A Gripe Espanhola no RS e em Porto Alegre

Pandemia vitimou quase 4 mil gaúchos e transformou a vida na Capital no início do século passado

Por Juliano Tatsch

Enfermaria do Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre, recebeu doentes da pandemia
A Gripe Espanhola de 1918 foi a maior tragédia sanitária do século passado. Por volta de 50 milhões de pessoas morreram acometidas pelo vírus da influenza H1N1. Há apontamentos que indicam que o total de óbitos pode ter sido o dobro. Não há estatísticas oficiais a respeito da mortalidade da doença no Brasil. Enquanto alguns pesquisadores apontam que foram na casa de 35 mil vítimas fatais, outros falam em até 300 mil óbitos causados pela doença.
O Brasil entrou no mapa da pandemia em setembro de 1918, quando, o navio inglês Demerara, vindo de Lisboa, desembarcou doentes em Recife, Salvador e Rio de Janeiro - que, na época, era a capital federal. Não tardou para a doença chegar em solo gaúcho. "A espanhola chegou ao porto de Rio Grande na manhã de 3 de outubro de 1918, no vapor Itajubá, com 38 tripulantes doentes, que foram recolhidos ao lazareto. No dia 12, o vapor Itaquera, com 32 tripulantes com influenza, atracou no porto de Rio Grande. O vapor Mercedes aportou em Porto Alegre em 16 de outubro, com sete tripulantes doentes", aponta, em artigo, o historiador Moacyr Flores.
O Rio Grande do Sul, na época, tinha um presidente, que se chamava Antônio Augusto Borges de Medeiros. Com o agravamento do quadro, o governo pediu que não se fizesse romaria aos cemitérios para evitar contaminação, e os enterros passaram a ser realizados à noite para não provocar o pânico.
"Em novembro fecharam os cinemas, cassinos, teatros, bares. A Rua da Praia ficou vazia, o tráfego de bondes diminuiu e o silêncio era quebrado pelos uivos dos cães e pelo dobrar dos sinos das igrejas. Faltavam pão e leite, que eram distribuídos de casa em casa por entregadores em carroça. Os alimentos e a lenha, principal combustível da época, dobraram de preço. O limão, o quinino para baixar a febre, e o óleo de rícino para limpar o doente internamente, rarearam e encareceram. Até o frango que se criava no quintal das casas e servia para preparar a canja, alimento tradicional dos doentes, ficou com o preço nas alturas", registra Flores.

Sem controlar a situação, Borges de Medeiros determinou censura a publicações

O Relatório da Diretoria de Higiene do Rio Grande do Sul apontou que o total de óbitos decorrentes da pandemia no Estado foi de 3.971. Para se ter uma noção do número, é preciso levar em consideração a população gaúcha na época, que girava na casa de 2,1 milhões de pessoas. Ou seja, a gripe espanhola causou a morte de 0,18% da população do Estado. Trazido para os dias atuais, esse percentual representaria 20,7 mil mortes no Rio Grande do Sul.
A sociedade se organizava de uma forma diferente em 1918, e os hábitos de saúde também eram distintos. As pessoas evitaram hospitais, pois havia um receio de que o ambiente disseminasse doenças. "Os doentes procuravam os médicos que atendiam em casa, nos consultórios particulares, nas clínicas e, raramente, nos hospitais. Consultavam curandeiros, benzedeiras e até mesmo alunos de Medicina e farmacêuticos recrutados", ressalta o infectologista Stefan Cunha Ujvari.
Porto Alegre contava com sete cemitérios: Santa Casa de Misericórdia, São Miguel, Protestante, São José, Beneficência Portuguesa, Espanhol e o Municipal da Tristeza. "Os coveiros adoeceram, e os corpos se acumulavam no cemitério da Santa Casa. Abriram-se quatro valas, onde enterraram 258 corpos", aponta Moacyr Flores.
A fim de conter a epidemia, Borges de Medeiros dividiu a Capital em 25 quarteirões sanitários e criou, em 30 de outubro, o Comissariado de Abastecimento e Socorros Alimentícios. Cada quarteirão possuía um médico, auxiliado por estudantes de Medicina, que visitavam os doentes.
A pandemia chegou ao ápice em novembro daquele ano. "No auge da crise, foram criados postos de socorro provisórios em algumas escolas; as associações civis e militares ofereceram as suas sedes para serem transformadas em hospitais", destaca Janete.
O recrudescimento do quadro - com o governo perdendo o controle da situação e com o desabastecimento - levou Borges de Medeiros a emitir uma circular determinando a censura policial às publicações referentes à gripe.
Janete reproduz em sua obra uma passagem do jornal O Independente de 1º de novembro de 1918, mostrando como o cotidiano de Porto Alegre mudou. "A cidade tem, durante o dia, um aspecto doloroso e à noite este aumenta, tornando-se fúnebre (...), as casas de diversões fechadas, os cafés, os bares, tudo escuro, dando à capital a forma de uma cidade morta, sem vida (...), raro é o transeunte que anda (...), o êxodo das famílias já é notável, apresentando o centro da capital desolador aspecto."
O clima fúnebre era reforçado pelo dobrar dos sinos das igrejas pelos finados, o que obrigou o vigário geral monsenhor Mariano da Rocha a proibir a prática com vistas a não chamar atenção para a quantidade de mortos.

Precariedade das condições sanitárias da cidade foi fundamental para o impacto da pandemia

No livro "Banalização da morte na cidade calada: a Hespanhola em Porto Alegre, 1918" (Edipucrs, 1998, 162 páginas), a doutora em História Contemporânea Janete Abrão reproduz uma passagem do jornal Gazeta do Povo, em 11 de novembro de 1918, que mostra como os produtos encareceram na Capital. "Desde a luz até o leite, artigos de primeira necessidade, tudo está pela hora da morte, deixando o povo debatendo-se numa série de dificuldades."
Os tratamentos indicados envolviam desde lavagens estomacais, purgantes, infusões de folhas, chá de eucalipto, cachaça com mel e limão, gargarejos, e, principalmente, o quinino, que era recomendado por dois dos mais conceituados médicos da cidade na época e que hoje são nome de rua e avenida: Mario Totta e Protásio Alves.
A pandemia enfraqueceu no começo de dezembro. A movimentação na Capital começou a voltar ao normal; o comércio, a reabrir; e a Rua da Praia, a receber os caminhantes nas tardes do verão. "Analisando a trajetória da epidemia em Porto Alegre, pode-se afirmar que o impacto da Gripe Espanhola de 1918 na cidade foi, em boa parte, resultado da precariedade das condições sanitárias que prevaleciam na capital do Estado", afirma Janete.
Na pesquisa para a sua obra, a historiadora pôde comprovar como a estrutura de saúde da cidade era ruim e como isso, somado a todas as outras precariedades de infraestrutura - saneamento, recolhimento de lixo, abastecimento e tratamento de água, entre outros -, influenciou no impacto da pandemia. "Em 1918, a cidade de Porto Alegre dispunha de seis estabelecimentos (de saúde), entre instituições oficiais e particulares. (...) O funcionalismo estadual contava com 4.732 pessoas. Na área da saúde, este número era de 56 indivíduos, um dos menores quadros de funcionários dentre todas as esferas governamentais", salienta. O resultado foram 57 de dias de horror.
Foram 1.316 óbitos atribuídos à influenza na Capital durante a pandemia. À época, Porto Alegre tinha uma população de 192 mil habitantes. Ou seja, a Gripe Espanhola matou 0,68% da população da cidade. Se fosse hoje, seriam 10,1 mil vítimas fatais em Porto Alegre.