Profissionais das mais diversas áreas passaram a enxergar as palavras como uma forma de reconexão

Busca por aperfeiçoamento da escrita aumenta em diversas profissões


Profissionais das mais diversas áreas passaram a enxergar as palavras como uma forma de reconexão

"Oi, escriba." A frase, quase gasta pelo uso, é dita pela jornalista e escritora Cris Lisboa, 40 anos, de Uruguaiana, a cada aluno de sua escola de escrita, a Go, writers. O cálculo é que, aproximadamente, 3,5 mil pessoas já a tenham ouvido falar sobre palavras.
"Oi, escriba." A frase, quase gasta pelo uso, é dita pela jornalista e escritora Cris Lisboa, 40 anos, de Uruguaiana, a cada aluno de sua escola de escrita, a Go, writers. O cálculo é que, aproximadamente, 3,5 mil pessoas já a tenham ouvido falar sobre palavras.
Cris soube transformar o interesse pela língua em negócio - mercado que foi impulsionado pela pandemia - há uma década. Muito antes de surgirem tantas lives que focam no tema, e que atraem interessados de diversas áreas, inclusive empreendedores e empreendedoras querendo humanizar suas marcas. Só em 2021, nomes como Pedro Bial, Fabrício Carpinejar e tantos outros, lançaram cursos sobre o assunto.
Viver de escrita desde antes desse boom, segundo Cris, é trabalhar o tempo todo, porque cada segundo do mundo conta histórias que podem virar um livro, um conto, uma aula, um diálogo. "Se acostumar com uma rotina não linear, que pode começar às 5h da manhã, para escrever aproveitando o silêncio, e passar por horas de leitura, pesquisa, observação. Estar presente onde se está, porque a escrita é o exercício do estado da presença. E saber que o que vai ser lido carrega consigo um perfume do que tu querias dizer, porque as pessoas têm percepções individuais sobre tudo. E isso é uma boniteza. Acho que ser escritora é construir - diariamente - caleidoscópios", define.
Na Go, writers, as aulas são sobre processos criativos, onde a palavra é o veículo. Ela a define, inclusive, como uma escola de arte. Há valores e propostas diferentes: desde a Jornada Agogo, que tem seis ou oito semanas com conteúdo diário, desmanual da escrita, exercícios, devolutiva individual e outros detalhes, que custa
R$ 800,00, até uma palestra de R$ 170,00 e aula temática (de cartas de amor, comunicação não violenta, etc) de R$ 350,00. Os encontros virtuais conectam os alunos com os emaranhados que formam textos.
Antes de empreender na Go, writers, Cris era editora-chefe da revista Noize e já havia publicado livros. Até que a amiga Mari Camardelli sugeriu que ela montasse uma espécie de grupo de estudos e mandou alguns e-mails, perguntando se as pessoas se interessariam. Raquel Chamis, outra amiga, respondeu dizendo "Go, writers". E foi.
A escrita, para Cris, ajuda na reelaboração de fatos e provoca reflexão. "Quando colocamos emoções e sentimentos por escrito, somos capazes de compreender em profundidade o que acontece, aconteceu, acrescentamos camadas de compreensão. Cura a alma, vez em quando o corpo também", percebe. E isso é uma das justificativas do aumento da procura pelos cursos de escrita enquanto tudo parecia de cabeça para baixo no mundo. Tanto que Cris teve desde um aluno que fez uma jornada enquanto estava hospitalizado por conta da Covid até famílias que se inscreveram juntas para conversar por escrito. Rolou, ainda, uma festa de aniversário que foi uma aula online com gente em Nova York, São Paulo e Rio de Janeiro.
Ela acredita que a solidão imposta tenha feito com que as pessoas precisassem externar, de algum jeito, o coração. "Muita gente passou a entender a palavra como o que, de fato, ela é: um abraço. Uma pele, como diz Roland Barthes", cita.
Na carreira literária, Cris vai da prosa poética ao romance, passando sempre por um pouquinho de realismo mágico. Entre seus títulos, estão Sylvia não sabe dançar, Papel Manteiga para entulhar segredos, cuja história é contada através de cartas e receitas e que vendeu mais de 35 mil exemplares, Duas pessoas são muitas coisas e Tem um coração que faz barulho de água.
Com tanta história, o papel parece sugerir: Go, Cris.

Ufrgs oferece oficinas à comunidade e opções de pós-gradução

Quando se fala da presença da linha de estudos sobre escrita no meio acadêmico gaúcho, a professora Marcia Ivana de Lima e Silva é referência. Isso porque ela é fundadora do curso de Escrita Criativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), estabelecido em 2015. Atualmente, além dos alunos da universidade, oficinas com duração de um semestre são oferecidas à comunidade através do Núcleo de Ensino de Línguas em Extensão (Nele).
Marcia se interessa pelo tema há muito tempo. Logo que iniciou a graduação em Letras, apaixonou-se pelo assunto ao organizar os manuscritos do escritor Erico Verissimo.
"Que coisa maravilhosa, vi ali a quantidade de trabalho que tinha", lembra. Ela, inclusive, estudou os processos de criação em seu pós-doutorado no Canadá.
"O estudo dos manuscritos ensinou-me o quanto de pesquisa e de elaboração requer a criação de uma obra literária. Assim, ao lado do trabalho com manuscritos de escritores consagrados, dos acervos, passei a incentivar dissertações e teses em Escrita Criativa", conta.
Marcia percebe que o interesse pela escrita por pessoas das mais diversas áreas de atuação, inclusive empreendedores, deve-se ao seu papel na mente humana. "Escrever significa tirar as coisas que tenho dentro de mim desordenadamente e colocá-las para fora ordenadamente. Isso significa uma tentativa de ordenação do mundo. E se teve uma coisa desordenada na pandemia foi o mundo", reflete.
Embora tenham surgido muitas oficinas de escrita nos últimos anos, Marcia lembra que o Rio Grande do Sul sempre foi pioneiro nesse quesito por ter um povo mais reflexivo, que não gosta de seguir modelos. O interesse por entender mais sobre as palavras, conforme a professora, é positivo.
"Mesmo que não saiam escritores grandiosos de uma oficina, sairá um leitor melhor. O grande mérito da oficina é ensinar a ler. O aluno que chega sai muito mais capacitado, muito mais atento", percebe.
 

Jogo de tabuleiro auxilia iniciantes

Amante das letras desde pequeno, Marcelo Spalding, de Porto Alegre, escreveu seu primeiro livro aos 16 anos e o publicou aos 17. Hoje, ele forma outros escritores na Metamorfose Cursos e Editora através de oficinas de curta duração, com aulas gravadas, e do Curso Online de Formação de Escritores, com aulas ao vivo semanais. O profissional, inclusive, produziu um jogo de tabuleiro de Escrita Criativa.
No jogo, o uso de elementos físicos, como cartas, bonecos, dado e tabuleiro, busca trazer o lado lúdico do que é escrever e despertar a fantasia. Ao apresentar diferentes cenários, personagens e conflitos, o jogador é estimulado a imaginar como encaixar as partes, focando sua preocupação na narrativa.
Aos 19 anos, Marcelo participou de uma das oficinas de escrita mais tradicionais do Rio Grande do Sul, do escritor e professor Assis Brasil. A partir disso, não parou mais de estudar sobre o assunto. Até que ele próprio virou professor na UniRitter e, então, entrou no ramo com visão de negócio.
"Me considero muito mais um empreendedor que utiliza a escrita como meio e fim. Porque em qualquer tipo de trabalho saber escrever, saber se expressar, é fundamental. Ainda mais hoje, quando o ensino de leitura e escrita tem se mostrado tão falho", aponta.
Para Marcelo, a escrita é fundamental nas relações, sejam pessoais ou profissionais. Conforme o professor, ela é importante tanto porque organiza o pensamento e permite comunicações mais complexas quanto pelo maior uso de aplicativos de texto. "Até para a pessoa começar um relacionamento ela conversa pelo aplicativo, depois troca mensagens no Whats e por aí vai", compara.
Marcelo lembra que, na pandemia, a venda de livros impressos aumentou, assim como apareceram as oficinas de escrita. "Eu sempre digo que ler e escrever não é dever, é direito", afirma o autor de oito livros, entre eles o Clube do Rock, lançado em 2020 e finalista do Prêmio Jabuti 2021, e o Escrita Criativa para Iniciantes.

O pioneiro segue na ativa

Luiz Antonio de Assis Brasil foi o primeiro professor a lançar uma oficina de escrita no meio acadêmico no Rio Grande do Sul, ativa até hoje na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). Para ele, a atividade tem protagonismo. 
"A oficina, a mais antiga do País em ambiente acadêmico, completa 38 anos de atividades, e por ela já passaram mais de 800 alunos. Vários destacam-se no cenário nacional, como Carol Bensimon, Daniel Galera, Luísa Geisler, Paulo Scott, Michel Laub, todos premiados e traduzidos", diz. Atualmente, a novidade é que suas aulas passaram a ser online, o que possibilitou incorporar alunos de outros estados e até do exterior.
"Para mim, a oficina representa o que de mais relevante tenho feito na minha vida, talvez mais relevante do que minha própria obra literária. Para tanto, nunca me faltou o integral apoio da minha universidade, a Pucrs."
As inscrições para a turma de 2023 abrirão, como de hábito, em outubro em www.pucrs.br/humanidades.