Legalidade completa 60 anos e é lembrada em livros, filmes e museu

Governador Brizola comandou a resistência com discurso inflamado e dedo em riste

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Monumento em bronze em homenagem a Leonel Brizola, de autoria do escultor Otto Dumovich, foi instalado em 2014, entre o Palácio Piratini e a Catedral Metropolitana de Porto Alegre
O Movimento da Legalidade, um dos principais acontecimentos políticos que sacudiram o Brasil após a renúncia do presidente Jânio Quadros, completa 60 anos no dia 25 de agosto. Geralmente, são realizados debates e exposições para lembrar a mobilização popular em defesa da Constituição, que garantiu a posse do vice-presidente João Goulart. Mas as limitações sanitárias devido à pandemia da Covid-19 restringiram os eventos e a presença de público em solenidades em câmaras municipais gaúchas e na Assembleia Legislativa do Estado.
A tensão provocada pela recusa dos ministros militares em aceitar a investida de Jango na presidência da República em 1961 quase levou o país a uma guerra civil. O levante iniciou no Rio Grande do Sul e foi liderado pelo governador Leonel Brizola, que contou com a força da Brigada Militar e o apoio de soldados e oficiais nacionalistas das Forças Armadas e de alguns setores da imprensa para deter o golpe, que já estava em curso. A resistência durou 14 dias.
Não faltam opções para quem tiver interesse em conhecer ou relembrar do episódio histórico. Há uma extensa produção cultural sobre o desenrolar dos acontecimentos naqueles dias conturbados da vida nacional. Livros, documentários, filmes, reportagens, além de trabalhos acadêmicos ajudam a reconstituir o momento histórico e a traçar perfis dos seus protagonistas.
"Numa época em que a televisão ainda engatinhava, os fotógrafos e o rádio foram os olhos e a voz da nação", aponta o fotógrafo e historiador Claudio Fachel em seu livro Fotojornalismo e Legalidade - 1961 (Editora Medianiz, 2011). O autor resgata o papel da imprensa naqueles dias agitados, em especial a edição gaúcha do jornal Última Hora, principal aliada do PTB desde a Era Vargas.
Os jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton trazem um relato minucioso dos fatos em seu livro-reportagem 1961, Que as armas não falem (Senac, 2001). Outra obra que merece destaque é 1961 - O Golpe Derrotado (L&PM, 2013), em que o jornalista Flavio Tavares lança luzes sobre sombras daquele período, com a autoridade de quem cobriu os fatos como repórter.
A produção cinematográfica sobre o tema ainda não é tão diversificada como a literária, mas as obras trazem riquezas de detalhes que, comumente, são esquecidas com o passar do tempo. Um dos primeiros e mais valiosos documentários é Jango (1984), de Sílvio Tendler e Maurício Dias, com entrevistas de Leonel Brizola, e de outras autoridades.
Já o documentário O dia que durou 21 anos (Pequi Filmes, 2012), de Camilo Tavares, traz uma abordagem mais aprofundada sobre a participação do governo norte-americano na política brasileira na década de 1960. O filme mais recente, Legalidade (2019), de Zeca Brito e Leonardo Garcia, mistura história e ficção, e tem no elenco nomes como Leonardo Machado, no papel de Brizola, Cléo Pires e Letícia Sabatella, ambas jornalistas na trama.
Quem tiver curiosidade em conhecer a central de rádio que Brizola mandou instalar nos porões do Palácio Piratini e ouvir algum discurso do ex-governador vai ter de esperar um pouco mais. O Memorial da Legalidade está fechado devido à pandemia. No espaço, inaugurado em 2011, estão expostos equipamentos de rádio, documentos, fotografias e vídeos que reconstituem o embrião da Cadeia da Legalidade.
Assim ficou conhecida a rede de 104 emissoras gaúchas, catarinenses e paranaenses que projetou o movimento de resistência para outras regiões do País. Funcionou 24 horas, durante 12 dias. A primeira transmissão ocorreu às 15 horas do dia 27 de agosto, com um discurso inflamado e com dedo em riste do governador.
Esse gesto foi eternizado no monumento em bronze, de autoria do escultor Otto Dumovich, instalado em 2014, entre o Piratini e a Catedral Metropolitana de Porto Alegre, ao som da gaita de Borghettinho tocando Querência amada, de Teixeirinha, seguida do Hino da Legalidade.

"Ninguém dará o golpe por telefone"

"Ninguém dará o golpe por telefone. O Rio Grande não aceita o golpe e a ele não se submeterá!" A frase é uma das centenas que a imprensa reproduziu das declarações de Brizola no decorrer daqueles dias finais de agosto de 1961, após Jânio Quadros recusar por telefone seu convite para governar, provisoriamente, a partir da capital gaúcha.
Seu manifesto mais famoso foi o de despedida. Jânio se dizia "esmagado" por "forças terríveis" e pelas "ambições de grupos dirigidos, inclusive do exterior, que o impediram de exercer o poder em favor dos interesses nacionais. O governo Jânio-Jango, apelidado de Jan-Jan, durou apenas sete meses.
Em Porto Alegre, Brizola percebeu que algo muito grave havia ocorrido quando na metade da manhã de sexta-feira, dia 25, militares retiraram-se no meio dos desfiles pelo Dia do Soldado, no Parque Farroupilha. Logo, o jornalista Hamilton Chaves, seu assessor de imprensa, informou sobre a renúncia. Jango estava em Cingapura, quando foi avisado dos acontecimentos na madrugada do dia 26. Ele presidia uma missão comercial e passara pela China antes de chegar naquele país do sudeste asiático. Informado de que seria preso no instante em que desembarcasse no Brasil, foi orientado a aguardar em Montevidéu.
O capitão da BM, Emilio Neme, chefe da Casa Militar de Brizola, mandou buscar armamentos guardados desde a época em que o general Flores da Cunha havia importado da Tchecoslováquia para enfrentar Getúlio. Enquanto os ministros militares, em Brasília, determinavam a posse, na presidência, do deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara, trabalhistas instalavam o Comitê Popular Pró-Legalidade, no Mata-Borrão, um prédio de madeira na esquina da Borges de Medeiros com a Andrade Neves, que seria usado para alistar voluntários e distribuir armas.

No domingo, o governador consegue publicar nos jornais locais, como matéria paga, dois manifestos - o do marechal Lott, que foi censurado no Rio de Janeiro, e um outro escrito por Hamilton Chaves, retocado por ele, Brizola, ambos repudiando o golpe: "Na defesa do regime, na defesa da ordem legal e das liberdades públicas, acredito que nós, gaúchos, pelo nosso passado, pelas nossas tradições, saberemos nos inspirar, esquecendo nossas diferenças. O Rio Grande do Sul comparece perante a Federação como uma unidade. O governo do Estado não pactuará com qualquer golpe nas instituições e que venha a acarretar o cerceamento das liberdades públicas".
O jornal Última Hora lançou edição extra, com um editorial na primeira página, sob o título Constituição ou Guerra Civil: "Nem que seja para ser esmagado o Rio Grande do Sul reagirá. Mas não será esmagado porque todo o Brasil está pronto para repelir o golpe".
O cenário era de guerra na sede do governo gaúcho e arredores. Barricadas de sacos de areia e rolos de arame farpado guarnecidos por brigadianos protegiam as entradas e o terraço da sede do governo, já sob ameaça de bombardeio aéreo. A tentativa só foi frustrada porque sargentos da Aeronáutica retiraram peças e furaram os pneus dos aviões na Base Aérea de Canoas.
Enquanto isso, Brizola atrai políticos, religiosos e militares simpáticos ao seu governo e multidões à Praça da Matriz com seus discursos. Às três da madrugada de segunda-feira, 28, o governador ainda dá uma entrevista coletiva, movimentando-se no palácio com uma metralhadora a tiracolo.

Naquela manhã, o comandante do III Exército recebe uma mensagem do ministro da Guerra. Considera que "o governador colocou-se fora da legalidade" e ordena que, se necessário, faça "convergir sobre Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul que julgar conveniente", e que "empregue a Aeronáutica, realizando inclusive bombardeio".
O governador volta ao microfone: "Atenção, meus patrícios, democratas e independentes, atenção para minhas palavras! Em primeiro lugar, nenhuma escola deve funcionar em Porto Alegre. Fechem todas as escolas! Se alguma estiver aberta, fechem e mandem as crianças para junto de seus pais! Tudo em ordem! Tudo em calma! Com serenidade e frieza! Mas mandem as crianças para casa! Quanto ao trabalho, é uma iniciativa que cada um deve tomar, de acordo com o que julgar conveniente. Quanto às repartições públicas estaduais, nada há de anormal! Os serviços públicos terão seu início normal e os funcionários devem comparecer como habitualmente, muito embora o Estado tolerará qualquer falta que, por ventura, se verificar no dia de hoje. Hoje, nesta minha alocução tenho os fatos mais graves a revelar".
A estas alturas, até o arcebispo de Porto Alegre, D. Vicente Scherer, percebendo que a situação se radicalizava, procura o comandante do III Exército para manifestar sua preocupação e se posicionar pela posse de João Goulart.

A reunião de Brizola com o general Machado Lopes aconteceu a portas fechadas no Piratini pouco antes do meio-dia e durou 10 minutos. Brizola relatou mais tarde que os generais do III Exército haviam decidido só aceitar solução para a crise dentro da Constituição. Com uma condição: a Brigada Militar e a Polícia Civil passariam a subordinar-se ao comando do III Exército, ficando Brizola com o comando político.
Em entrevista a Paulo Markun, 40 anos depois, Brizola contou que se levantou, apertou a mão do militar e disse: "General, não esperava outra decisão. O III Exército vai ser reconhecido por toda a nação, está cumprindo um papel histórico".
Pouco depois, os dois ergueram os braços na sacada do Palácio Piratini, aplaudidos pela multidão. Mas a crise só terminaria 10 dias depois, com uma solução conciliatória.
A adoção do regime parlamentarista foi a saída acordada pelo Congresso Nacional e pelos militares para permitir que Jango assumisse o cargo, ainda que com poderes limitados. Uma vitória com gosto amargo para o governador gaúcho, mas serviu para acalmar os ânimos, momentaneamente.
O protagonismo no Movimento da Legalidade projetou Brizola nacionalmente. No final de 1962, elegeu-se deputado federal pelo Estado da Guanabara. Participou ativamente da campanha pela volta ao regime presidencialista, plebiscito antecipado em um ano e três meses. Até que, em 1964, com o golpe militar, foi para o exílio, primeiro no Uruguai, depois nos Estados Unidos. E só retornaria ao Brasil em 1979, fixando residência no Rio de Janeiro, onde foi eleito governador por dois mandatos.

"Esse guri vai longe", previu Getúlio

A motivação de Leonel Brizola para defender a legalidade constitucional ia além do fato de João Goulart ser seu cunhado. Eles iniciaram a vida política praticamente juntos, em 1945, na ala moça do Partido Trabalhista Brasileiro, e dois anos depois, já dividiam a bancada estadual do PTB na Assembleia Constituinte. Naturalmente, incorporaram a ideologia trabalhista de Alberto Pasqualini e Getúlio Vargas que, certa vez, previu um futuro promissor para um jovem Brizola, com 20 e poucos anos. "Esse guri vai
longe", vaticinou.

"Nunca me senti comprometido com nada que não se conformasse com aqueles valores éticos que marcaram a minha formação. Daí, o meu inconformismo e possivelmente até alguns exageros na minha linguagem e no meu comportamento. Tinha necessidade de acordar, sacudir a opinião pública, que me parecia amortecida, para uma situação social injusta e, naturalmente, inaceitável (...) Assumi, em 1961, uma posição radical em defesa da legalidade e da Constituição (...) Distribuí, inclusive, armas à população, num momento de desespero", declarou Brizola em entrevista ao jornalista Moniz Bandeira, em julho de 1978, no exílio em Nova York.
O menino de família pobre de Carazinho, interior gaúcho, só não alcançou a presidência do País. Mas deixou um legado de conquistas que é comemorado anualmente e será multiplicado na semana do dia 22 de janeiro do próximo ano, no centenário de nascimento do líder trabalhista.

Os lugares de Brizola em Porto Alegre

Leonel Brizola deixou a casa da mãe aos 9 anos e foi morar com a irmã, Francisca, a Quita, em Passo Fundo.
  • Aos 14 anos, mudou-se para Porto Alegre e, enquanto não conseguia vaga para morar e estudar na escola Técnica de Agricultura - ETA, em Viamão, trabalhou como trocador de moedas na Galeria Chaves, no Centro da Capital.
  • Com 17 anos, formado técnico rural, arrumou emprego na Refinaria Brasileira de Óleos e Graxas, no município de Gravataí, de propriedade de Ildo Meneghetti, que viria a se tornar um dos seus adversários políticos mais encruados.
  • Aos 18 anos, foi aprovado num concurso para o Ministério da Agricultura e foi trabalhar em Passo Fundo. Cerca de um ano depois, voltou para a Capital, alugou um quarto numa pensão na Voluntários da Pátria e, não demorou, conseguiu emprego como jardineiro na Divisão de Parques e Jardins da Prefeitura de Porto Alegre.
  • Pouco tempo depois, mudou-se da pensão para um "puxadinho" junto ao prédio da administração do Parque Farroupilha. Matriculou-se no Colégio Nossa Senhora do Rosário, então um internato, e foi morar lá. Terminou o ginásio com 21 anos.
  • Depois, pediu licença do trabalho na prefeitura para prestar o serviço militar, alistando-se no 3º Regimento de Aviação do Exército, que se transformaria na Base Aérea de Canoas.
  • Em 1944, concluiu o ensino secundário no Colégio Julio de Castilhos. 

  • Em 1945, entrou para a Escola de Engenharia da Ufrgs e filiou-se no PTB, passando a integrar a Ala Moça do PTB. Ali, conheceu Getúlio Vargas, Alberto Pasquallini, Sereno Chaise, João Goulart, entre outros.
  • Em 1947, elegeu-se deputado estadual. Tinha 25 anos e morava numa pensão na avenida Independência, dividindo o quarto com Sereno Chaise. Em 10 de março daquele ano, foi instalada a Constituinte.
  • Casou-se 1º de março de 1950 com Neusa Goulart, irmã de João Goulart. Em outubro de 1950, Brizola foi reeleito deputado estadual, enquanto Jango assumia vaga na Câmara Federal e Getúlio Vargas, a presidência do País.
  • Disputou a prefeitura da Capital em 1951, tendo como seu vice, Manoel Vargas, filho de Getúlio. Perderam.
  • Em 1952, aos 30 anos de idade, assumiu a Secretaria Estadual de Obras Públicas do governo de Ernesto Dornelles. Deixou a pasta para concorrer e eleger-se deputado federal nas eleições de outubro de 1954, com mais de 100 mil votos.
  • Dois anos depois, foi eleito prefeito de Porto Alegre, com 65.077 votos (55, 14%). Seu vice, era Tristão Sucupira Viana.
  • Em 3 de outubro de 1958, Brizola venceu a disputa ao governo gaúcho contra o coronel da Brigada Militar Walter Peracchi de Barcellos. Assumiu no ano seguinte, aos 37 anos.
  • Faz pouco mais de 17 anos que Brizola morreu. Recebeu anistia póstuma do governo brasileiro, em 17 de outubro de 2008, pela perseguição política durante a ditadura militar (1964-1985) - o ex-governador viveu muitos anos no Uruguai.

Eventos celebram a data

Desde o dia 10 deste mês, a TVE exibe 20 drops e mini-docs veiculados nos intervalos da programação relatando os acontecimentos do Movimento da Legalidade. O ponto alto da cobertura começa em 23 de agosto. No Redação TVE, às 18h30min, de segunda a quarta-feira, uma série de três matérias conta a cronologia da Legalidade: da renúncia de Jânio, passando pelos dias da resistência, a volta de Jango e sua passagem por Porto Alegre, até a posse como presidente, pelo regime parlamentarista, em Brasília.
No dia 25 de agosto, data da renúncia de Jânio Quadros e início do Movimento da Legalidade em 1961, a emissora local transmite exibe, a partir das 23h30min, um programa de estúdio (reprise no sábado, às 13h), com participações remotas de convidados, matérias inéditas, memórias, música e arte, em apresentações de artistas gaúchos especialmente produzidas para o projeto.
No sábado (28), às 22h30min, a TVE exibe Legalidade, de Zeca Brito, com Leonardo Machado, ator que morreu em 2018, como Leonel Brizola. Na abertura da sessão, o diretor fala em entrevista direto do Palácio Piratini (principal locação do longa, que completa seu centenário de ocupação neste ano) contando bastidores de filmagens.
O Centro Acadêmico André da Rocha (CAAR), da Faculdade de Direito da Ufrgs, realiza, entre 24 e 26 de agosto, três palestras sobre os 60 anos da Campanha da Legalidade: A Lei e a História. O evento virtual será transmitido pelo canal do YouTube do CAAR, sempre às 11h.
Na próxima terça-feira (24), o professor Juremir Machado da Silva aborda A legalidade e o golpe parlamentarista. Na quarta-feira (25), os convidados são os professores Anita Leocádia Prestes (UFRJ) e Henrique Carlos de Castro (Ufrgs), que falam sobre A Campanha da Legalidade e o Golpe de 1964. Encerrando, na quinta-feira (26), o jornalista Flávio Tavares apresenta O último movimento de massas do século XX - depoimento direto de um participante.
Em 30 de agosto, às 18h, a TV Assembleia transmite o debate 60 anos da Legalidade, um marco na história da nossa democracia. Os painelistas são o jornalista Juremir Machado da Silva, o historiador Jorge Luis Ferreira e o ex-deputado federal e ex-ministro do Trabalho Almino Afonso, com mediação do historiador Neandro Thesing.

* Cleber Dioni Tentardini é jornalista. Nascido em Santana do Livramento, formou-se em Porto Alegre. É autor de cinco livros sobre história e meio ambiente, entre eles O menino que se tornou Brizola e Patrimônio ameaçado.