Van Gogh e a arte de sobreviver na noite da Capital

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A boemia de Porto Alegre não é mais a mesma. O hábito de amanhecer em botecos está cada vez mais escasso. E isso não é nada bom para um dos ícones da noite da Capital gaúcha. O bar notívago Van Gogh, que funciona há quase seis décadas na esquina da rua da República com a avenida João Pessoa, experimenta uma transição incerta. Gerações mais jovens não repetem os hábitos da clientela tradicional, como atravessar a madrugada no bar e só voltar para casa à luz do dia. Os gestores do ponto admitem vender a operação e acham que os porto-alegrenses não sentirão falta do Van Gogh.
O boteco pouco mudou em 59 anos. A maior transformação foi na propriedade: ao todo, quatro trocas de mãos, entre o fundador, o Zé Catarina, como era conhecido por ter vindo do estado vizinho, e os atuais donos, Claudio e seu irmão Jair Piovesani. A dupla está desde 1993 à frente da operação. A decoração amadeirada segue o estilo de pubs, diz o sócio-gerente Claudio. O horário é tipicamente de botecos da noite, abrindo às 17h e fechando por volta de 5h ou 6h. “Ou quando o último cliente sair. Cansamos de encerrar a jornada ao meio-dia”, recorda o saudoso sócio-gerente. Marcas do local ainda se repetem de vez em quando, como brigas e bate-bocas de namorados ou de marido flagrado pela esposa com a amante em alguma mesa na penumbra.
Os anos de 1980 e 1990 marcaram o último ciclo de grande efervescência do estabelecimento. O ambiente ficava tomado, todos os dias. Grandes nomes da música popular brasileira, de Lupicínio Rodrigues, Jamelão a Caetano Veloso, acomodaram-se nas mesinhas em tom de marrom escuro, após sessões de seu repertório em algum local de shows. Cada geração de compositores em seu tempo. Lupicínio era um assíduo frequentador. Jamelão não deixava de aparecer quando aterrissava na Capital. Caetano passou pelo Van Gogh há cerca de oito anos, pela terceira vez, contou Piovesani. “Tenho a foto daquele momento. Até ele não tem aparecido”, lamentou o gerente.
Músicos da Ospa também marcavam ponto no Van Gogh. Além de jornalistas, escritores e políticos. Militantes de partidos de esquerda e centro comemoravam vitórias ou afogavam as decepções da derrota no boteco, com a vantagem de estar num endereço bem localizado, a João Pessoa. Entre as últimas celebridades a pisar no bar, para alegria de garçons e clientes, foi a atriz e modelo Luana Piovani. Mas Claudio não recorda mais a data. “Faz uns três anos”, especulou o dono. “Foi a atração naquela noite. Como é bonita.”
O nome do bar obviamente foi inspirado no magistral pintor holandês Van Gogh, cujas reproduções do famoso autorretrato, a obra mais popular, e os girassóis, decoram o ambiente. O que atrai ainda a clientela, mesmo com redução de 40% na frequência, é o cardápio que se mantém fiel às origens, com a tradicional sopa de capelletti de frango e comidinhas da culinária regional – do carreteiro ao risoto e filés, temperado com preços em conta e porções fartas.
O boteco sempre cativou seus frequentadores mais assíduos pelos garçons, como seu Leo, apelido de Clarel Silva, que se despediu da rotina diária há três anos, depois de sofrer um AVC (acidente vascular cerebral). Seu Leo estava com 86 anos, hoje aos 89 anos fica em casa. “Se ele não tivesse tido o problema de saúde, ainda estaria por aqui”, aposta o sócio-gerente. Clientes contam que seu Leo não acertava um pedido, trazia sopa de aspargos em vez de capelletti. Virou folclore, o que aumentava o prazer de passar pelo boteco.

Um bar que vale muito

Lei seca, normas antifumo, restrição para manter mesinhas na calçada durante a madrugada e público jovem que volta mais cedo para casa. Os ingredientes colaboram para aumentar a convicção dos atuais donos de que a venda do ponto pode estar próxima. Quem sabe até o fim do ano, adianta Claudio Piovesani. “Só de pensar dói o coração, mas amadurecemos a ideia há dois anos.” Ofertas para arrematar o ponto, com mais de 120 metros quadrados, não faltam.
O sócio-gerente se reuniu com um interessado entre muitos que bateram à porta em poucos meses. A proposta terá de atender ao preço que os donos avaliam para o estabelecimento: em torno de R$ 500 mil. Na conversa com o suposto comprador, o sócio-gerente identificou que o eventual sucessor pode abrir mão da grife. O modelo de negócio deve incluir almoço e uma rotina menos notívaga.
Piovesani não se surpreende e não espera que o Van Gogh faça falta à vida da cidade. A ligação emocional existe para quem se entregou anos e anos ao dia a dia do boteco, cuidando de bêbados, tentando apartar discussões acaloradas. “Ultimamente, está muito calmo, nem briga tem mais.” A receita do negócio caiu, o grupo de garçons foi reduzido. “Ando cansado da noite. Há 20 anos não sei o que é ter férias”, lista o proprietário, com 53 anos.
Caso troque mais uma vez de dono, e desta vez de nome, o Van Gogh poderá ser imortalizado em uma publicação a ser lançada em 2014 e que retratará a boemia da Capital. O jornalista Olides Canton, que cuida das entrevistas e textos, lembra que o estabelecimento é um sobrevivente da safra de botecos da noite porto-alegrense. “Sobraram poucos neste perfil”, observa Canton. O livro contará a história de cerca de 120 pontos, 90% já fechou as portas.