Pioneiro, Conjunto Farroupilha levou música do RS ao exterior e gravou 'Prenda minha'

Formado há 73 anos, em 20 de setembro de 1948, na Rádio Farroupilha, o grupo foi o primeiro a levar a música do Rio Grande do Sul para fora do País

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Formado há 73 anos, em 20 de setembro de 1948, na Rádio Farroupilha, grupo foi primeiro a levar música do RS ao exterior
Dois anos após ter sido criado, em setembro de 1950, o Conjunto Farroupilha pela primeira vez saiu do Estado, quando foi para São Paulo representar as emissoras associadas de Chateaubriand, na primeira transmissão de televisão do Brasil, na TV Tupi. Iniciava ali uma saga que, pelas asas da Companhia Rio-Grandense de Aviação, a Varig, levou o grupo (em atividade até 1993) a se apresentar em países como China, Rússia, Inglaterra e Estados Unidos. Por onde passou, em cinco continentes, o conjunto deixou uma indelével impressão no público e crítica, especialmente pelos atributos técnicos e beleza dos arranjos de suas canções.
Um dos primeiros grupos vocais brasileiros a unir vozes femininas e masculinas, numa época em que isso era uma prática incomum, o Conjunto Farroupilha surgiu a partir de uma ideia da soprano Inah Vital, solista da orquestra da Rádio Farroupilha. Inah reuniu em torno de si, inicialmente, os músicos Tasso José Bangel (com o qual depois ela se casaria, adotando o sobrenome dele), o também casal Danilo Vital de Castro (irmão de Inah) e Estrela d'Alva Lopes de Castro e Alfeu de Azevedo. O quinteto, guardada as devidas proporções, por causa de seus dois casais, era uma espécie de "ABBA dos Pampas".
À época com 17 anos, o maestro, compositor, arranjador e acordeonista Tasso Bangel (hoje com 91) diz que, embora fosse admirador da música tradicional gauchesca, a considerava, naqueles dias, um tanto "simplista". Seria com a arrebatadora chegada da Bossa Nova, mais sofisticada e não tão folclórica, ele situa, que uma nova orientação estética pôde, então, ajudar a moldar uma outra feição para a música do Rio Grande do Sul. Tal transformação, observa Bangel, desagrilhoou o Conjunto Farroupilha do compromisso, quase uma obrigação, de ter de voltar-se apenas ao cancioneiro tradicionalista. Uma liberdade que lhes permitiu gravarem artistas de outras constelações, como, por exemplo, Tom Jobim, Lupicínio Rodrigues, Dorival Caymmi e Ary Barroso. "Nós [o Conjunto Farroupilha] rodamos o Brasil de ponta a ponta e, ao longo dessa trajetória, tivemos a oportunidade de interpretar a música brasileira que gostávamos", rejubila-se Bangel.
Em 45 anos de uma pujante carreira, foram mais de 23 discos, entre compactos e LPs lançados. O primeiro arranjo executado, recorda Tasso, foi Please, don't say no, say maybe, grande sucesso de Sammy Fain e Arthur Freed, em 1945. Além da influência do jazz das grandes orquestras norte-americanas, o Conjunto Farroupilha trazia em seu bojo sonoro reminiscências ao tango dos países do Prata e dialogava, ainda, com grupos vocais do Brasil e dos EUA. Logo em seguida, porém, o conjunto se encontraria com os então jovens folcloristas Barbosa Lessa e Paixão Côrtes. E, a partir disso, passou a adotar um repertório mais identificado com a cultura sulista.
O compositor e historiador Vinícius Brum destaca que o Conjunto Farroupilha, fora ter cantado o Rio Grande do Sul mundo afora, ainda consagrou-se como pioneiro da Bossa Nova (o disco Os Farroupilhas na TV, de 1960, traz a primeira gravação de Samba de uma nota só, de Jobim). "Eles imortalizam-se logo de saída, com a gravação de Negrinho do pastoreio, de Barbosa Lessa. E, a seguir, com Gaúchos em Hi-Fi, que é um disco referencial", afirma Brum.
Um fenômeno que também inspiraria grupos como o carioca MPB4, em atividade desde os anos 1960. O vocalista Aquiles Reis conta que, logo no início do MPB4, a busca era por um som vocal que os caracterizasse. Naqueles dias, lembra Reis, todos integrantes ouviam os conjuntos vocais da época: Os Cariocas, Trio de Ouro, Conjunto Farroupilha, além do populares trios de boleros. "No caso específico do Conjunto Farroupilha, nós gostávamos do timbre que eles empregavam nos acordes vocais. Lembro-me bem o quanto eu apreciava ouvi-los cantando. A delicadeza de suas vozes era uma marca das suas harmonias", engrandece.

Entre os primeiros LPs

No ano de 1952, após dezenas de compactos lançados, o Conjunto Farroupilha gravou seu primeiro long-play pela gravadora Copacabana. Intitulado Gaúcho, esse disco (que traz adaptações do folclore gaúcho feitas por Barbosa Lessa e Paixão Côrtes, para temas como Balaio, Tatu, Me dá um mate e a, mais conhecida do repertório do grupo, Negrinho do pastoreio) foi o quarto LP a ser prensado no Brasil.
Anos antes, quando estudava na escola Julio de Castilhos, em Porto Alegre, Tasso Bangel teve contato com Paixão Côrtes e Barbosa Lessa, que, na época, estavam pesquisando o cancioneiro folclórico do Rio Grande do Sul. Lessa e Côrtes saíram à procura de Bangel, na Rádio Farroupilha, para lhes mostrar as músicas "gaúchas" que vinham compondo a partir de suas pesquisas no interior do Estado. A ideia era que o Conjunto Farroupilha, ainda no início de carreira, passasse a executá-las e a difundi-las. Apesar de terem aceitado a missão, com "gosto e paixão", Bangel pondera que, a princípio, não era exatamente essa musicalidade que eles estavam visando. "O nosso [do pessoal do Conjunto Farroupilha] mundo, pode-se dizer, era um pouquinho diferente daquele idealizado pelo Paixão e o Lessa!", difere.
Todavia, Tasso devota a Lessa e Côrtes parte importante do enorme reconhecimento recebido pelo Conjunto Farroupilha, em sua trajetória de inquestionável sucesso. Ele acredita que as interpretações do grupo, através dos arranjos vocais e orquestrais, marcadamente de grande apuro harmônico, tenham sido o principal motivo para a música do Rio Grande do Sul ter alcançado o mercado fonográfico e, mais do que isso, aberto caminhos para músicos e compositores que os seguiram.
O Conjunto Farroupilha foi de tal forma marcante que o principal folclorista gaúcho, Paixão Côrtes, no livro Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas, de 1984, chamou de "Estilo Conjunto Farroupilha" um dos três principais estilos de música do Rio Grande do Sul. Essa vertente da música regional foi esboçada pelo legendário grupo vocal Quitandinha Serenaders nos anos 1940, mas foi plenamente desenvolvida pelo Conjunto Farroupilha.
Segundo Côrtes, o "Estilo Conjunto Farroupilha" caracteriza-se pela fusão da música de extração folclórica com elementos da música de outros rincões, ou seja, é a um só tempo regionalista e universal. Entre os seguidores de tal estilo, Paixão cita grupos como Os Sinuelos, Os Gaudérios e Os Araganos.

O vanguardismo de Inah Bangel

Luciana Prass, doutora em música e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, observa que, no Rio Grande do Sul, ouve-se falar muito em Elis Regina, quando o assunto são cantoras desbravadoras. Por isso, ela chama atenção para o pioneirismo da solista Inah Bangel, a qual, em meados da década de 1940, situa Luciana, era um dos grandes salários da Rádio Farroupilha. "Por si só, numa época em não existiam grupos gaúchos que alternavam vozes femininas e masculinas, a ideia de criação do Conjunto Farroupilha, que partiu de Inah, foi um ato de empoderamento anos à frente de seu tempo", defende Luciana, que também está à frente, na Ufrgs, do projeto Tasso Bangel e o Eterno Aprender. Trata-se de um grupo de trabalho dedicado ao estudo e aprofundamento, por meio da pesquisa etnográfica e etnomusicológica, da obra do maestro e também do Conjunto Farroupilha.
Tasso, por sua vez, afirma que, além de tudo, sua esposa, falecida em 2007, não gostava de cantar sozinha. Por este motivo, esclarece, Inah pressionava a direção da rádio Farroupilha para que um conjunto fosse formado. Na época, o jovem Bangel havia se mudado de Taquara, onde residia, para Porto Alegre, para estudar música no Instituto de Artes. Inah, ressalta o marido, foi uma das primeiras cantoras profissionais do Rio Grande do Sul. "Capitaneados pela Inah, a formação mista do conjunto fez seu primeiro ensaio no dia 20 de setembro de 1948, na data Farroupilha. E, a partir daí, literalmente, a coisa deslanchou desde o primeiros acordes".
Falando em pioneirismo, na década de 1960, as atividades do Conjunto Farroupilha estavam muito prósperas. Paralelamente às incansáveis viagens nacionais e internacionais, fora as gravações do grupo, Tasso Bangel e Danilo Vidal criaram a Gravadora Farroupilha e começaram se dedicar a ela. Registraram por meio desse selo fonográfico grandes nomes da música brasileira, como o pianista Pedrinho Matta e Leny Eversong.

Nas asas da Varig

Com um repertório que, muito além das músicas gaúchas, incluía agora músicas regionais representativas de várias partes do Brasil, o Conjunto Farroupilha inicia, a partir de meados dos anos 1950, um intenso período de viagens internacionais, muitas das quais fruto de parceria entre o Ministério das Relações Exteriores e a Varig (o célebre jingle da viação foi criação do conjunto), empresa de transporte aéreo, em franca ascensão à época. Viajando pelas asas da Varig, o grupo percorreu os maiores palcos do País e do mundo. Em uma temporada nos EUA, fizeram 15 noites de shows no concorrido Radio City Music Hall, em Nova York, feito nunca antes alcançado por um artista brasileiro. De Fidel Castro, receberam convite para ir a Cuba, se apresentar no Cassino Tropicana. Para tanto, dois meses antes, rumaram para Porto Rico, a fim de testarem, no Hotel Hilton, a aceitação de seus arranjos pelo povo caribenho.
Como assinala Luciana Prass no artigo Nas Asas da Varig e da Panair: o Conjunto Farroupilha e o Espalhamento da Música Popular Brasileira e Gaúcha nos Anos 50 e 60 do Século XX, dentre uma série de viagens que sucederam o sucesso de Gaúchos em Hi-Fi, o grupo, entre outras legendárias "aventuras" estrangeiras, teve uma temporada em Buenos Aires, ao lado do famoso Moulin Rouge. "Promovíamos os eventos da Varig, vendendo o Brasil fora do Brasil, no mundo, aonde ela pousava", diz o maestro Tasso Bangel. Antes de viajar, elucida Bangel, a Varig informava aos integrantes do conjunto qual era a música "do momento" naquele país para que pudessem, antecipadamente, preparar um repertório com canções populares que tocavam localmente. "Aprendíamos, orquestrávamos, ensaiávamos e, quando chegávamos lá, interpretávamos os sucessos do lugar. O público vibrava".
O Conjunto Farroupilha, por conta dessa experiência única, gravou em distintos idiomas e em diversos países. Foram os primeiros, por exemplo, a importarem, da Alemanha para o Brasil, a chamada Liechtensteiner Polka; também foram eles que trouxeram, para o Ocidente, pela primeira vez, a canção tradicional Noite em Moscou, que, por sinal, gravaram no idioma russo. Na Rússia, o frisson foi tão grande que, até hoje, o russo Andrey Makarevic, um dos músicos mais importantes do país (pioneiro do rock soviético e fundador da célebre banda Mashina Vremeni), diz que, na época, as autoridades escolhiam a dedo os artistas, oriundos do outro lado da Cortina de Ferro, que se apresentariam por lá. Com legítima afeição e nostalgia, Andrey fala sobre os dois compactos lançados na Rússia pelo Conjunto Farroupilha, contendo, ao todo, sete músicas "muito boas" - "canções adoráveis do pop brasileiro, em especial Samba tem que ter pandeiro, de Túlio Piva, absolutamente fantástica", elogia. Completa o admirador russo: "Sinceramente, não sei como eles obtiveram tamanha boa vontade das autoridades da época".
Natural de São Petesburgo, colecionador de discos e brasilianista, Leo Kartz, que possui um dos compactos lançados pelo grupo na Rússia, coteja o Conjunto Farroupilha à sonoridade nordestina, em especial à sulcada no LP Nordeste: Cordel, Repente, Canção (que reúne artistas cantadores nordestinos), de 1975. "Quando ouvi Cordel, Repente, Canção, pela primeira vez, fiquei pasmo. Pensei: 'Uau, como é bluesy isso tudo!'. Muito 'rock'. Em relação ao Conjunto Farroupilha, a impressão foi diferente: a música é muito mais quente, mais 'leve', mais dançante. Os discos do conjunto foram realmente as primeiras músicas do Brasil que ouvi. Então, essa foi uma experiência muito importante", descreve.
Com a fama internacional obtida pelo Conjunto Farroupilha, em meados dos anos 1960, os gaúchos chamaram a atenção do mais famoso quarteto do mundo: Os Beatles. Certo dia, o quinteto ensaiava para uma gravação nos estúdios da BBC de Londres, quando, lá pelas tantas, viram-se observados pelo quarteto de Liverpool no instante em que cantavam uma bossa de Tom Jobim, rememora o maestro. "Estávamos na BBC, nos aprontando para gravar uma programa pilchados. Estávamos ensaiando Samba de uma nota só e, lá no cantinho da parede, tinham três cabecinhas, uma em cima da outra, no vão de uma porta. Estrela Dalva, minha cunhada, perguntou ao produtor quem estava lá nos olhando há tanto tempo. Ele nos disse que aquelas figuras eram, nada mais, nada menos, que os famosos The Beatles", relembra, desprendidamente Bangel, que, atualmente, reside com o filho em São Paulo.

'Prenda minha'

Em sua autobiografia, Rod Stewart confessou ter plagiado - de forma inconsciente - a melodia de Taj Mahal, de Jorge Ben, para fazer o big hit Da ya think I'm sexy?. Ele conta que passou o Carnaval de 1977 no Rio de Janeiro, ouvia a tropicaliente canção ecoando em todos os cantos, que sua melodia "alojou-se" em sua memória e emergiu espontaneamente quando começou a fazer a música. Recentemente, em caso que se desenrola na justiça, a britânica Adele foi acusada de plagiar um trecho de Mulheres (composta por Toninho Geraes), interpretada por Martinho da Vila, em Million years ago, do álbum 25!.
A canção Prenda minha, uma das mais icônicas peças folclóricas do Estado, registrada pela primeira vez em disco pelo Conjunto Farroupilha, foi gravada por artistas de várias matizes - de Osvaldir e Carlos Magrão a Kleiton e Kledir, de Flávio Venturini a Caetano Veloso, passando por Agnaldo Rayol, a lista é extensa. E inclui também a lenda do jazz norte-americano Miles Davis, que, no entanto, registrou a canção como se fosse dele e do arranjador Gil Evans. Apesar de conter a mesma sonoridade da toada original, Miles batizou sua versão instrumental de Song No. 2 (presente no álbum Quiet Nights, 1963).
O jornalista, colecionador de discos e pesquisador musical Zeca Azevedo acredita na hipótese de que Miles e Gil Evans tenham ouvido Prenda minha no LP Gaúchos em Hi-Fi (um dos primeiros gravados no Brasil com a nova tecnologia de alta fidelidade), lançado, em 1957, pela Columbia - a mesma gravadora do lendário trompetista: "Como queriam fazer um disco 'brasileiro', Miles e Evans devem ter pedido à gravadora discos de música brasileira para ouvir e o do Conjunto Farroupilha deve ter entrado no pacote. É suposição, mas parece-me totalmente plausível".
Tasso Bangel, contudo, repele completamente a hipótese de ter sido "roubado" por Miles Davis em Prenda minha (dos versos: "Vou-me embora, vou-me embora, prenda minha / Tenho muito que fazer / Tenho de ir para o rodeio, prenda minha / No campo do bem-querer / Tenho de ir para o rodeio, prenda minha / No campo do bem-querer"). Ele diz que, se por ventura, isso, de fato, tenha ocorrido é uma grande honra saber que a música do internacional Conjunto Farroupilha - que rodou o mundo nas asas da Varig e da Panair - tenha chegado mais longe do que um dia imaginou-se. E que tenha caído nas graças, e nos ouvidos, do inventor do cool jazz".

Jovem Guarda x Velha Guarda

Tasso Bangel revela que um dos momentos em que o Conjunto Farroupilha sofreu uma baixa considerável, em sua triunfante carreira, foi com a chegada da Jovem Guarda, em meados dos anos 1960. "Quando veio a turma jovem-guardista, capitaneada por Roberto Carlos, eram 'tudo uma gurizada'. Eles nos adoravam, só que tinham um outro padrão musical, menos refinado, deve-se dizer, que o do Conjunto Farroupilha. Então, nós sofremos, na época, essa mutação do gosto do povo. Já não mais imperava o clima romântico, aquelas lindas vocalizações", analisa Bangel.
A Jovem Guarda, continua o maestro, era uma música mais rítmica, essencialmente da juventude, baseada na estridência das guitarras elétricas: "O Conjunto Farroupilha, por sua vez, sequer tinha contrabaixos elétricos e bateria. O nosso negócio era mais harmônico, mais lírico. Seguindo a lógica comercial, os empresários todos começaram a preterir os grupos vocais da época, em detrimento do popular sucesso dos artistas da Jovem Guarda. Nada mais natural. A vida corre para frente".

 

* Cristiano Bastos é jornalista e autor dos livros Gauleses irredutíveis - Causos & atitudes do rock gaúcho; Julio Reny - Histórias de amor e morte; Júpiter Maçã: A efervescente vida e obra; Nelson Gonçalves: O rei da boemia e Nova carne para moer. Também dirigiu o documentário Nas paredes da pedra encantada, sobre o álbum Paêbirú, de Lula Côrtes e Zé Ramalho.