médio. Mas não há nada de desértico ou árido no restaurante Midbar, que há dez anos está sob o comando do casal Sara e José Antônio Astarita.
Ao contrário: presente na rua Fernandes Vieira, 508, em um polo gastronômico com representantes das cozinha japonesa, italiana, espanhola, brasileira e australiana, o Midbar vive cheio na hora do almoço, com um público que busca os sabores do Oriente Médio, mas também uma cozinha caseira, com carinho de mãe.
Esse "sabor" não vem apenas do alimento, mas também pelo tom acolhedor e amistoso de Sara e José Antônio, que recebem os clientes novos e habituais de maneira calorosa.
Na verdade, os ares do deserto marcam presença por meio dos temperos característicos da região, como o cominho, o coentro ou o curry, presentes nos pratos oferecidos diariamente durante o almoço, com bufê livre, e também à noite, quando a maior parte do cardápio é consumida via delivery.
Antes de ser assumido pelo casal, o Midbar nasceu na parte de cima da sorveteria Cronks - outro ponto tradicionalíssimo da comunidade judaica do Bom Fim - pela iniciativa do chef israelense Igal Vischnevetzki. O ponto foi transferido para o foyer do antigo Clube de Cultura, na Rua Ramiro Barcellos, quando foi assumido por Sara e José Antônio em 2013 e há cinco anos se mudou para a Fernandes Vieira.
Sara conta que a mudança representou uma grande ampliação no público, trazido pela intensa circulação de pedestres na Fernandes Vieira, mas também afastou uma parte do público da própria comunidade judaica, principalmente os mais idosos que residiam nos arredores do Clube de Cultura e tinham no Midbar uma extensão de suas casas.
Porém, o restaurante ainda tem uma relação próxima com a comunidade. "Somos anunciantes do programa 'Hora Israelita'. Temos um retorno muito bom dos ouvintes e muitas encomendas para as datas festivas", salienta. A Hora Israelita é outro símbolo da comunidade judaica na Capital gaúcha, veiculado desde 1946. Atualmente, o programa é transmitido pela Rádio Bandeirantes de Porto Alegre, sempre aos domingos, das 8h às 10h.
Apesar de pratos tradicionalmente judaicos como os varenikes - uma massa recheada com purê de batatas e coberta com cebola frita, trazida pelos judeus poloneses -, o gefilte fish - bolinho frito de peixe, ou o shakshuka - ensopado de molho vermelho com ovos, Sara pontua que a ênfase do Midbar é no "sabor do oriente médio", presente especialmente no almoço especial dos fins de semana.
"A culinária da região é muito semelhante, com matérias-primas partilhadas pelos povos da região e que estão presentes na comida israelense, libanesa e marroquina", exemplifica a empresária. "Não dá para saber quem é o dono do falafel", diz Sara sobre o bolinho feito de grão-de-bico, mesma matéria-prima do húmus.
A tradição está presente também nas opções de saladas, que muitas vezes têm combinações de sabores exóticas para o paladar brasileiro e, mesmo assim, fazem muito sucesso, como o abacaxi com pimenta e a banana com mostarda. Outro prato dos mais apreciados pela clientela é a salada de ovos, vinda diretamente da cozinha da mãe de Sara. "Eram pratos do nosso dia a dia, como a salada de fígado, e que trouxemos diretamente para cá", recorda.
A proposta familiar do Midbar vem fidelizando adeptos dentro e fora da comunidade judaica, com admiradores cativos de toda Porto Alegre. "O maior presente para nós é quando um cliente volta depois de algum tempo, dizendo que está com saudades", celebra Sara.
 

"Eram pratos do nosso dia a dia, como a salada de fígado, e que trouxemos diretamente para cá", recorda. A proposta familiar do Midbar vem fidelizando adeptos dentro e fora da comunidade judaica, com admiradores cativos de toda Porto Alegre. "O maior presente para nós é quando um cliente volta depois de algum tempo, dizendo que está com saudades", celebra Sara.

* Lívia Araújo é jornalista formada pela Universidade Estadual Paulista. Já atuou nas redações da Gazeta do Povo, DCI e Jornal do Comércio e passou pela Diadorim Editora.