Nasce um vilarejo criativo em Porto Alegre

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O olhar sensível e inovador de algumas pessoas está transformando uma área, até então estereotipada como degradada, no primeiro polo de economia criativa de Porto Alegre. Parte da região do 4º Distrito - formada pelos bairros Floresta, Navegantes, São Geraldo, Humaitá, Farrapos e Marcílio Dias, na zona Norte da Capital - passa a ser ocupada por negócios como galerias de arte, produção de audiovisual e design, escritórios de arquitetura, brechós, escolas e espaços gastronômicos. Em um movimento espontâneo e ainda incipiente, a área refloresce por meio de convivência, ações coletivas e ideias que unem revitalização urbana e reestruturação produtiva.
O grupo mais perene e representativo desse polo em formação se chama Distrito Criativo. Formado por 67 artistas e empreendedores mapeados, o Distrito C, como é apelidado, não tem perímetros oficialmente definidos, mas se localiza no lado Oeste do bairro Floresta. O que motiva a união em torno do território não é um projeto cultural, nem de incentivo às artes, mas sim de impacto econômico e urbano. “Também não queremos ser só uma união de lojinhas para aumentar as vendas, mas um ecossistema que recupere o valor histórico do local”, explica o líder da iniciativa, Jorge Piqué.
Desde novembro de 2013, o grupo debate formas de criar um design comum no território, que identifique o polo, e melhorias urbanas a serem feitas e reivindicadas. Também organiza eventos na comunidade e passeios guiados abertos ao público. Piqué capitaneia a ação por meio da agência de inovação social UrbsNova, que se propõe a criar formas de organização inovadoras e de impacto social. No início dos projetos, a empresa planeja as iniciativas sem cobrar, mas a ideia é que elas se sustentem, a longo prazo, com patrocínios. Por enquanto, o Distrito C sobrevive da boa vontade e do investimento dos próprios empreendedores. “Há muito tempo, existe um discurso de revitalizar o 4º Distrito, mas ninguém faz”, citica Piqué.
Um dos primeiros engajados que apostaram na região foi o proprietário do Porto Alegre Hostel Boutique, Carlos Silveira. Ele, que já viajou por 83 países, começou a busca por uma casa com preço convidativo para transformar em hostel em 2010. “Diziam que o bairro estava degradado, mas eu não via nada de tão assustador. Só é possível revitalizar uma região trazendo negócios e pessoas para ela”, acredita. Hoje, ele lidera o Refloresta, grupo de apoio à revitalização da área, que organiza uma feira de hortaliças e frutas e um brechó de rua. “Tenho o sonho de trazer mais investimentos para cá. Meu negócio só vai ser bem-sucedido se o entorno também for”, projeta.
Há três anos, a galeria Bolsa de Arte, com 35 anos de história, também se mudou do bairro Moinhos de Vento para o Floresta. A proprietária, Marga Pasquali, apostou na localização, porque estava à procura de um espaço arrojado, amplo e próximo aos artistas. “Estamos acostumados a trabalhar com sensibilidade e nos demos conta que aqui era o nosso lugar. O bairro é charmoso, tranquilo, arborizado e com construções antigas, mas as pessoas ainda não o descobriram”, conta. A Bolsa de Arte também tem uma sede no bairro Vila Madalena, em São Paulo, conhecido como o vilarejo alternativo das artes e da boemia. Marga acredita que o Floresta caminha para se igualar ao bairro paulistano, mas, para isso, precisa que mais pessoas acreditem na ideia de investir na região.

Região tem história de produtividade

Os artistas e empreendedores do 4º Distrito vêm percebendo o potencial urbanístico e produtivo de uma região que arquitetos e urbanistas consideram nobre. Mesmo degradado na aparência e em fase de reconstrução, o território ainda resguarda a riqueza arquitetônica de um tempo que representou o boom industrial de Porto Alegre. Seu tesouro são as fachadas sem muros. “O pessoal que trabalha com criatividade valoriza esse tipo de lugar, em que a morfologia dos edifícios faz com que as pessoas não tenham medo de chegar”, explica a professora de urbanismo da Pucrs Cibele Figueira, coordenadora da especialização em Arquitetura da Cidade.
Nos anos 1920, indústrias se instalaram no 4º Distrito, ponto estratégico de entrada e saída da Capital. Operários e proprietários das fábricas formaram uma microestrutura de cidade, com comércio próprio, residências, fábricas, praças e clubes à beira do Guaíba. “Especialmente o Floresta era como gostaríamos que fossem os outros bairros, com várias classes sociais convivendo”, descreve Cibele.
A localidade se desenvolveu, mas a região sofria com inundações e as obras da avenida Farrapos desconectaram a orla do Guaíba do bairro Floresta. Empresas cresciam e necessitavam de novas áreas, dando início aos clusters industriais em outras localidades. Sem incentivos planejados da prefeitura, a região foi se desconfigurando e começou a se esvaziar na década de 1960. Permaneceu abandonada e lembrada como uma zona insegura. Mas arquitetos e profissionais da área criativa defendem que o território não é tão cinza quanto parece.
Há 72 anos no local, a confecção de artigos de Natal Wanda Hauk é a única integrante do Distrito Criativo sobrevivente do tempo da explosão econômica da região. A atual sócia-proprietária, Sandra Hauk, conta que acompanhou o abandono e o desenvolvimento do bairro desde que nasceu, há 61 anos. “Não saímos daqui, porque somos teimosos”, brinca. “A localização é excelente e nossa vizinhança é engajada. Em um movimento grande assim, temos mais força para pressionar a prefeitura a nos fornecer estrutura.”
Desde os anos 1990, o burburinho de revitalizar o 4º Distrito e algumas ações específicas de obras da prefeitura e de investimentos privados cresceram. Mas, nos últimos anos, há pessoas particularmente interessadas no território. “Além de ser um movimento produtivo e urbanístico, o que está acontecendo no Floresta é um movimento social. Há pessoas se mobilizando para que as coisas aconteçam”, comemora Cibele.  

Espaços concentram negócios, cultura e aprendizado

Oliveira criou o CC100, espaço alugado  por diferentes empreendedores criativos. JONATHAN HECKLER/JC
Na onda de pensar coletivamente o desenvolvimento de um polo de economia criativa no 4º Distrito, alguns empreendedores também investiram em áreas privadas para serem usados de forma compartilhada. Os multiespaços exclusivos para locatários que tenham o perfil do local ganham vez na região. Um deles é o complexo arquitetônico Vila Flores, listado como patrimônio histórico e cultural de Porto Alegre e transformado em um centro de cultura, educação e negócios inovadores.
Construído em meio à onda industrial na década de 1920, o conjunto servia como casa de aluguel para trabalhadores industriais, mas permaneceu abandonado. Herança familiar, o Vila Flores está sendo reformado e ocupado diariamente por pessoas interessadas em conviver e multiplicar conhecimento, que alugaram o local para realizarem seu trabalho. Entre elas, companhias de teatro, artistas e estúdios de design, arquitetura e criações em geral.
“Moro em São Paulo, não conhecia as pessoas do bairro e comecei a chamar a comunidade para conhecer o Vila Flores e ajudar a pensar o que poderíamos fazer”, conta João Wallig, proprietário do complexo. Todo o conceito do espaço foi pensado de forma coletiva. Com experiência na área corporativa, Wallig compreende que o que faz diariamente, até hoje, é uma pesquisa de mercado orgânica, com a participação das pessoas.
O ambiente também se dispõe a ser um lugar de aprendizado, de apresentações e de moradia. Tudo é questão de negociar. “Conversamos com cada locatário para chegarmos em uma parceria viável para nós e para ele”, explica a gestora cultural Aline Bueno. O Vila Flores também é palco de projetos culturais e eventos como o projeto Simultaneidade (foto de capa), que reuniu artistas do bairro. Por enquanto, apenas os proprietários investiram na reforma, mas a ideia é que a obra conte com doações, patrocínio privado e financiamentos públicos.
Outro espaço privado alugado por diferentes empreendedores criativos é o CC100. Seu criador, Auber de Oliveira, é um investidor imobiliário que não tinha intimidade com profissionais da área, mas percebeu o movimento de criação do polo e encontrou um caminho para seguir. Em 2011, comprou um prédio antigo e abandonado, investiu em uma reforma e, neste ano, passou a locar para interessados selecionados. Para isso, buscou ajuda em um escritório de assessoria especializado em gestão criativa. “Procuramos um público sensível para alugar os espaços, que valorize o local que criamos com carinho”, considera Oliveira.  

Planejamento público é essencial para sustentar iniciativas  

Cláudia investigou o 4º Distrito em sua dissertação de mestrado. JONATHAN HECKLER/JC
Porto Alegre é a capital brasileira com maior potencial de desenvolvimento de economia criativa, de acordo com um estudo da Fecomércio de São Paulo, publicado em 2013. Para o coordenador do Observatório de Economia Criativa da Ufrgs e professor da universidade Leandro Valiati, a formação de um polo no 4º Distrito ainda não está consolidada, mas há um início. Segundo o economista, falta uma articulação produtiva, com políticas públicas que possibilitem maior investimento privado. “Esse movimento pode permitir uma virada importante, mas é preciso que aconteça de forma integrada entre o governo e setor privado”, opina Valiati.
A arquiteta Cláudia Titton, fundadora do escritório Urbana Arquitetura e professora da Ulbra, investigou o 4º Distrito em sua dissertação de mestrado, finalizada em 2011, antes do início da formação de um polo na região. A pesquisa indicou que a regeneração urbana do local poderia acontecer por meio de uma reestruturação produtiva, “devolvendo vida ao lugar”, segundo as palavras de Cláudia. No entanto, há três anos, a conclusão do trabalho da arquiteta a decepcionou. “Descobri que todos os planos do município para o 4º Distrito são intenções, não projetos. Não há planejamento estratégico e estudo de viabilidade para a área”, critica.
Hoje, a arquiteta acredita que a classe inovadora é capaz de ser o motor do desenvolvimento da região, mas precisa de um aporte governamental para conseguir, a longo prazo, manter a iniciativa viva. Desde 2011, Cláudia afirma não ter visto os projetos urbanísticos da prefeitura para a o 4º Distrito evoluírem como ela gostaria.
Embora de forma lenta, as medidas começam a tomar forma. Em setembro deste ano, o Gabinete de Inovação e Tecnologia (Inovapoa) da prefeitura de Porto Alegre, em parceria com o IPA, inaugurou uma incubadora no DC Navegantes, localizado no 4º Distrito,  para capacitar oito empreendedores inventivos com propostas para a área social e geração de emprego e renda. Chamado Tecendo Ideias, o espaço é um projeto embrionário, que pretende contribuir com o desenvolvimento do polo de economia criativa na região.
Além disso, a prefeitura deve lançar, em novembro, o Plano de Economia Criativa da Capital, elaborado com outras 38 instituições de diversos segmentos. Segundo a secretária do Inovapoa, Deborah Vilella, o objetivo é mapear as áreas de Porto Alegre com potencial para negócios criativos e, a partir daí, conceder redução de impostos para empresas que se instalarem nelas, com incentivo da Lei de Inovação Tecnológica.
Outra intenção é acelerar os processos de licenciamento para empresas que desejarem se instalar nas regiões traçadas. “Todos queremos que o 4º Distrito seja revitalizado, mas falta unir as ideias para alavancar a região. A meta é que a prefeitura faça isso a longo prazo”, planeja Deborah. A definição das áreas com potencial para economia criativa deve se iniciar em 2015 e espelhar-se no que já foi feito em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O arquiteto e supervisor de desenvolvimento urbano da Secretaria Municipal de Urbanismo (Smurb), Hermes Puricelli, integrante do grupo de trabalho do 4º Distrito, admite que, no momento, a secretaria está mais focada em aprovação de projetos e licenciamentos do que em planejamento territorial. “Há dificuldades porque a regeneração do território não é a prioridade. Ainda temos favelas no 4º Distrito”, considera. Para Puricelli, a organização da sociedade em prol de um território é, muitas vezes, mais importante do que as ações governamentais.

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