Sioma Breitman, o fotógrafo que retratou cinco décadas de Porto Alegre

Por meio de sua lente, fotógrafo desenvolveu laços profundos com o espírito da Capital

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Por meio de sua lente, fotógrafo registrou as belezas e mudanças de cinco décadas de história em Porto Alegre
Sabe aquela Porto Alegre que as pessoas maiores de 60 anos vivem recordando com saudade? Que, entre os anos 1920 e 1970, era uma cidade pacata, sem violência urbana, com menos de 1 milhão de habitantes, sem avenidas extensas e outras particularidades que a tornavam mais próxima de metrópoles sul-americanas como Buenos Aires e Montevidéu do que as brasileiras Rio de Janeiro e São Paulo? Pois essa cidade de outrora está disponível aos olhos, corações e mentes de quem visita a exposição Sioma Breitman, O Retratista de Porto Alegre, em cartaz até o dia 24 de abril, no Farol Santander, na Praça da Alfândega.
Nome de rua, da fototeca do Museu Joaquim José Felizardo, tema de teses acadêmicas, nome de concurso fotográfico da Câmara Municipal, de curta-metragem e artigos na imprensa, inspiração e referência para as gerações de fotógrafos que vieram após ele, Sioma Breitman é quem, na história da fotografia do Rio Grande do Sul, desenvolveu laços mais profundos, sofisticados e universais com a cidade de Porto Alegre e seus habitantes, segundos os estudiosos de sua obra.
Envolveu-se intensamente com os acontecimentos da cidade que escolheu para viver. Além de fotógrafo bem sucedido, foi tradutor de russo em acontecimentos culturais na capital gaúcha, fundador de entidades de fotografia e cinema, uma espécie de embaixador informal do Rio Grande do Sul levando imagens gaúchas a países como Estados Unidos, França e Israel. Além disso participou ativamente da comunidade judaica local, chegando a ir à Israel em duas ocasiões, em 1948 e 1953, morando alguns meses lá. Afável, educado, viajado, Sioma tinha um lado transgressor também, revelado depois de sua morte com a descoberta de fotos de nus femininos, em uma época que isso era considerado tabu. Entre tantas distinções e prêmios obtidos fora do Brasil, ele foi o primeiro fotógrafo do Rio Grande do Sul a receber o Diploma da Federation Internacionale de L'Art Photographique (FIAP), com sede em Berna, na Suíça. Faleceu em Porto Alegre, no dia 31 de janeiro de 1980, aos 76 anos.
Nascido na cidade de Olgopol, em 1903, Ucrânia, filho mais velho de Nissin Breitman e Ida Breitman, judeu, imigrante, a partir de 1923, quando chegou ao Estado, exerceu sua atividade profissional com um grau tão alto de excelência, que o resultado resiste ao tempo e pode ser conferido na grandiosa exposição do Farol Santander de Porto Alegre, aberta em janeiro de 2022 e que integra os festejos de 250 anos de fundação da capital gaúcha.
O pai de Sioma era fotógrafo, assim como seus quatro irmãos Yacha, Yusia, Mossia e Rica. A família imigra para a América do Sul, tenta se fixar na Argentina, mas acaba aportando em Porto Alegre. Sioma, que ficara em Buenos Aires, se junta à família e, a partir daí, nunca sai do Rio Grande do Sul. Um dos motivos atribuídos à sua permanência na capital gaúcha é ter conhecido, em 1924, Rosa Axelrud Selig, com quem casaria em 1927. O casal teve dois filhos, Samuel e Irineu.
Monta um estúdio em Cachoeira e em 1931 se transfere para Santa Maria. Tem participação de destaque na Exposição do Centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, e em 1937 está de volta a Porto Alegre, mantendo estúdio por mais de 20 anos na Rua da Praia, que lhe dá prestígio, reconhecimento profissional e prosperidade.
Em 1941 vive um dos seus grandes momentos como profissional, fotografando a enchente que assolou Porto Alegre. Dezenas de profissionais de fotografia daquela época fizeram registros da enchente; as fotos mais impactantes, no entanto, são as de Sioma. Seja da paisagem, do drama dos moradores ou as que mostram consequências das chuvas que caíram durante 22 dias, em fevereiro daquele ano, na capital gaúcha. Uma delas, publicada na capa da Revista do Globo, é icônica e percorreu o País.
Graças à dedicação de sua neta, Mirian Breitman, seu acervo se manteve protegido e chega às novas gerações como testemunho da arte fotográfica da era analógica. O resultado são cerca de mil negativos, dois quais 600 foram revelados e integram a exposição no Farol Santander. "Nos últimos tempos, o acervo do meu avô ficou lá em casa, e eu me movimentei para que as coisas pudessem acontecer", conta Miriam.
"Eu convivi com ele como neta, e eu tinha uma ideia do bom fotógrafo que ele era, mas era uma visão familiar. Um exemplo disso é de quando eu tinha 12, 13 anos. Uma colega minha foi embora do Brasil, e a gente queria mandar uma foto da turma pra ela. Fui até o vô e pedi pra ele fazer uma foto de toda a turma, na escadaria do colégio. Como se fosse algo corriqueiro. 'Meu vô é fotógrafo, vai fazer a foto pra mim'", recorda.
A exposição, segundo Miriam, acaba dando uma dimensão muito maior para o fotógrafo dentro da família. "Uma parte grande do acervo nós doamos. Quando foi inaugurada a rua, nós doamos muitas fotos para o Museu de Porto Alegre. E para a Fototeca. O acervo dessa exposição (no Farol Santander) está para ter um destino público, está para ser doado, porque ele tem que ser visto. Já existem duas possibilidades para que isso aconteça, através de um instituto ou fundação. Conservei ele em sala escura, sem umidade, com cuidados especiais. Esse material merece ter tratamento à altura da obra do Sioma."

Fotografias de ar teatral

Toda pessoa que tem contato com a produção fotográfica de Sioma Breitman assegura convicta: ela é fora do comum, possui qualidade internacional e, exibida em qualquer lugar do mundo, será sempre reconhecida como obra de arte. Os inúmeros prêmios conquistados por Sioma ao longo de sua trajetória atestam isso. São mais de 30, nacionais e internacionais.
Para a pesquisadora Ana Carolina Lima Santos, autora da tese A ilustração fotográfica como recurso retórico: um olhar sobre a fotografia no jornalismo de revista, os retratos icônicos de Sioma seguem o modelo artístico publicitário. O ar teatral se distância do ideal bressoniano do instante decisivo, sem deixar que isso tire a humanização da foto. Para ela, "a foto-ilustração opera a partir de uma representação teatral. Na maioria dos casos, um determinado personagem é construído, servido para generalizar, simbolizar e/ou caracterizar um determinado tipo (o casal, o homem, o cidadão brasileiro, o político, o corrupto etc) ou determinada situação".
"O que mais gosto no trabalho dele é a luz. Foi a primeira coisa que me chamou a atenção. O Fernando, com o conhecimento que tem sobre a obra dele, depois me confirmou isso", diz Andrea Pires, uma das curadoras da mostra no Farol Santander Porto Alegre, ao lado de Fernando Bueno. "Ele usava quase que sempre uma única fonte de luz. Defino ele como um escultor de luz e sombras, pois ele realmente faz o que quer com essa única fonte de luz."
Para a curadora, a parte mais fascinante do trabalho do Sioma está nos retratos. "Ele pega pessoas anônimas, algumas de condição extremamente humilde, leva para o estúdio e extrai daquele modelo uma qualidade de retrato, de uma dignidade, usando só uma fonte de luz, esculpindo a sombra do modo que ele quer. É impressionante", reforça.
Já Fernando Bueno destaca: "de vez em quando ele assume um lado Pierre Verger, daqui a pouco vira Man Ray e assim vai. Ele gostava muito de fazer selfie, numa época em que isso não era comum. Porque fazer selfie de Rollei, com tripé, não é bem assim, não é para qualquer um. Ele tem uma mistura de construtivismo soviético e do modernismo alemão, a escola de arte Bauhaus, que tem a ver também muito com a cultura dele", observa. 
Bueno aponta também o componente histórico no trabalho de Breitman. "Há poucos fotógrafos com essa percepção. É lógico que, se você está fotografando uma guerra, há algo de histórico nisso. Mas quando o trabalho não é ligado a um evento específico, a um movimento social ou algo assim, são poucos que têm consciência, no momento da foto, que estão fazendo história."

As noivas de Sioma

Houve uma época em Porto Alegre, de 1940 a 1970, que, para as noivas que iam casar, sinal de prestígio, bom gosto e elegância era ser fotografada por Sioma Breitman. Destacavam-se nas fotos, acima de tudo, as caldas dos vestidos, artisticamente realçadas.
"Há uma característica nessas fotos. O Sioma pegava a noiva pelo braço e fazia ela girar. A cauda do vestido acabava realçada", comenta Andrea Pires, curadora da mostra no Farol Santander. "Ele criou uma assinatura dele, nas fotos de noivas, a partir do detalhe da cauda do vestido. Havia uma competição: quem tivesse o vestido com a maior amplitude, com a maior cauda, maior era o status social. Isso fica visível nas fotos. Ele alinhava a modelo, dava uma torcidinha e criava o movimento."
A seu modo, as fotos de noiva tiradas por Sioma eram a repetição de um tema, praticamente um desfile de vestidos. "Mas algumas são espetaculares. Eram feitas nas casas das noivas. Há uma foto em que está a noiva posando e, acima dela, a foto da sogra. Ela está sob a visível maldição da sogra", observa, divertida, Andrea.
Outro objeto de desejo dos porto alegrenses eram fotos que Sioma Breitman fazia dos footings da Rua da Praia aos domingos. Antes da era da televisão, as opções de lazer dos adultos eram alguma peça de teatro, cinema e um passeio ao longo da Rua da Praia. Homens e mulheres se vestiam com apuro, caprichavam no visual e desfilavam suas elegâncias pelo trajeto. Muito namoro começou nesse espaço físico, muito casal se conheceu assim e, para quem a época viveu, as lembranças são inesquecíveis. Sioma fotograva esse desfile, revelava as fotos e colocava na vitrine de seu estúdio na Rua da Praia. Era sucesso de vendas.
Seu tino comercial também o levou a fazer uma parceria com a direção do Theatro São Pedro, fotografando todas as grandes atrações artísticas que passavam por seu palco. Alguns desses retratos, hoje em dia, são considerados icônicos, como o do maestro Heitor Villa-Lobos.
Conviveu também com o mundo político, e uma foto que fez do então governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, foi assinada pelo político gaúcho em cinco ocasiões posteriores que ele se encontrou com o fotógrafo. Era um hábito de Sioma pedir autógrafo de gente célebre que ele fotografava.

Atuação na comunidade judaica

Pouco conhecida nos dias de hoje é sua atuação na comunidade judaica. A doutora em História Cristine Fortes Lia, da Pucrs, que em 2019 escreveu o artigo acadêmico Literatura e escrita autobiográfica como registro de experiências sensíveis: a trajetória de Sioma Breitman, considera que a importância de Breitman para a comunidade judaica é grande e não se limita ao estúdio fotográfico. Lia teve acesso a um livro autobiográfico, Respingos de revelador e rabiscos, escrito por Sioma e nunca publicado, com um único exemplar editado por seu filho, Samuel. O livro conta a saga movimentada da sua família, desde a saída da Ucrânia até os dias de serenidade, já aposentado, na capital gaúcha.
A historiadora Lia escreve: "o estúdio de Breitman que, muitas vezes, mantinha fotos expostas na vitrine do Foto Aurora, foi um instrumento importante de visibilidade da comunidade judaica, pois, por meio dessas imagens, demonstrava fixação e interesse de permanecer na cidade de Porto Alegre, bons relacionamentos, sucesso econômico e constituição de famílias, já que os imigrantes judeus eram considerados degenerados pela Igreja Católica, por não serem cristãos. Além do registro da vida familiar do bairro Bom Fim, em Porto Alegre, ele também fotografou momentos específicos vividos pela cidade, como a enchente de 1941, e por outras localidades do sul do Brasil. Também foi representativo nas questões de natureza política sobre, por exemplo, a valia da permanência de judeus no Brasil", argumenta Lia. Ela destaca Sioma Breitman e Moacyr Scliar como os expoentes da cultura no papel da comunidade judaica em Porto Alegre.
Em depoimento escrito Wremyr Scliar, irmão do escritor Moacyr Scliar, relembra os laços que ligam as famílias Breitman e Scliar desde que saíram da Ucrânia. "Sioma morava em Cachoeira do Sul, e seus irmãos eram casados com minhas primas-irmãs. A relação com Sioma era estreita, já que ele se ligava por esses laços de parentesco aos Scliar. Foi nesse período, final dos anos 1940, que conheci Sioma. Eles sempre vinham de Cachoeira do Sul para os aniversários e visitas aos demais membros da família Scliar: a matricarca Ana, que emigrou já viúva, com nove filhos pequenos, outros adolescentes e duas filhas já casadas."
"Desde cedo, ainda adolescente Sioma interessou-se pela fotografia, inicialmente como aprendiz num estúdio de Kiev", segue contando Wremyr. "Ele participava ativamente da vida comunitária judaica no bairro Bom Fim. Extrovertido, uma figura elegante, com voz e opiniões muito firmes, ideias avançadas. Me lembro de dois episódios, típicos da personalidade dele. Ao final da II Guerra, na Praça da Alfândega, durante a celebração da vitória dos aliados, ele retirou seu manto vermelho e pediu para que fosse hasteado, incluindo assim a União Soviética na homenagem que se realizava. Como a banda militar não possuía a partitura do hino soviético, Sioma propôs que ela tocasse a novamente a Marselhesa, que fora tocada em homenagem à França", recorda.
"Outro episódio, que mostra a personalidade multifacetada do Sioma: falante e intérprete de russo, sua língua materna na Ucrânia, criou o primeiro curso de russo da Ufrgs. E, no auditório daquela universidade, foi o leitor-intérprete, instantâneo, na cabine de som, das legendas em russo de um memorável festival de cinema russo. Sioma, mais do que fotógrafo de personalidades, era, ele mesmo, uma personalidade humana e criadora, respeitado e admirado", finaliza Wlemyr Scliar.
 

Em uma caixa, os nus femininos

O segredo mais guardado da produção fotográfica de Sioma Breitman estava em uma caixa de sapatos, e foi achado por seu filho Samuel, depois da morte do pai. Eram negativos de nus femininos, feitos ao longo de sua vida e que foram entregues ao fotógrafo Pedro Flores, sócio de Sioma. Hoje estão sob a guarda do também fotógrafo Pedro Flores Filho.
“O meu pai era fotógrafo, um pouco mais novo do que a geração do Sioma. Foram sócios, tiveram um estúdio juntos, que na época se chamava de Laboratório. Meu pai saía de casa e dizia, 'vou no laboratório'", recorda Flores Filho. "Quando o Sioma morreu, o Irineu Breitman, filho dele, procurou meu pai e deu a ele uma caixa com um monte de negativos. Eram fotos de nus femininos. Ele disse para o meu pai: 'Pedro, eu não sei o que fazer com isso. Acho que a pessoa mais indicada para guardar isso és tu'. Contei esse episódio agora para a Miriam, neta do Sioma, que guardou a maior parte do acervo dele. Ela disse: 'como é que o Irineu foi fazer uma coisa dessas?'. Na época, realmente, a gente não tinha noção do que era", explica.
Quem eram as mulheres que posavam para as fotos? Profissionais de sexo, modelos, amigas? "Profissionais não eram. Como ele tinha uma quantidade muito grande de mulheres que ele fotografava, acho que suas modelos vêm daí", opina o atual guardião das imagens.
Para Pedro Flores e outros fotógrafos que tiveram acesso à essas fotos, os nus são lindos, verdadeiras obras de arte, com a luz, enquadramento e plasticidade única, características das fotos do Sioma. "Para a época são fotos fora do comum. Nessas fotos não há nada com intenção de chocar, de imoral ou vulgar. Luz, enquadramento, cenário, posição da fotografada e outros detalhes, inclusive nas fotos com o nu frontal, remetem mais à contemplação do belo do que o pornográfico. São cerca de 60 negativos, feitos durantes anos. No arquivamento desse material os negativos estão marcados com uma espécie de código, nomes subjetivos. Para não serem identificados mesmo. Coisa velada."
Segundo Pedro Flores, Sioma Breitman tinha um jeito afável até para fotografar. "Ele era alto, de físico avantajado, mas se movia de uma forma muito própria, sempre com a máquina na mão. Não se via o momento em que ele fotograva, era de uma discrição muito grande. Isso transmitia confiança e segurança a quem ele fotograva, em qualquer situação".
Fora algumas fotos, publicadas há muitos anos no jornal Zero Hora, essas imagens são virtualmente desconhecidas do grande público. No curta metragem Sioma- O papel da Fotografia (2014), feito pela fotógrafa Eneida Serrano sobre a obra do fotografo ucraniano, há reproduções de alguns nus femininos. Eneida se junta ao elogios, destacando a excelência artística desse material.

As fotos de Sioma Breitman que ilustram essa matéria pertencem ao acervo particular da família Breitman e estão sob guarda de sua neta, Miriam Breitman. As imagens foram cedidas para publicação no Jornal do Comércio por Fernando Bueno, curador da mostra no Farol Santander Cultural.

* Higino Barros é jornalista, tendo atuado em Zero Hora, Gazeta Mercantil, jornal O Globo e TV Educativa/RS. É autor do livro Antologia de Gregório de Matos, o Boca de Inferno, publicado na coleção Rebeldes e Malditos, da editora L&PM (1984).