O horror da Gripe Espanhola de 1918

No início do século passado, o mundo teve de lutar contra um vírus que dizimou populações

Por Juliano Tatsch

O planeta se viu imerso na primeira grande crise sanitária do novo século, que ficou marcada na história
A pandemia do novo coronavírus, definitivamente, já marcou uma geração. Milhares de vidas perdidas, economia mundial abalada. Há quem acredite que nada será como antes, que a relação do ser humano com a natureza irá mudar. Há quem ache que tudo continuará do mesmo jeito, e que a lição que o vírus trouxe não será aprendida. Ainda que o cenário seja totalmente diverso, é possível olhar para trás e ver como a maior epidemia do século passado afetou o mundo inteiro, dizimou milhões de pessoas e deixou uma marca indelével na forma de vida das jovens sociedades industriais.
O ano era 1918. O mundo estava enterrado naquela que foi a primeira guerra global, envolvendo todos os continentes, ainda que travada principalmente nos campos de batalha europeus. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) deixou um saldo de mortos que varia entre 17 milhões e 19 milhões de pessoas, entre militares e civis.
Pois, se não bastassem os horrores da guerra, com o uso indiscriminado de armas químicas e biológicas, um novo inimigo surgiu - nas trincheiras e fora delas - para deixar um rastro de vidas perdidas pelo caminho. Desta vez, porém, era um inimigo silencioso, um inimigo invisível, microscópico, mas não menos letal que as balas dos rifles e as bombas dos canhões.
A Gripe Espanhola - como ficou conhecida a doença que varreu o planeta entre 1918 e 1919 - foi devastadora. Na época, não havia dados confiáveis a respeito do número de pessoas contaminadas e de óbitos. Assim, as estimativas a respeito da mortalidade da pandemia variam de 17 milhões até 50 milhões. Algumas análises apontam que a doença pode ter matado mais de 100 milhões de pessoas.
O nome o qual a pandemia global de 1918 recebeu é enganoso. Não foi na Espanha que ela surgiu. Tampouco foi lá que ocorreu a maioria das mortes. O que aconteceu foi que, por não participar da guerra, a imprensa espanhola não estava sob censura do governo. Assim, a disseminação da doença foi mais noticiada na Espanha, o que resultou no nome que a tragédia sanitária recebeu.
Até hoje não se sabe com certeza onde surgiu o vírus. Uma das hipóteses aponta para o acampamento militar britânico de Étaples, na França, onde funcionava uma espécie de hospital de campanha. No local superlotado existia um viveiro de aves usadas como suprimentos, o que reforça a possibilidade de ter surgido ali a doença. Outra indica para o estado norte-americano do Kansas, com acampamentos militares já tendo registrado casos ainda em 1917. Uma terceira possibilidade aponta para a China e diz que o vírus teria chegado na Europa por meio da mobilização de trabalhadores chineses para atuarem atrás das linhas britânica e francesa na guerra.

Um vírus que voltou às manchetes em 2009

O vírus responsável pela pandemia mortal de 1918, que causou uma das maiores tragédias sanitárias da história humana, é um conhecido que, recentemente, voltou a nos visitar, trazendo grande apreensão, mas com muito menos força do que no início do século passado.
O H1N1 causou a primeira pandemia do século XXI e se alastrou por mais de 200 países entre 2009 e 2010. Os números provam isso: na sua aparição mais recente, o H1N1 contaminou, em quase 16 meses de pandemia, menos de 500 mil pessoas e causou na casa de 18,6 mil mortes em todo o mundo, conforme a Organização Mundial de Saúde.
Não há uma certeza acerca das origens do vírus, mas é quase certo que ele migrou das aves para os humanos. "Certamente, alguma ave aquática migratória o eliminou nas fezes e, por algum meio, alcançou o homem", afirma o médico infectologista Stefan Cunha Ujvari, autor do livro "Pandemias, a humanidade em risco" (Editora Contexto, 2011, 216 páginas).
Conforme o especialista, as aves são os reservatórios naturais do influenza, pois permitem que grandes quantidades do vírus se repliquem em seu corpo sem adoecerem. "Provavelmente, ambos coevoluíram, e as aves se tornaram resistentes ao ataque viral, além de funcionarem como transportadoras virais para longas distâncias", diz Ujvari.
"Os vírus eliminados nas fezes permanecem em solo úmido, represas, lagoas e açudes à espera de outro animal para infectar. Os suscetíveis ao influenza são o cavalo, a baleia, o homem, a ave e o porco. Hoje, sabemos que o vírus da Gripe Espanhola se originou de um vírus presente em alguma dessas aves", completa.

As três ondas da pandemia

A pandemia se deu em três ondas. A primeira ocorreu no primeiro semestre do ano, e se caracterizou por ser muito contagiosa, mas menos letal, e atingindo principalmente os Estados Unidos e a Europa.
A segunda onda, no segundo semestre de 2018, foi arrasadora. Com início entre agosto e setembro, atingiu o mundo inteiro. As condições insalubres nas trincheiras da guerra - chuva, lama, ratos, estresse, desnutrição, piolhos, doenças outras como tifo e tuberculose - derrubavam a imunidade dos soldados. Não bastasse tudo isso, a gripe veio para abater tropas inteiras. A grande movimentação de militares e de civis - facilitada pelas novas formas de transporte - foi decisiva na disseminação da doença.
A terceira onda se deu no final de 1918 e no primeiro semestre de 1919. Menos intensa, atingiu a Austrália em janeiro de 1919, se espalhando para a Europa e os EUA, onde permaneceu até junho.