Trinta anos após demarcação, terra Yanomami vê crescimento de garimpo e destruição

Pelo menos desde a década de 1970 os indígenas na região já sofrem com o contato com pessoas de fora, o que levou a uma enorme mortandade na região

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Manifestantes indígenas marcham durante uma manifestação para exercer pressão antes de uma decisão crucial da Suprema Corte que poderia tirar suas terras ancestrais, em um acampamento de protesto em Brasília em 10 de setembro de 2021. Grupos indígenas no Brasil acusam o presidente brasileiro Jair Bolsonaro de sistematicamente atacar seus direitos e tentando abrir suas terras para o agronegócio e a mineração. A sentença, que pode afetar mais de 200 terras indígenas atualmente em demarcação, segundo o Instituto de Meio Ambiente Social (ISA), que defende os direitos dos povos indígenas.
As palavras "garimpo" e "destruição" voltaram a rondar com frequência a Terra Indígena Yanomami nos últimos anos. Desde sua demarcação, há 30 anos, o território passa por um de seus momentos de maior atenção em meio ao aumento de desmatamento, problemas de saúde e intensificação do assédio garimpeiro.
A realidade de riscos na terra indígena, porém, já é antiga. Pelo menos desde a década de 1970 os indígenas na região já sofrem com o contato com pessoas de fora, o que levou a uma enorme mortandade na região.
Em 2 de setembro de 1979 o jornal Folha de S.Paulo publicava um título que dizia "Yanomamis estão ameaçados de extinção, sem um parque". No texto, lia-se sobre milhares de indígenas doentes e mortos e que uma das principais ameaça naquele momento era a BR-210, conhecida como Perimetral Norte.
"Mil índios mortos por doenças viróticas e grupos inteiros reduzidos à mendicância e à prostituição. Uns poucos foram recrutados como sub-mão de obra para o inesgotável trabalho das serrarias ou, nas fazendas, como vaqueiros, para zelar por seu próprio flagelo: o boi", diz a reportagem, que alertava que equipes de vacinação solicitadas três anos antes ainda não atuavam na área.
O garimpo também era outro ponto já levantado e encontrava apoio em parte do poder político.
Na década seguinte, 1980, a invasão de dezenas de milhares de garimpeiros -fala-se entre 30 mil e 40 mil- na terra indígena se tornou realidade. Naquele momento, além disso, o território estava dividido em cerca de 21 pequenas células de povoamento indígena, pulverização que era apontada como mais um ponto de fragilidade.
"Era uma tentativa de consolidar a presença garimpeira no território", afirma Márcio Santilli, sócio-fundador do ISA (Instituto Socioambiental) e ex-presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), sobre as "ilhas" demarcadas.
Em pouco anos, estima-se que cerca de 20% dos yanomamis tenham morrido, segundo a ONG Survival International, que participou nas movimentações de organizações e de indígenas para demarcação da Terra Indígena Yanomami.
Foi só em 1992, com decreto em 25 de maio, que o então presidente Fernando Collor de Mello homologaria a Terra Indígena Yanomami.
Com o tempo e após grandes perdas humanas, uma parte dos invasores foi expulsa da terra indígena. Diversos problemas persistiram, porém.
"Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós", afirmou o presidente Jair Bolsonaro (PL), durante uma de suas lives semanais, em 2020. "A reserva Yanomami tem mais ou menos 10 mil índios. O tamanho é duas vezes o Estado do Rio de Janeiro. Justifica isso? Lá é uma das terras com o subsolo mais rico do mundo. Ninguém vai demarcar terra com subsolo pobre. Agora o que o mundo vê na Amazônia, floresta? Tá de olho no que está debaixo da terra", disse, também em 2020.
O presidente é um defensor da mineração em terras indígenas, apesar da visível destruição e dos problemas sociais que o garimpo ilegal leva para essas áreas socioambientais protegidas.
Mais uma vez, a terra indígena se vê diante de uma escalada de destruição por garimpo, além de denúncias de violência, estupros e assassinato. Dados do Inpe mostram uma explosão de desmate em 2019, primeiro ano sob o governo Bolsonaro, atingindo o maior valor da base de dados disponível (desde 2008), com mais de 19 km² derrubados. O número não é elevado, comparado ao grande desmate na Amazônia, mas é superior ao de anos anteriores.
Sob Bolsonaro, o desmate acumulado chega a mais de 28 km² -mais de 17 vezes a área do parque Ibirapuera, em São Paulo-, valor superior ao visto em governos anteriores.
Um relatório produzido pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do ISA, aponta que, em 2021, a destruição associada a garimpos cresceu 46% na terra indígena em relação a 2020, e chegou a 3.272 hectares. O monitoramento é feito desde 2018 e esse foi o maior aumento já documentado.
"Esses empreendimentos de garimpagem predatória são altamente capitalizados. Não estamos falando mais de garimpo artesanal. Hoje falamos de um garimpo altamente destrutivo, com dragas e escavadeiras gigantescas introduzidas nesses territórios. Estamos falando de um apoio logístico aéreo, de empreendimentos gigantescos."
Ainda segundo Santini, a situação atual ainda ganha outro verniz de complexidade com a participação de organizações do crime organizado, o preço alto do ouro internacionalmente e o respaldo que o garimpo encontra no governo federal e estadual de Roraima.
Em 2021, a lei estadual 1.453, proposta pelo governador de Roraima, Antônio Denarium (Progressistas), facilitava a liberação de garimpos no estado e ainda liberava o uso do altamente tóxico mercúrio na atividade. A lei foi suspensa pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).
O relatório da Hutukara Associação Yanomami também aponta relatos de abusos sexuais e assédio a mulheres e crianças. Um dos casos teria ocorrido nos arredores do rio Apiaú (no curso do qual há um povo isolado voluntariamente, os moxihatëtëma), onde, diz o documento, ocorre frequentemente oferta de bebidas alcoólicas e drogas. O documento exemplifica uma espécie de relacionamento arranjado entre uma jovem yanomami e um garimpeiro, em troca de mercadorias.
Outro caso citado nas proximidades desse rio é o de um garimpeiro que teria ofertado drogas e bebidas a indígenas e que, quando todos estavam embebedados, estuprou uma criança. Também há relatos de exploração sexual de mulheres indígenas nos rios Mucajaí e Couto Magalhães.
Recentemente, uma denúncia de outro estupro e morte de crianças levou à movimentação em redes sociais questionando "Cadê os Yanomami?".
A saúde dos indígenas na terra protegida também preocupa. Segundo o levantamento da Hutukara Associação Yanomami, há uma crise na região, com aumento dos casos de malária e de desnutrição infantil. A situação ganhou destaque recentemente com uma foto uma menina yanomami deitada em uma rede e com as costelas expostas.
"Ao mesmo tempo em que você tem um processo intenso de desassistência por parte de estado do Governo Federal, você tem sim incentivo a penetração de terceiros e cooptação. Você se vale da miséria que você gera para facilitar a submissão", diz o especialista.
Recentemente, uma decisão judicial apontou o risco "morte em massa de indígenas" na terra yanomami. Há também decisão que determina ações para a retirada de milhares de garimpeiros que estão no local.
"O dano político, dano de imagem, o ambiental e o material têm hoje uma escala muito maior do que antes. A insustentabilidade desse modelo predatório é ainda mais gritante", afirma Santini.
Procurada, a Funai enviou o link de uma publicação recente na qual afirma que "coordena ações permanentes de proteção na Terra Indígena Yanomami, em Roraima". A fundação, no texto, descreve ações de doação de alimentos e de prevenção de espalhamento da Covid entre indígenas. Além disso, fala sobre operações contra garimpo.
"Uma operação conjunta realizada recentemente combateu o garimpo ilegal e resultou na inutilização de 22 aeronaves, além da apreensão de outras 89 e fiscalização de 87 pistas de pouso clandestinas na Terra Indígena Yanomami", diz a nota, que fala em 38 prisões por crimes ambientais e apreensão de quase 30 mil quilos de minério. "A operação também apoiou a extrusão de não indígenas e garimpeiros, além do restabelecimento de Bases de Proteção Etnoambiental."
Procurado, o governo de Roraima afirmou que a lei citada na reportagem dizia respeito a exploração legal em terras estaduais, não em terras indígenas. Em nota, o estado cita ainda diversas ações destinadas aos indígenas, como projetos visando agricultura, criação de peixes e gado. "O projeto de gado é também uma forma de garantir a segurança alimentar dos povos indígenas", diz a nota.
Folhapress