'Proteção natural' pode estar entre as causas da baixa contaminação de Covid-19 em crianças

Com sintomas mais leves da doença, faixa etária entre 0 e 19 anos tem mais casos ambulatoriais e tratáveis em consultório

Por Fernanda Crancio

Espanha, coronavírus, crianças podem sair com pais (2) Espanha, coronavírus, crianças podem sair com pais (2)Naidelin, 5, and her doll pose wearing a face mask in the street in Santa Cruz on the Canary Island of Tenerife, on April 26, 2020 during a national lockdown to prevent the spread of the COVID-19 disease. - After six weeks stuck at home, Spain's children were being allowed out today to run, play or go for a walk as the government eased one of the world's toughest coronavirus lockdowns. Spain is one of the hardest hit countries, with a death toll running a more than 23,000 to put it behind only the United States and Italy despite stringent restrictions imposed from March 14, including keeping all children indoors. Today, with their scooters, tricycles or in prams, the children accompanied by their parents came out onto largely deserted streets. (Photo by DESIREE MARTIN / AFP)
Ao contrário dos adultos, crianças têm sido menos infectadas pelo novo coronavírus, apresentam sintomas muito mais leves e raramente desenvolvem formas graves da doença. E, apesar de ainda não haver estudo conclusivo a respeito, a explicação para isso pode estar na combinação entre sistema imunológico mais maduro, poucas comorbidades e a proteção natural' dos pequenos.
De acordo com a pediatra, alergista e imunologista Helena Velasco, do Hospital Moinhos de Vento, apesar de as crianças se contaminarem e transmitirem Covid-19, estudos sobre a carga viral desse grupo ainda são inconclusivos e, embora recentemente pesquisa de Harvard tenha apontado a possibilidade de concentrarem carga viral mais alta que a dos adultos, isso não significa maior capacidade de contágio ou de risco de serem infectadas.
Pelo contrário, é provável que crianças se beneficiem do fato de terem a imunidade mais robusta, resultado de uma série de vacinas que tomam ao longo da infância. "Crianças têm um sistema imunológico mais treinado para responder aos vírus, como ao da Covid, e estão mais protegidos por entrarem em contato com outras doenças e estarem mais imunizadas", aponta a médica.
Outra hipótese pode estar relacionada à enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), que facilita a entrada do SARS-CoV-2 (coronavírus) nas células e tem expressão limitada na infância, período em que os pulmões ainda estão em desenvolvimento, o que acabaria por proteger as crianças de formas graves da doença. "Uma das hipóteses das crianças terem menos sintomas seria terem menos receptores ACE2, que facilitam a entrada do vírus nas células", explica Helena.
Em todo o mundo, menos de 10% do casos de Covid foram registrados em pacientes menores de 19 anos. No Rio Grande do Sul, até sexta-feira (28), representavam 8% dos casos totais na faixa etária de 0 a 20 anos, segundo dados do Painel Covid do governo do Estado. "De fato é uma doença na qual o vírus parece não infectar tão bem as crianças como os adultos. As crianças têm uma proteção natural, que é a enzima conversora de angiotensina, e anticorpos para outros vírus. Por isso, quanto menores, menos riscos terão", reforça o infectologista pediátrico da Santa Casa, Fabrizio Motta.
Tradicionalmente, homens têm níveis mais altos de ACE2 em comparação às mulheres, o que também pode explicar a gravidade dos desfechos da Covid-19 em pacientes masculinos, como levanta estudo sobre "As características intrigantes da Covid-19 em crianças e seu impacto da pandemia", publicado no Jornal de Pediatria pelo médico Marco Aurélio Safadi, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
A análise também destaca, entretanto, que apesar de assintomáticas ou de apresentarem formas leves da doença - geralmente apenas casos ambulatoriais e tratáveis em consultório-, crianças podem ter alta concentração de carga viral, como destacado na pesquisa de Harvard, o que é visto com parcimônia pelos especialistas, diante da falta de estudos conclusivos a respeito. "Crianças pegam muito menos Covid que adultos e têm casos menos graves do ponto de vista de riscos. Mas o fato é que não se sabe com certeza sua capacidade de transmissão", analisa o pediatra José Paulo Ferreira, representante da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (Sprs).

Associada à Covid-19, doença rara que acomete crianças e jovens já tem registros no RS

Ao longo do mês de agosto, como se não bastasse a pandemia, uma síndrome rara e que acomete crianças e adolescentes até 19 anos começou a ser noticiada no Brasil e alertada pelo Ministério da Saúde como provável de estar associada ao novo coronavírus: a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P). Similar à Doença de Kawasaki - que causa inflamações pelo corpo, principalmente nos vasos coronarianos-, a enfermidade é induzida por outros tipos de vírus, como o Sars-CoV-2, transmissor da Covid-19 , e também responsável por ocasionar vários processos inflamatórios nos organismos afetados.
Os primeiros casos da doença foram noticiados na Europa e na América do Norte entre abril e maio, e associados à infecção pelo novo coronavírus. Em comum, os pacientes apresentavam reação hiperinflamatória, que pode levar ao choque e à insuficiência de múltiplos órgãos. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) publicou em seu site, no dia 7 de agosto, nota de alerta com orientações do Ministério da Saúde para a necessidade de notificação obrigatória dos casos de SIM-P, já registrados em estados como Ceará, Rio de Janeiro, Piauí, Pará e, inclusive, no Rio Grande do Sul.
Segundo o Centro de Operações de Emergência do Estado (COE-RS), foram contabilizados oficialmente três casos de SIM-P. O primeiro, notificado no dia 9 de agosto, foi de uma menina de seis anos, de Novo Hamburgo, internada um dia antes, que testou positivo para Covid-19. Nove dias depois, em 18 de agosto, houve a segunda notificação, uma menina de 2 anos, de Passo Fundo, que aguardava resultado de exame de contágio do novo coronavírus. O terceiro paciente foi identificado um dia depois, em 19 de agosto, menina de 6 anos, de Porto Alegre, que também testou positivo para Covid.
Pela nota técnica do Ministério, as crianças e adolescentes que manifestam sintomas da SIM-P são habitualmente saudáveis, mas podem apresentar alguma doença crônica. Pelo que se sabe, a identificação da síndrome ocorre em períodos que podem variar entre dias e semanas após infecção aguda pelo novo coronavírus, com características clínicas semelhantes às da Kawasaki. A SIM-P se baseia no desenvolvimento de inflamações que têm outras infecções como gatilho, como é o caso da Covid-19. Recentemente, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) descobriram, após analisar o caso de uma menina de 11 anos acometida pela enfermidade, que o Sars-CoV-2 atingiu as células cardíacas da menina, que acabou não resistindo a uma miocardite, inflamação do coração.
Segundo orientação do Ministério da Saúde, crianças e adolescentes podem apresentar rápida progressão para formas graves da SIM-P, com insuficiências respiratória e cardíaca, doença renal aguda, hipotensão arterial e até choque. Desta forma, o tratamento tem se mostrado eficiente e busca diminuir o estado inflamatório e restabelecer o funcionamento adequado de órgãos e sistemas, com a finalidade de diminuir a incidência de sequelas. A pediatra e imunologista Helena Velasco reforça que cada vírus tem sua especificidade, mas que a SIM-P é uma resposta inflamatória possível de acontecer com outros vírus, como o da Covid.
A doença é chamada de multissistêmica por envolver pelo menos dois órgãos e sistemas, como cardíaco, renal, respiratório, hematológico, gastrointestinal, dermatológico ou neurológico. Dentre seus sintomas destacam-se alterações cardiovasculares, renais, respiratórias, hematológicas, gastrointestinais como dores abdominais, vômito e diarreia, alterações oculares e nas mucosas, conjuntivite não purulenta, lesões cutâneas ou inflamações muco-cutâneas (oral, pés e mãos), além de febre alta persistente.
Quando diagnosticada precocemente, no entanto, tem alta possibilidade de diminuição e bloqueio do processo inflamatório, e a maioria das crianças consegue se recuperar bem da doença, mediante tratamento adequado, como alerta o infectologista pediátrico da Santa Casa, Fabrizio Motta. "Quanto mais tardio for o diagnóstico, maiores os riscos de alterações cardíacas. Mas são raros os casos de óbitos", explica.
Segundo ele, a associação à Covid-19 está sendo feita pelo fato de muitos dos pacientes acometidos pela síndrome apresentaram teste ou anticorpos positivos para o novo coronavírus, mesmo que permaneçam assintomáticos, com sintomas leves ou apenas tenham tido contato com pessoas contaminadas. "A doença é rara e os números são baixos em relação à Covid, estima-se que apenas 0,5% das crianças com coronavírus, que já são em número pequeno, desenvolvam a síndrome. A Covid atua como gatilho nesses processos inflamatórios, mas não há risco de transmissão e não afeta adultos", complementa o médico.
No Brasil todo, de acordo com o médico pediatra José Paulo Ferreira, representante da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (Sprs), foram 132 casos notificados, o que reforça o caráter raro da enfermidade. Estima-se que cerca de 10 casos já tenham sido identificados no Rio Grande do Sul - apesar de oficialmente o governo ter o registro de apenas três. Dos casos gaúchos, três foram atendidos pela equipe da Santa Casa, dois pacientes eram meninos de 5 e 6 anos, que já tiveram alta, e o outro uma menina de 11 anos, que ainda está em tratamento, mas já tem previsão de alta.
"A Covid não é grave na pediatria, mas essa síndrome é e precisa ser tratada para evitar processo inflamatório intenso e que possa ocasionar problemas cardíacos. E, embora não haja estudo conclusivo sobre a prevalência da SIM-P em pacientes Covid, surgem casos em observação e que nos levam a acreditar podem sim ter relação com o coronavírus", reforça o Ferreira.

Retomada das aulas requer cuidados redobrados com higiene, distanciamento e uso de máscara

Mantidos em casa há mais de cinco meses, quando as aulas presenciais foram suspensas em todo o Rio Grande do Sul, crianças e jovens têm sido privados de suas rotinas e do convívio com amigos, avós e familiares, mas podem vir a retomar gradualmente as atividades escolares, já que o Executivo gaúcho planeja divulgar