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Mesmo com poder de veto da Rússia, ONU ainda é relevante na situação com a Ucrânia, dizem analistas
A ideia original da ONU era a de que as decisões fossem tomadas de forma conjunta, e o veto só seria usado como último recurso
"Se você está se sentindo inútil hoje, imagina a ONU", diz uma piada que vem sendo compartilhada nas redes sociais nos últimos dias, sobretudo desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro. "A ONU fazendo reunião para lançar outra nota de repúdio", dizia um tuíte anterior à Assembleia-Geral extraordinária, que se encerrou na quarta-feira (2).
A percepção de que as Nações Unidas não têm tido força para conter a Rússia de atacar a Ucrânia aumentou ainda mais depois que Moscou vetou uma resolução contrária à guerra no Conselho de Segurança na semana passada, o que já era esperado.
Afinal, o que a ONU pode fazer de fato para impedir a Rússia de invadir o país vizinho?
Especialistas afirmam que o canal para isso é, de fato, o Conselho de Segurança, no qual a Rússia, junto de EUA, China, França e Reino Unido, tem poder de veto. Com o instrumento bloqueado pelo Kremlin, a efetividade da resposta diminui, mas o órgão ainda é importante, dizem analistas ouvidos pela Folha de S.Paulo.
De todos os órgãos da ONU, o único que tem a capacidade de impor suas decisões sobre o restante dos estados-membros, explica o professor de relações internacionais da UFMG Dawisson Belém Lopes, é o Conselho de Segurança, órgão fundado em 1945 e composto por 15 membros, dez deles rotativos e cinco permanentes - estes últimos com poder de veto.
A ideia original era a de que as decisões fossem tomadas de forma conjunta, e o veto só seria usado como último recurso. "O princípio era que os cinco vencedores da Segunda Guerra Mundial deveriam andar juntos, e que essa gestão condominial da política internacional era o único jeito de fazer as coisas funcionarem. Se fosse cada um por si, não daria certo, como foi com a Liga das Nações (espécie de precursora da ONU, formada ao fim da Primeira Guerra), que não foi capaz de impedir a Segunda Guerra", diz.
Com a União Soviética preocupada com a possibilidade de a ONU ser usada pelos países ocidentais contra o bloco comunista, deu-se aos membros permanentes do Conselho de Segurança a possibilidade de vetar decisões do grupo. Mas de cara houve uma espécie de manobra diplomática, lembra Lopes, quando em 1950 a União Soviética barrou uma proposta de ação militar dos Estados Unidos na guerra da Coreia - já que o norte da península, comunista, era alinhado ao Kremlin.
"Havia um obstáculo incontornável no Conselho de Segurança, e os EUA fizeram uma manobra e levaram o debate para a Assembleia-Geral, que não pode obrigar outros países a cumprirem suas decisões, mas tem um poder simbólico muito forte. E os Estados Unidos então enviaram tropas com um manto legitimador das Nações Unidas", diz.
É esse papel de legitimidade que ainda se pode esperar da ONU no caso da guerra na Ucrânia, diz Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da Faap. A questão, segundo ele, não é a Assembleia-Geral tomar uma atitude concreta, “mas ilustrar o isolamento diplomático russo, o que é um problema do ponto de vista de imagem, e mostrar a falta de legitimidade da invasão”.
O professor exemplifica com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, à revelia do Conselho de Segurança, que não havia aprovado a medida. "Fizeram sem a ONU porque eles tinham poder para isso. Mas o custo foi alto, espalhou um antiamericanismo pelo mundo, a situação ficou muito ruim para os EUA. Se tivessem agido com a ONU, teriam muito mais legitimidade", diz.
Adriana Erthal Abdenur, diretora-executiva da plataforma Cipó, que estuda questões do clima, paz e governança, afirma que as ações russas enfraquecem os mecanismos de paz da ONU, mas que há uma série de outras medidas que a ONU pode tomar - e já está tomando - em relação à Ucrânia.
Além da pressão política de uma condenação global, as Nações Unidas devem protagonizar a ajuda às vítimas da guerra, ao acionar por exemplo mecanismos para lidar com refugiados, diz a doutora pela universidade de Princeton. Também pode criar uma comissão para investigar violações cometidas na guerra, assim como destacar um enviado especial para apoiar mediações e negociações.
Há ainda a ameaça russa do uso de armamento nuclear - a ONU tem mecanismos para tentar prevenir ataques do tipo. O órgão também, mais adiante, pode ter papel importante no monitoramento de um cessar-fogo, uma vez que ainda é considerado um ator imparcial. "Em que pese todas as falhas do sistema das Nações Unidas, em última instância é para a ONU que os países-membros estão olhando, porque trata-se de um espaço legítimo universal onde os conflitos podem ser resolvidos, ou, em certas circunstâncias, prevenidos", diz Abdenur.
Ela lembra que, por mais que o mundo tenha visto conflitos em grande escala, sobretudo no mundo em desenvolvimento, desde a fundação da ONU o mundo ainda não presenciou uma terceira guerra mundial. E cita Dag Hammarskjöld, ex-secretário-geral do órgão: "A ONU não foi criada para levar a humanidade ao céu, mas para salvá-la do inferno".