Na primeira edição especial em homenagem aos 250 anos de Porto Alegre, o GeraçãoE conversou com donos de negócios da região, que não trocam o seu bairro por nada

Lomba do Pinheiro é celeiro de empreendedorismo em Porto Alegre


Na primeira edição especial em homenagem aos 250 anos de Porto Alegre, o GeraçãoE conversou com donos de negócios da região, que não trocam o seu bairro por nada

Isadora Jacoby, Giovanna Sommariva, Mauro Belo Schneider e Victória Paz
Isadora Jacoby, Giovanna Sommariva, Mauro Belo Schneider e Victória Paz
Uma das primeiras constatações de quem chega na Lomba do Pinheiro, na Zona Leste de Porto Alegre, é que o bairro parece uma cidade. A percepção não está longe da realidade, já que, conforme dados da prefeitura, cerca de 62.315 pessoas habitam a região. O local abriga 4,42% da população da capital gaúcha, com área de 50,65 km², ou seja, representa 10,64% da extensão do município. Em meio a tanta gente, obviamente, há diversas histórias de empreendedorismo.
O noticiário recorrente sobre a região, no entanto, divulga outro assunto: violência. Os serviços de carros por aplicativo, por exemplo, circulam com restrições no bairro. Só aceitam passageiros nos postos de saúde ou da Brigada Militar.
É comum ver ambulantes oferecendo aos comerciantes canetas que identificam notas falsas. Alguns fornecedores se negam a trabalhar com empresas com CEP no Pinheiro. Porém, nada disso impede que os sonhadores prosperem.
A visita da equipe do GeraçãoE na Lomba do Pinheiro, para a estreia de uma série que falará sobre os negócios de bairro de Porto Alegre, gerou comoção. Os moradores relatam que pouco são ouvidos por esse ângulo positivo. As narrativas de sucesso acabam ignoradas em meio ao volume de notícias tristes.
Bastou uma manhã para comprovar a luta do povo do Pinheiro. São diversos personagens, mas neste conteúdo os leitores conhecerão alguns clássicos, como o barbeiro Cirilo, o barbudo do pão de queijo, a mulher do sapato e Keké, que pode ser ele ou ela.
Uma boa leitura e que sirva para, principalmente, quebrar preconceitos.

A origem comercial do bairro

Vinícius Mitto, professor e arquivista que apresenta uma série sobre a história dos bairros de Porto Alegre no @cartaotri e no @bahguri.rs, contou ao GE sobre a origem da Lomba do Pinheiro:
A região onde está o bairro Lomba do Pinheiro era área de chácaras e sítios de famílias de origem portuguesa, porém, a existência de moradores remonta à época das sesmarias. A principal área rural era a Fazenda Boqueirão, de propriedade dos irmãos Antero e Afonso Lourenço Mariante, em meados de 1820. A única herdeira de Afonso, Rafaela, se casou com João de Oliveira Remião. Nomes conhecidos e homenageados na região. Com o passar dos anos, foi sendo desenvolvida a produção de hortifrutigranjeiros, com especial destaque a frutas e legumes que eram comercializados na área central de Porto Alegre. Também existia a produção de leite, por meio de tambos. Com o aumento populacional no bairro, já no século 20, por meio de invasões e desenvolvimento de vilas, o comércio e os serviços também se popularizaram.

Jardim da Paz segue como único cemitério-parque

Não tem como falar sobre empreendedorismo na Lomba do Pinheiro, na Zona Leste de Porto Alegre, sem mencionar um dos negócios que simbolizam o bairro, o Jardim da Paz, que funciona desde 1980. O local é o único cemitério-parque da cidade, inspiração que veio do mercado norte-americano e europeu.
Administrado por um grupo de engenheiros, o empreendimento já fez mais de 55 mil sepultamentos. Embora seja a opção mais procurada por moradores da Zona Leste, há famílias de outras regiões da Capital e de fora da cidade que compram jazigos no espaço de 20 hectares.
Gerci Perrone Fernandes, diretor do Jardim da Paz, diz que 90% dos 70 funcionários são moradores do Pinheiro. "Geramos receita para os comerciantes do entorno", afirma ele, sobre o fato de empregar pessoas que também consomem por ali.
O bairro foi escolhido para receber o cemitério, conforme Gerci, que é funcionário da empresa há 30 anos, entre outros motivos, pela sua semelhança com a paisagem serrana. Para superar os desafios de lidar com perdas, Gerci aposta na sensibilidade.
"Enxergamos os clientes, atendemos da classe A a E. Damos o mesmo atendimento a todos", garante.
Entre as ações mais marcantes do cemitério com a comunidade porto-alegrense está a chuva de pétalas do Dia dos Finados, que Gerci considera muito simbólica. Além disso, são promovidas palestras bimestrais com foco em superação do luto e são realizadas ações sociais na própria Lomba do Pinheiro.
Embora no passado tenham se criado alguns tabus em torno dos cemitérios, Gerci conta que o Jardim da Paz atrai público em busca de lazer. Aos fins de semana, segundo ele, é comum ver pessoas tomando chimarrão em meio às plantas e flores.
O executivo revela, ainda, que a pandemia, diferentemente do que muitas pessoas pensam, prejudicou o ramo de cemitérios. "Os custos aumentaram muito. A construção dos jazigos exige ferro e cimento, que ficaram muito caros", comenta, listando ainda gastos com aparatos de proteção, como máscaras, botinas e macacões.

Hambúrguer de carbonara é lançado por lancheria da Lomba do Pinheiro

Para atender o quarto bairro mais populoso de Porto Alegre, a lancheria Rota 04 abriu suas portas, em 2018, com foco no delivery de pizzas, xis e hambúrguer. Localizado entre a parada 3 e a 4 da Lomba do Pinheiro, o negócio nasceu com o objetivo de atender os mais de 60 mil moradores da região que, muitas vezes, não são contemplados nas rotas de entrega de operações de outros bairros. E uma de suas principais atrações é o hambúrguer de carbonara, feito com pão brioche, alface americana, tomate fatiado, molho especial, hambúrguer artesanal 180gr, cobertura de provolone, bacon em cubos grelhado, ovos picado e tempero verde.
Jorge Brusch, que toca o negócio ao lado da esposa, Gicele Brusch, e da filha, Fernanda Amorim, conta que empreender com gastronomia era um desejo antigo do casal, que trabalhou por muitos anos em outras operações. O primeiro negócio funcionou por cerca de sete anos, até 2015, quando a família decidiu morar em Florianópolis. Jorge diz que foi na experiência empreendendo em outro estado que eles profissionalizaram a sua atuação. "Quando começamos, era muito na raça mesmo. Vendíamos de noite para no outro dia comprar toda a mercadoria de novo. Voltamos de Santa Catarina com outra proposta.
Minha esposa estudou Gestão Comercial e Financeira, eu fiz Gastronomia", lembra Jorge sobre o retorno à Lomba do Pinheiro. "Voltamos em 2018 e abrimos focando na região, em um público no raio de 8 km, para facilitar o delivery. Hoje, não temos apps de entrega terceirizada e investimos no nosso próprio aplicativo que tem 9 mil clientes cadastrados", orgulha-se Jorge, que soma 12 funcionários e sete entregadores.
A virada de chave, aponta, foi enxergar as especificidades do bairro e atender de forma mais assertiva a demanda da clientela. "Para ter mesas, precisa ser um espaço grande e o custo é muito alto. O retorno para o nosso segmento aqui no bairro não tem uma constância como tem o delivery. Teria que ter casa cheia todo dia para manter a estrutura. E a Lomba do Pinheiro é um bairro dormitório, o pessoal sai para trabalhar e volta à noite, tanto que não operamos durante o dia", explica. Nascido e criado na Lomba do Pinheiro, ele conta que procura sempre contratar pessoas da região e escolher fornecedores locais. "Tenho um ótimo relacionamento com todos os empreendedores, principalmente com os do nosso segmento. Trocamos muita informação sobre segurança, notas falsas, referências de funcionários. Hoje, temos parcerias com fornecedores que se estabeleceram no bairro. Nem sempre tem o melhor preço que a gente precisa para trabalhar, mas dentro do possível procuro comprar o máximo que posso dentro da comunidade", afirma.
Atento às mudanças no perfil de moradores do bairro, que recebeu, nos últimos anos, diversos novos condomínios, Jorge pontua que é preciso ter produtos que atendam diferentes públicos. Para isso, mantém no cardápio produtos mais populares, mas aposta, também, em itens diferenciados. "Não queremos segregar, queremos atender o máximo de categorias possíveis, e isso é uma realidade da Lomba do Pinheiro. Temos clientes de classe B, C e D. Temos produtos com valor bem acessível, uma linha com valor médio e uma terceira que trabalhamos com filé mignon, entrecot, salmão. Procuramos ter um produto em uma categoria diferenciada para atender esse público que faz parte de um movimento migratório que está crescendo bastante, de pessoas de classe B indo morar na periferia", pontua. Para ele, além de ser uma nova fatia de mercado, a presença dos condomínios agregou segurança. "Os condomínios trouxeram um efetivo maior e mais constante da Brigada Militar. Nunca tive problema com segurança na loja, mas o bairro, hoje, está mais seguro e acho que é por causa dessa migração. Temos pessoas de referência morando no bairro, jogadores de futebol, como D'Alessandro e Cuesta. Uma galera de expressão que está se afastando das áreas mais nobres", conta.

Empreendedora produz carimbos que são enviados para todo Brasil

Da Lomba do Pinheiro para toda a cidade e para todo País. A empreendedora Michele Soares Nunes, 42 anos, à frente da A Mica Carimbos, conta que os carimbos que vende pela internet vão muito além da parada 7, onde produz os itens de forma artesanal em seu atelier. "As pessoas não têm noção que sou de Porto Alegre e da Lomba do Pinheiro", afirma.
Desde 2017 no mercado, Michele conta que começou a produzir os carimbos para seu uso pessoal. Amante de artesanato desde criança, ela costurava por hobby e usava os carimbos para personalizar tecidos. Com a dificuldade de encontrar na Capital, começou a produzir. As primeiras encomendas - e o primeiro público forte do negócio - foram professores, que usam os carimbos para ajudar nas correções dos cadernos das crianças.
Depois de um ano produzindo de forma paralela à carreira como analista de projetos, Michele decidiu apostar no empreendedorismo em tempo integral.
Ao longo da trajetória do negócio, ela conta que o principal público mudou. Hoje, quem mais compra de Michele são outras empreendedoras e empreendedores à frente de marcas pequenas, já que é possível encomendar itens personalizados com logo. "Meu maior público é o empreendedor que busca personalizar o seu negócio. Fazer sacolas com o logo pronto custa muito mais que comprar um carimbo e usar por muito tempo. Eu tenho o mesmo carimbo desde 2017 com a minha marca", pondera. Os itens personalizados partem de R$ 20,00 e podem passar de R$ 100,00, de acordo com o tamanho. Já os mais de 700 modelos próprios disponíveis no site (amicacarimbos.com.br) custam de R$ 6,00 a R$ 28,00.
Michele diz que as vendas para Porto Alegre representam 80% dos itens que são despachados diariamente do atelier que mantém em sua casa. O fato de estar localizada na região fez Michele adequar algumas questões do negócio, como as entregas.
"Só entrego via Correios em Porto Alegre e no Brasil, porque, como moro na Lomba do Pinheiro, normalmente, trabalhar com motoboy fica muito caro. O Correio faz a coleta na minha casa, tenho contrato com eles", explica a empreendedora, ressaltando que o seu principal canal de vendas é o Instagram.
"Tenho mais de 15 mil seguidores orgânicos, é quem realmente gosta de carimbo que está ali. Recebo pedidos do Brasil inteiro. Muitas vezes, as pessoas marcam no site para retirar em mãos, mas quando veem que é na Lomba do Pinheiro acabam mudando por achar bem distante", conta a empreendedora.
Vendendo cerca de 500 carimbos por mês e fazendo todas as etapas da produção dos itens, Michele conta que o mercado mudou muito desde que começou. No início, tinha pouca concorrência; hoje, precisa buscar diferenciais para se manter no mercado.
Entre as novidades, está o carimbo automático personalizado com tinta de tecido, para que pais e mães identifiquem as roupas de crianças que vão para a escola. "Lancei há pouco tempo e teve uma procura gigantesca, vendi muito em dois meses", comemora.
Mesmo com as mudanças no segmento, Michele diz que se sente realizada com a escolha pelo empreendedorismo por poder trabalhar com mais flexibilidade e, principalmente, com o que sempre amou: artesanato.

Barbeiro que iniciou aos 15 anos formou outros profissionais na Lomba do Pinheiro

Se não foi Robson Douglas Prestes Cardoso, de 39 anos, quem ensinou a profissão para algum barbeiro da Lomba do Pinheiro, com certeza, foi alguém que aprendeu com ele que passou os conhecimentos adiante. Em seu negócio, a Equipe Cirilo Art, muitos jovens descobriram um caminho profissional. "Já formei mais de 20 barbeiros", calcula.
Cirilo, como Robson é conhecido, apelido que ganhou por causa do personagem da novela Carrosel, começou a trabalhar aos 15 anos, meio que de brincadeira. "Sempre gostei de me arrumar e meus amigos pediam para que eu cortasse o cabelo deles também", conta.
O diferencial de Cirilo são os desenhos feitos com gilete. "Um amigo me emprestou uma máquina, até que me pediram uma arte do Piu-piu, peguei meu sabãozinho gaúcho e fiz", lembra.
Na época, o barbeiro trabalhava em casa. Como não tinha rede social, era tudo no boca a boca. Trabalhou cinco anos fazendo cortes na rua Dandara, nº 12, atendendo da forma que conseguia. Nesse tempo, foi se desenvolvendo. Até que criou coragem para subir para o asfalto, na parada 16. O primeiro endereço foi perto do Mercado Oliveira.
Cirilo conta que nem sempre confiou que seu trabalho chegaria tão longe. "Eu trabalhava com obras e era encabulado, tinha medo de sair e me mostrar. O que me ajudou foi o suporte que recebi do público e propostas de outros salões", expõe.
Apesar das dificuldades, o barbeiro passou a acreditar no futuro. "Morei 10 anos com a minha sogra e resolvi alugar uma casa de duas peças. Estava com um olhar no futuro, vi potencial e desenhei a maquete da residência dos meus sonhos num isopor. Depois de três anos, comprei o lugar. Hoje tem dois andares", diz.
Cirilo já teve mais de uma operação, mas agora foca na unidade da rua Tanaui da Silva Boeira, nº 66. A Lomba do Pinheiro, para ele, é tudo. "Quando comecei a trabalhar, era só eu quem fazia esse tipo de arte. Me perguntava: se eu sair daqui, quem vai cuidar do pessoal? Fiquei enraizado", admite.

Casal expande com vendas de pães de queijo recheados na Lomba do Pinheiro

O casal Thaiane Zanella, 29 anos, e Ricardo Frozi, 32, instalaram, em 2017, um carrinho de pães de queijo recheados na entrada do supermercado Zanella, do tio de Thaiane, Carlos Alberto. Agora, o negócio passa por uma expansão: a dupla apostou em um contêiner com deck para melhorar o atendimento à clientela. "Não é porque a pessoa mora em uma vila que tem que ser tratada mal, comer em uma barraquinha", diz Thaiane, que se criou no Pinheiro.
A nova estrutura da Recheadinhos é fruto do suor da ex-fisioterapeuta e do ex-jogador de futebol de Alvorada. Ele morou em vários países enquanto atuava nos campos, entre os 19 e os 23 anos. A experiência no exterior, inclusive, serviu como alavanca financeira da marca.
Enquanto morava fora, Ricardo percebeu que as brasileiras adoravam calcinhas da Victoria's Secret. Trouxe 300 delas na mala, vendeu e conseguiu juntar cerca de R$ 7 mil. Thaiane pegou suas reservas e, juntos, tinham aproximadamente R$ 10 mil para empreender.
Na recente remodelação do projeto, o aporte foi de quase R$ 50 mil. O número de funcionários também aumentou, de três para seis, assim como a variedade de ofertas. Além do item que deu origem à Recheadinhos, foram incorporados churros, panchos, salgados, milk shakes, drinks e hambúrgueres.
A vontade de fazer prosperar o negócio próprio era tanta que Ricardo chegava às 4h da manhã na parada 16 para observar o comportamento do público. No planejamento inicial, o carrinho seria colocado ali, para abocanhar o vai e vem de quem subia ou descia dos ônibus. Mas ele se deu conta que os moradores do Pinheiro sabem exatamente o horário que os coletivos passam, então, chegam à fila minutos antes de embarcar.
Foi aí que veio a ideia de instalar o carrinho no supermercado do tio. Um dos maiores desafios, depois do negócio montado, era conquistar a confiança dos frequentadores. "Com um carrinho tão lindo, o pessoal passava reto, pois achava que os pães de queijo seriam caros", lembra Ricardo. Amostras grátis e o valor em destaque solucionaram o problema.
A região, conforme Thaiane e Ricardo, tem muito potencial. Ricardo, inclusive, é conhecido como "o barbudo do pão de queijo", embora tenha aparado os fios longos que lhe eram característicos há alguns dias. Eles se frustram ao perceber que muitos fornecedores ainda têm preconceito com o bairro. Os pães dos hambúrgueres são fornecidos por uma empresa de Santa Catarina, pois nenhuma gaúcha entrega no Pinheiro.
O foco da dupla no sucesso é tanto que Ricardo não titubeia ao explicar o que fará com o antigo carrinho. "Ficará no meio da sala da minha mansão", brinca, ouvindo Thaiane repetir que quer que a Recheadinhos seja o respiro para quem trabalha o dia inteiro.

De sacoleira a dona de prédio, família administra três negócios na Lomba do Pinheiro

"São 30 anos servindo a comunidade", define Jéssica dos Santos Crestani sobre a trajetória de sua família na Lomba do Pinheiro. Filha mais nova de três irmãos, aos 30 anos, ela é responsável por gerenciar os três negócios família: uma loja de roupas e calçados, uma loja de materiais de construção e uma academia. Todos ficam em um mesmo prédio na Parada 16 da Lomba do Pinheiro.
O início da trajetória da família no empreendedorismo foi na década de 1980, quando, conta Jéssica, seu pai, José Telmo Crestani, 65 anos, foi demitido da metalúrgica em que trabalhava. Antes mesmo de voltar para casa, ele decidiu usar o dinheiro que tinha para comprar uma sacola de calçados.
"Segundo ele nos conta, tinha duas escolhas: voltar para casa e contar para a minha mãe que havia sido demitido ou dar um jeito na situação. Então, ele comprou uma sacola de sapatos, disse que poderia ter comprado o rancho do mês, mas decidiu comprar os sapatos para vender até ele conseguir um novo emprego", conta Jéssica. A partir daí, Valdenira dos Santos Crestani, 62 anos, começou a ser conhecida na região como "a mulher do sapato", já que batia de porta em porta para vender os itens. "Tem quem ainda hoje conheça minha mãe por 'mulher do sapato', porque, quando eram crianças, ela vendeu o primeiro tênis, o primeiro sapato que foi para escola, porque não tinha loja por aqui ainda. Todo mundo comenta que, mesmo grávida, ela ia de porta em porta, com uma sacola na mão, uma caixa na cabeça, o filho na outra mão e o bebê na barriga", narra a caçula da família.
O primeiro negócio com ponto físico, no entanto, não foi na Lomba do Pinheiro. Entre 1991 e 1997, a família teve uma pequena ferragem em Gravataí, mas a venda dos calçados seguia aos fins de semana na Zona Leste da Capital, mantendo a clientela. Em 1998, o clã voltou para a Lomba do Pinheiro, abriu uma loja, e de lá nunca mais saiu. Chegaram a ter quatro lojas e até mesmo um mercado.
"Temos uma história muito forte aqui no bairro. Meus pais estão aqui há mais de 30 anos servindo a comunidade. Aqui sempre foi o sustento deles. Sempre conheceram todo mundo na volta, têm muitas amizades, fazem parte da comunidade", orgulha-se Jéssica.
O prédio que abriga a An-pe-ca Calçados e Confecções, Crestani Materiais de Construção e a academia Gauleses Training fica na rua Tanaui da Silva Boeira, n° 44, e foi inaugurado em 2012 - não sem perrengues. Jéssica lembra que, na véspera da inauguração, a vidraçaria que faria todos os vidros do imóvel não entregou os itens.
"Foi um prejuízo. Tivemos que colocar todas as coisas aqui dentro, mas não tinha porta. Então, nós moramos aqui por um mês com as portas abertas. De noite, colocávamos tapumes. Acampamos aqui dentro e, na hora de voltar para a nossa casa, não quisemos. O nosso pai nos ensinou uma coisa, e seguimos ele nisso: não voltamos para trás, só andamos para frente", diz Jéssica, que não poupa orgulho ao lembrar a história de sua família.
A academia, que ocupa o segundo piso do prédio, foi inaugurada em 2016, depois que o irmão do meio, Peterson dos Santos Crestani, 34 anos, formou-se em Educação Física. Anderson dos Santos Crestani, 38 anos, o mais velho, é professor de História, mas também participa dos negócios quando não está em sala de aula. "Nós três crescemos dentro do negócio. Comecei a trabalhar de verdade com 13 anos, como caixa do mercado. O mais velho fazia todas essas andanças com a minha mãe. Tenho dois sobrinhos e brincamos que eles foram criados no cesto, que nem a gente. Às vezes, precisa resolver alguma coisa e a criança fica no cesto de roupa", brinca Jéssica.
Graduada em Administração de Empresas e Contabilidade, sendo mestre na segunda área, ela diz ser um desafio gerenciar as três frentes, especialmente a academia.
"A loja de roupas e a de materiais de construção são mais comuns para mim, mas a academia é algo que não estava na nossa história", diz Jéssica, ponderando que leva o que aprende em um negócio para a gestão do outro.
"Tudo que tu fazes com cuidado, atenção, colocando a energia certa, acaba desenvolvendo. Já sabíamos de vários erros que tivemos aqui ao longo de todo esse percurso. A academia foi o lugar que tivemos menos erros, porque já tínhamos uma bagagem dos outros negócios. Por mais que sejam diferentes, tem um conhecimento", acredita.
A empreendedora destaca, ainda, que os negócios, apesar de diferentes, ajudam na continuidade um do outro. Durante a pandemia, quando apenas a loja de materiais de construção podia operar em virtude das restrições, a família mudou a porta que liga os dois ambientes, antes atrás, para a parte da frente do imóvel, para que, mesmo fechada, os clientes que fossem até a ferragem enxergassem as roupas e calçados. "Criamos algumas promoções. Aluno da academia tem 10% de desconto na loja. Temos uma porta que, quando entra na academia, fica de frente para a loja, para que vejam os produtos. Então, uma coisa lembra a outra, está tudo conectado", afirma.
Apesar do orgulho que a família transmite pelos negócios e pela trajetória empreendedora de 30 anos no bairro, ao fim de nossa visita, Valdenira correu para nos alcançar no carro para dar um recado. "Esqueci de falar que o mais importante de tudo que construímos foi a nossa família", diz emocionada.

Hortifruti que começou com barraca improvisada se consolida na Lomba do Pinheiro

Situado no número 7.300 da rua João de Oliveira Remião, principal avenida da Lomba do Pinheiro, está um dos negócios mais antigos da região, a fruteira Keké Frutas. Inaugurada em 2007 pelo patriarca da família, Nelson Bittencourt da Silva, 64 anos, o negócio surgiu de quatro estacas no chão, uma lona e algumas frutas. "Era uma espécie de tenda, onde ele vendia o que sobrava dos alimentos que comprava no Ceasa, onde trabalhava, e com o tempo nós começamos a perceber que a região carecia muito de um local que oferecesse hortifruti por um preço bom, mas mantendo a qualidade", conta Ederfan Martins da Silva, 33 anos, filho de Nelson, que toca a operação ao lado da mãe, Nara Regina.
Advogado especialista em Direito de Família, Ederfan conta que sempre foi seu sonho poder contribuir para a comunidade de alguma forma, e encontrou isso na fruteira da família. "Quando eu estava num escritório, atrás de uma mesa, eu enxergava muita teoria, mas vindo para cá eu pude ver a realidade, que é totalmente atípica daquilo que fui treinado. Tu começas a ver as pessoas carentes, moradores da região que passam alguma necessidade, e tu tens como de fato ajudar essas pessoas. Diria que solidariedade é a questão principal", acredita o empreendedor, que enxerga o bairro como um local muito menosprezado em termos de empreendedorismo. "As pessoas costumam achar que não tem público ou potencial por aqui, mas tem e muito. Quando começamos a investir, já notamos isso", declara.
Em 2017, quando de fato tomou conta da operação, que antes era comandada por sua irmã, o empreendedor afirma que, além da parte de hortifruti, começou a trabalhar com outros produtos. "Apostamos forte na parte do colonial, como queijos, vinhos e sucos, que fazemos natural e na hora aqui. Também temos cafés diferenciados. O de Minas Gerais, por exemplo, se tornou o mais querido pelos clientes, só bastava alguém oferecer ele por aqui", afirma.
O nome do local, que gera curiosidade em quem passa pela parada 18 do Pinheiro, surgiu em homenagem ao neto do seu Nelson, o Kevin. "É engraçado porque o pessoal chega aqui querendo falar com a Keké, perguntando onde está, até brincamos que somos a família Keké. Na época que abrimos a empresa, não se tinha noção de nome para colocar, e meu afilhado era recém-nascido, então acabamos colocando o nome em homenagem a ele. Os anos foram passando e foi ficando", explica Ederfan.
Apesar dos pontos positivos, o empreendedor ressalta que a falta de um estacionamento no local ainda é uma dificuldade. "Existe aquele pessoal que tem certo receio de estacionar por aqui, em qualquer lugar. A ideia é mudar a frente do negócio e construir um estacionamento", conta.
O maior diferencial, de acordo com o empreendedor, é a preocupação que eles possuem com a qualidade dos seus produtos. "A maioria dos supermercados, por exemplo, tem um dia que é o do hortifruti, quando eles vão lá na feira e compram os alimentos. Aqui nós fazemos abastecimento de alimentos todos os dias, não somente uma ou duas vezes, então sempre temos um produto novo e fresco para oferecer", garante.